quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

“A régua, uma palmatória com cinco furos, parecia estar já a olhar para mim (…)”


Vitor Burity da Silva


Dividindo as suas recordações pelas diferentes épocas e locais onde passou a sua vida, o escritor Vitor Burity da Silva partilha os vários cenários, sensações e situações caricatas que povoaram o seu percurso escolar.
Eis as "Memórias de Passagem" de Vitor Burity da Silva
Craque? O que é isso?
(1967 - Nova Lisboa)
Mal abrira os olhos lá fora nem frio.
(nesta cidade a temperatura nunca desce dos vinte graus).
A minha mãe ia repetindo e eu ouvia-a.
(sempre foram rebeldes as crianças).
Passava um pouco de água pelo rosto a ver se os olhos se abriam de vez, como era mesmo preciso. Devagar, com uma mão e a seguir com a outra, a água escorria no lavatório, a torneira aberta, a minha mãe a ralhar comigo, lá de onde estava, se na cozinha, se na sala, não sei, continuava, para depois arrepiar caminho, a escola ficava a uns quatro quilómetros de casa, e quase sempre fazia-os a pé, e antes, o pequeno-almoço, um copo de leite e uma sandes, bastavam, na sacola mais uma sandes para o lanche, o Manuel lá fora esperava por mim, autocarros nem havia, qual quê, nem carro o meu pai tinha, coisas desse tempo, e foram tantas as vezes que percorri essa distância caminhando, o Manuel esperava por mim:

Menino Sandro, vamos embora?
E lá íamos, eu sentado no quadro de metal da bicicleta do Manuel, amigo e contínuo na repartição de agricultura e florestas, no bairro São João, onde o meu pai trabalhava, sentia-me bem, empoleirado naquele quadro de metal da bicicleta preta do amigo Manuel, e que paciência tinha ele comigo.
Antes de sairmos de casa, que era tambem no bairro São João, o quintal imenso, mais parecia uma vila com uma casa só, uma plantação imensa de café, árvores bastantes, o curral e a capoeira onde galinhas num barulho infernal, o porco andava por ali, solto pelo quintal, de um lado para o outro, comia sabão e tudo o que lhe aparecesse, e a estrada que começava em terra batida mais à frente, a principal, ainda o eco da sua voz, quantas vezes me chamou e tanto esperava:
Vamos menino, está a ficar tarde.

E lá fomos.

(1971 - Carmona)

Um dia chorei tanto. Ah, como não gostava nada de fazer os trabalhos de casa, sabia que iria enfrentar dificuldades, e, mal entrava na sala de aula, tentava fugir aos lugares da frente, quase sempre sem resultado:
Menino Sandro, venha ao quadro.
Hoje com setenta e tal anos ainda se recorda, e eu não esqueço. O meu lugar era sempre nas carteiras da frente, não por ser traquina, nem por estar menos atento às aulas, coitada da Isabel, vítima das minhas fisgadas de papel.
Trabalhos de casa!
Dizia a professora, Dona Teresa. Eu nunca fazia os trabalhos de casa. A régua, uma palmatória com cinco furos, parecia estar já a olhar para mim, esfregava as mãos, tremia, os colegas iam-se levantando em ordem, um a um, entregavam os trabalhos, a professora verificava, ralhava com uns, com outros não, até chegar a minha vez, como iria ser? Algumas vezes conseguia ainda fazê-los, mesmo à porta da sala de aulas, já com o sino de entrada a incomodar-me os ouvidos, a maior parte das vezes não, já contava com umas boas reguadas, olhava para as mãos ainda não vermelhas, ao intervalo de castigo para os fazer, sozinho na sala, pensava que já não iria jogar ao berlinde, tínhamos um campeonato e eu seria desclassificado por falta de comparência.
(1975 - Sintra)
Para trás os campeonatos de berlindes. O amor pela Anabela pequena como eu, as reguadas da professora Teresa, a régua Dona Maria dos cinco furos, nova cidade na minha vida, tudo diferente desde então, na mesma, os trabalhos de casa por fazer, saudades de tanta coisa, o meu sotaque diferente dos meus novos colegas, o frio que antes nunca senti, a chuva fria, tanto vento e já não havia o Manuel nem a bicicleta preta onde me sentava feliz no quadro de metal, o autocarro à hora certa, a professora de Francês que eu detestava. Sempre fui um aluno medíocre.
Nem o cocó de galinha nas mãos como fazíamos para que as reguadas não doessem, a voz rude da professora:
Patapuf et contant.

Não sei stôra, quero é ser craque da bola!
E ela:
Craque? O que é isso?

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