Vivemos numa época em que a vida pessoal tem ficado, cada vez mais, submetida a intervenções do Estado e de movimentos de determinados segmentos da sociedade de um modo geral.
O contraditório dessa história é que, ao mesmo tempo em que o leque de escolhas que temos de fazer diariamente aumenta --o que significa trabalho redobrado para viver e estresse muito maior-- também vemos uma série de escolhas ser subtraída de nossas vidas.
O que vamos comer, por exemplo? Agora já não vale mais o nosso gosto, apenas. Precisamos também considerar determinadas normas ditadas pelas ciências que, por sinal, podem mudar constantemente. Lembra-se do ovo? Já foi demonizado, agora não é mais. É que a alimentação se transformou em uma questão de saúde, e não mais uma questão social, familiar, de prazer etc.
Já há diversas leis e projetos em andamento que, de alguma maneira, interferem na vida pessoal de todos. E temos também as chamadas patrulhas sociais. Essas valem para muitos aspectos da vida. A alimentação é apenas um dos exemplos.
O fato é que a linha divisória entre vida pessoal e vida social está cada vez mais tênue, nesses tempos em que fazem tanto sucesso na TV os shows de invasão da intimidade das pessoas.
Às vezes, dá a impressão de que entregamos com gosto algumas decisões para outrem, seja para o Estado ou para ditames atuais das ciências e das tecnologias.
No mínimo, nós precisamos ter consciência de que isso está ocorrendo. E as gerações mais novas poderiam aprender a fazer uma análise crítica a esse respeito, caso tivessem a colaboração da escola para isso. Mas, surpresa: esta tem se aliado ao movimento de intervir na vida pessoal de seus alunos e, portanto, das famílias também.
Vou tomar dois exemplos que chegaram recentemente ao meu conhecimento como indicadores desse posicionamento de diversas escolas.
A mãe de duas crianças que frequentam uma instituição de ensino particular de São Paulo agora não pode mais enviar a merenda que ela quer que seus filhos levem. É que a escola enviou aos pais uma lista de alimentos proibidos de serem consumidos como lanche pelos alunos.
Vou citar apenas um deles, que é o que essa mãe colocava pelo menos uma vez por semana no lanche dos filhos: biscoito recheado.
Não vamos analisar a questão da alimentação saudável, apenas a liberdade de escolha pessoal. Como a mãe resolveu a questão? Substituindo biscoitos por bolo. Industrializado, claro. Biscoito não pode, mas bolo pode. Essa mãe não sabe qual a lógica dessa lista enviada pela escola. Mas uma coisa dá para perceber: a vida pessoal das famílias e dos alunos dessa escola sofreu interferência.
Claro que os alunos não conseguem entender a complexidade da questão, mas podem aprender algo com tal atitude da escola: a de que sofrer interferências na vida pessoal é um fato "normal".
Outro exemplo diz respeito às atividades que muitas escolas fazem, chamadas de "estudo do meio". Algumas fazem essa saída por um dia, outras por mais de um dia.
Uma criança ou adolescente deveria ter o direito de escolher se quer ou não participar da atividade, dada sua natureza, não deveria? Pais deveriam ter o direito de aceitar ou não que o filho viaje sem sua companhia, certo?
Pois algumas escolas colocam a atividade como obrigatória. Ou então fazem pressão sobre alunos e pais que manifestam desagrado com a saída do filho. Do mesmo modo que no primeiro exemplo, há interferência na vida pessoal dessas famílias.
Talvez a escola devesse avaliar melhor o que anda ensinando aos seus alunos, mesmo sem ter a intenção de ensinar. E a maior lição passada pelas atitudes citadas é, sem dúvida, a de que a interferência na vida pessoal de alguém é normal. É?
Rosely Sayão, psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. É autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha), entre outros. Escreve às terças na versão impressa de "Equilíbrio".
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