quarta-feira, 26 de março de 2014

Licínio Monteiro – história da VG/MT

Homem honrado, nobre vulto desta terra, digno de muitas homenagens e destaque, como a do Honório Laucídio Galvão
 
DOMINGOS SÁVIO BRUNO

Remexendo nas nossas lembranças, buscando informações do passado nas gavetas dos armários, sempre surgem novas idéias. E assim, neste mês de março, procurando sobre personagens ilustres da nossa cidade, eis que surgiu um nome: Licínio Monteiro da Silva. Quem foi esse homem? Papa banana ilustre? Isso sim. Mas também um dos mais nobres e ilustres políticos várzea-grandense. Também considerado um dos mais inteligentes deste estado. Homem honrado, nobre vulto desta terra, digno de muitas homenagens e destaque, como a do Honório Laucídio Galvão, no seu livro "Papa-bananas ilustres", em que destaca alguns personagens históricos da cidade vizinha de Nossa Senhora do Livramento, apesar de ser ex-prefeito da Várzea Grande/MT no período de 1953 à 1957.

Licínio era filho de médio pecuarista, sempre teve vida de muita luta, conforme descreve Joacil Ribeiro da Silva no seu Livro “Licínio Monteiro Glórias & Vitórias – Vida e Obra”. Que relata que desde pouca idade já trabalhava, e apesar de não ser poupado das lidas, apenas recebia ocupações mais suaves. Porém vem a comprovar que trabalho enobrece e dignifica... Licínio Monteiro da Silva, eis um belo exemplo de gente trabalhadora! E conforme afirma Ribeiro, não só a infância de Licínio, mas de todos os seus irmãos foram marcadas pelo trabalho e pouca brincadeira. Por falta de recursos humanos e de grupo escolar, teve inicialização escolar com sua mãe, dona Margarida, mas depois veio juntamente com os irmãos para estudar na Capital em 1912.

Licinio Monterio da Silva, de família tradicional, nascido em 17 de março de 1903, foi introduzido na política aos trinta anos de idade após retorno de viagem ao Rio de Janeiro, quando esteve em contato com o ex-governador do estado de Mato Groso e médico cuiabano, Dr. Mario Correa da Costa, que também era um conceituado profissional e político, e estabelecido naquela cidade.

Entusiasmado com convites feitos pelo ex-governador ao retornar a Cuiabá, com principal apoio da sua esposa dona Bebé, e de seu cunhado, tornou-se político, mas sem pretensões próprias, conforme relatos.

Em 1934 vitorioso na sua investida política, com a eleição de Mário Corrêa para governo do estado, afastou-se temporariamente para atuar nas suas tarefas cotidianas.

Licínio voltou a política no governo do interventor Ari Pires em 1937. Exercendo cargos de Membro fiscal da Santa Casa da Misericórdia. Já em 1941 deslanchando na vida pública e acumulando diversos cargos, na maioria sem remuneração, assim fazendo por mais de uma década, onde muitas vezes, segundo Ribeiro, deixando suas atividades particulares em segundo plano.

Em 1946, entrou de vez para a política, sempre incentivado pela esposa e pelo seu cunhado Aristides Pompeu de Campos, vencendo sua primeira eleição para Deputado Estadual por votação expressiva para a época, empossado em 20 de março de 1947, para o seu primeiro mandato, que ainda se reelegeria por mais quatro vezes, ou seja, 1951, 1953, sendo que em 53 renunciou e nessa época introduziu seu filho Sebastião Monteiro na vida pública. Licínio voltou a a vida pública em 03 de outubro de 1958. E foi reeleito no pleito seguinte... com a mesma sensibilidade de homem público, político, defensor de trabalhadores rurais e dos mais oprimidos pelo sistema.

Como Prefeito da nossa cidade de Várzea Grande, se elegeu em 26 de abril de 1953. Assumindo o comando logo em 27 de julho. E frente à prefeitura, sua primeira preocupação fora com o crescimento desordenado e mandou elaborar a reorganização da planta cadastral da cidade para ordenar o crescimento urbano.

Um dos seus maiores feitos na época foi a reversão do veto da construção do aeroporto, tendo ido até ao Rio de Janeiro e com toda sua diplomacia nata, convenceu o Ministro sobre a relevância daquela construção, e que não houve contra argumentos. Os engenheiros vieram e vistoriaram o local e aprovaram a obra convencidos e impressionados com a atuação do Prefeito Licínio Monteiro da Silva.
Licínio entregou o Paço do Couto Magalhães ao Engenheiro Júlio José de Campos em 1957.

Após ter completado 12 anos e 03 meses e 13 dias como legislador frente à Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso, Licínio Monteiro recebeu em sua casa, o importante convite, pessoalmente feito pelo então Governador Fernando Correa da Costa, para assumir o honroso cargo de Ministro do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso. E para tanto foi necessário renunciar a mais de 03 anos que ainda restava do último mandato do legislativo estadual, em 8 janeiro de 1964. E atuou por quase 9 anos a serviço desse Tribunal, tendo presidido a casa nos anos de 1968 e 1972.

De acordo com informações extraídas da Publicação: “Cinqüenta Anos de História do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso – 1953 -2003, de Maria Adenir Peraro, Neila Maria Souza Barreto, Maria Aparecida Borges Barros Rocha, Licínio “Ocupou ainda outros cargos, como Presidente da Junta de Controle da FUSMAT e da Associação Rural (COMAPAN), tendo sido um dos fundadores do jornal O Social Democrata, ao lado do Senador Filinto Muller”

“Quando de seu afastamento do Tribunal de Contas, foi realizada uma sessão especial em sua homenagem. Nessa ocasião, o Conselheiro Presidente, Benjamin Duarte Monteiro, despediu-se do amigo que deixava as funções: A presidência deseja saudá-lo em nome do Tribunal e expressar seus sentimentos, a sua homenagem ao nobre companheiro que conviveu conosco tanto tempo e bons serviços prestou aqui no Tribunal. Vossa excelência, Conselheiro Licínio Monteiro, vai daqui se retirar e pode ficar certo que aqui deixa amigos. Quando tudo parecia triste, a sua risada alegrava e dela também vamos achar falta, porque V. Ex™, realmente, foi um bom amigo, um amigo de todos, em todas as horas.”

“Licínio Monteiro da Silva tem projeção definida e definitiva na história política mato-grossense em função de sua personalidade marcante e atuante por mais de quatro décadas nos diversos cargos públicos a que ascendeu com especialidade os eletivos, quando pode demonstrar o carisma em memoráveis urnas eleitorais.”

Licínio Monteiro após brilhante atuação e desempenho comprovado, requereu e teve sua aposentadoria homologada no dia do seu aniversário: 17 de março de 1973. Assim, continuou a contribuir participando da vida publica.

“O Conselheiro Licínio Monteiro da Silva faleceu em 1º de outubro de 1992, aos 89 anos de idade, na cidade de Cuiabá.”

O seu vasto curriculum e inteligência extraordinária, somada a sua gigantesca visão, serviram para fazer com que este nobre político fosse lembrado sempre pelos seus feitos e pela dignidade e pelos seus atos distintos de somar e aglutinar seguidores. Agindo sempre com diplomacia e grandiosidade de espírito.

A nossa cidade deveria tê-lo e sempre lembrá-lo, como modelo e exemplo a ser seguido. Várzea Grande tem gente de nome na história. E Licínio Monteiro da Silva faz parte da nossa história.

*DOMINGOS SÁVIO BRUNO é Engenheiro Florestal - saviobruno@terra.com.br

Os surdos aprendem melhor nas escolas especiais ou regulares?

Lodenir B. Karnopp & Maura Corcini Lopes

“Não é somente o espaço que determina que os surdos aprendam, sejam incluídos e também se socializem, mas as condições para firmar um contrato comunicativo e pedagógico”

“Aprender na escola”. Tal enunciação, aparentemente simples, exige que nos debrucemos sobre o que significa aprender na contemporaneidade. Também significa, já que se trata de pensar a educação de surdos e a aprendizagem, de estranhar por que pessoas surdas não estão aprendendo na escola. Uma das primeiras lições que aprendemos como docentes é que os sujeitos devem ser conduzidos à aprendizagem e que todos podem aprender, mesmo que em tempos e espaços diferentes ou sob condições distintas. Não há razões para que os surdos não aprendam na escola se nela forem oferecidas as condições para tal aprendizado. Para abordar esse tema, propomos uma discussão sobre a aprendizagem na educação de surdos, a experiência de ser surdo na escola e as línguas na educação de surdos.

Cabe inicialmente destacar que a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência postula que tais indivíduos têm o direito de usufruir plenamente dos direitos humanos. Nesse sentido, os direitos humanos das pessoas surdas envolvem acesso à língua de sinais e o reconhecimento dessa língua, a aceitação e o respeito à identidade linguística e cultural de pessoas surdas, a educação bilíngue, a oferta de intérpretes de línguas de sinais e recursos de acessibilidade. O relatório intitulado Deaf people and human rights (Haualand e Allen, 2009) reuniu dados quantitativos e qualitativos em 93 países, incluindo o Brasil, com o objetivo de verificar as condições de vida de pessoas surdas, tendo como referência os direitos humanos.

Resultados desse relatório apontam que relativamente poucos países negam às pessoas surdas acesso à educação, aos serviços públicos ou ao exercício da cidadania, tendo como base apenas a surdez. No entanto, aspectos como a falta de reconhecimento da língua de sinais, a carência de educação bilíngue, a disponibilidade limitada de serviços de interpretação e a generalizada desinformação da sociedade sobre a situação e as condições de vida das pessoas surdas na maioria dos países mantêm esses sujeitos privados do acesso a amplos setores da sociedade e do exercício da cidadania (Karnopp, 2013).

Implicadas na efetivação da aprendizagem estão variáveis que englobam também o tipo de escola e de modalidade de ensino, o desenvolvimento linguístico-cultural de todos os envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem, a concepção que os docentes e os próprios sujeitos surdos têm da surdez e de si mesmos, os domínios de saberes pedagógicos, as concepções históricas de escolas e de modalidades de ensino, entre outras. Também nas discussões acerca da aprendizagem escolar está implicada a noção de experiência, uma experiência que deve deixar para trás a noção de experimentos metodológicos para abarcar atravessamentos maiores envolvidos em uma dimensão maior do que vem a ser a experiência da surdez e/ou do quem vem a ser a experiência educacional-pedagógica com sujeitos surdos (Lopes, 2011).

A aprendizagem decorre da experiência vivida, nesse caso, na escola. Entendemos experiência como um conjunto de práticas que, ao se articularem em torno da surdez e dos indivíduos, acabam por constituí-los e constituem a própria experiência de ser surdo e aprendiz. Trata-se de uma experiência inventada no interior das práticas nas quais estamos inseridos. Inventada porque a experiência não preexiste às relações, às normativas legais, discursivas e comportamentais, tampouco aos espaços. Elas são o resultado de tensões geradas na convivência com o outro e nas relações que o indivíduo mantém com ele mesmo.

Então, voltemos à aprendizagem, mas pensando-a no intrincado jogo das experiências educacionais e pedagógicas vividas nas escolas. Muitas são as teorias que conceituam aprendizagem; porém, qualquer uma delas determina que, para aprender, é preciso partir da noção de um sujeito agente, ou seja, um sujeito ativo sobre si mesmo. Um sujeito agente e ações pedagógicas estratégicas são condições para que sejam mobilizados processos de ensino-aprendizagem em um ambiente adequado. No caso da aprendizagem de alunos surdos, além das condições exigidas para qualquer ação pedagógica, também estão colocadas as condições escolares, linguísticas e culturais de todos os envolvidos no contexto da escola para que a comunicação entre surdos e entre surdos e ouvintes aconteça de modo a desafiar os indivíduos a se desenvolver e aprender, permitindo-se que os docentes possam exigir dos alunos a dedicação de que estes necessitam para aprender.

Entender o indivíduo surdo a partir de um contexto no qual a surdez não é um limitador, mas um traço que pode estar associado às experiências visuais e a um vasto repertório de práticas linguístico-culturais desafiadoras e potentes para o desenvolvimento, é condição para se preparar para ser docente. Portanto, não é somente o espaço em si que determina todas as variáveis para que os surdos aprendam, sejam incluídos e também se socializem na escola, mas as condições dadas para firmar um contrato comunicativo e pedagógico é o que determina a qualidade da experiência escolar surda. Destacamos ainda que espaços educacionais adequados às crianças surdas requerem que se considere a aquisição da linguagem nesse processo. A aquisição da língua de sinais precisa ocorrer com os pares surdos, em companhia de professores surdos ou professores ouvintes bilíngues, em um ambiente que considere a língua de sinais como primeira língua. Esse é o modo de acesso e imersão linguística que favorece a constituição de uma língua no sujeito, condição primeira para tantos outros aprendizados.

Na escola regular, pode haver aprendizagens surdas, assim como na escola para surdos. Porém, tal afirmação é perigosa se considerarmos uma disputa acadêmica e profissional por quem tem razão na condução dos indivíduos — aqueles que defendem práticas bilíngues e biculturais para os surdos em escolas de surdos e aqueles que defendem a inclusão. Fora de tal impasse reducionista, o que parece estar em jogo são entendimentos e concepções históricas de normalidade. Se a normalidade for definida a partir de referentes audiológicos, a surdez será uma deficiência que incapacita e fragiliza aqueles que dela sofrem, independentemente do tipo de escola. Se a normalidade for definida a partir de referentes antropológicos, identitários e linguísticos, a surdez será uma experiência visual que agrega potência às formas de vida surda e de ser surdo. Eis aí o problema central — a partir do qual nos posicionamos para olhar e narrar o outro surdo.

Por fim, o slogan “Nada sobre nós, sem nós”, defendido pela Federação Mundial dos Surdos, convoca-nos a pensar sobre a importância de incluirmos nas discussões sobre os espaços de escolarização de surdos os próprios surdos. A Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos traz para o primeiro plano de discussão as propostas de escolas de surdos e da educação inclusiva, ambas construídas por especialistas surdos em educação. Tais propostas defendem o contato com pares usuários da mesma língua e a atuação de pro?ssionais bilíngues nas escolas, entre outras condições que garantam desenvolvimento, aprendizagem e participação surda de qualidade na escola — sejam elas bilíngues para surdos ou em escolas regulares.

Tendo em vista que a maior parte da população é ouvinte, todo surdo conviverá constantemente com tal realidade. Assim, entendendo-se que na escola não se aprende apenas conteúdos escolares (português, matemática, história, etc.), mas uma gama de conhecimentos que servirão para toda a vida, como, por exemplo, justiça, respeito mútuo, diálogo crítico entre culturas diferentes, convivência com as diferenças e trabalho em grupo, por que segregar o ensino das pessoas surdas?
 
  • Lodenir B. Karnopp é doutora em Letras e Linguística e professora do Departamento de Estudos Especializados e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. lodenir.karnopp@ufrgs.br
  • Maura Corcini Lopes é doutora em Educação e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). maurac@terra.com.br

Referências

  • HAUALAND, H.; ALLEN, C. Deaf people and human rights. Finland: World Federation of the Deaf and Swedish National Association of the Deaf, 2009. Disponível em: .
    KARNOPP, L.B. Produções culturais em Língua Brasileira de Sinais (Libras). Letras de Hoje, v. 3, p. 407-413, 2013.
    LOPES, M.C. Surdez e educação. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

Atitudes para uma escola saudável

Entrevista // Cristiane Marangon  

Promoção de saúde é a capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e de sua saúde, incluindo maior participação no controle desse processo. Segundo a Carta de Ottawa, resultado da 1ª Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, realizada no Canadá em 1986, para atingir um estado de completo bem-estar físico, mental e social, os indivíduos e grupos devem saber identificar aspirações, satisfazer necessidades e modificar favoravelmente o meio ambiente.

A Carta de Ottawa inspirou a Organização Mundial da Saúde (OMS) na eleição do espaço escolar como cenário estratégico para o desenvolvimento de ambientes saudáveis e de habilidades em promoção de saúde, lançando as Escolas Promotoras de Saúde (EPS). Aspectos como a sustentabilidade, a abordagem multifatorial (currículo, ambiente escolar e comunidade) e o envolvimento de todos os atores escolares (professores, alunos, funcionários, pais e comunidade) no processo são passos importantes nas escolas com vistas à melhoria da saúde e do bem-estar de crianças e adolescentes.

Entre os programas mais efetivos, destacam-se aqueles centrados na promoção de saúde mental, de dietas saudáveis e de atividade física entre os estudantes. Nesta entrevista, o médico Gustavo Gusso, professor de clínica geral da Universidade de São Paulo, defende a ideia de que o professor pode ajudar muito nesse processo. “Naturalmente, os professores já fazem muito, porque a escola vai incorporando ao currículo temas que são da saúde e passam a estar no dia a dia das disciplinas”, diz. Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida à Pátio Ensino Fundamental.
Qual é o papel da educação na promoção de saúde da família e da comunidade?
Para garantir a saúde de um ser humano, é necessário um conjunto de elementos, como educação, trabalho, lazer, etc. De todas elas, a educação é uma das determinantes sociais que definem o fato de uma pessoa ter mais qualidade de vida e longevidade.

Existe relação entre o nível de escolaridade e a saúde da população?
Sim. Quanto menos escolaridade, mais dificuldades as pessoas têm para lidar com as questões de saúde. Às vezes, quando elas não conseguem emprego, tudo pode então se transformar em um ciclo vicioso que leva a piores indicadores e menor qualidade de vida. Famílias mais pobres, por exemplo, acabam vivenciando maior situação de vulnerabilidade, pois não têm acesso ao mínimo, como água potável ou saneamento básico. Muitas vivem nessas condições. Também não têm acesso ao lazer. Para fazer uma caminhada, não dispõem de tempo, além de não disporem de um parque perto de casa, e alimentar-se de maneira mais saudável é caro. É muito mais barato comprar comidas que não são saudáveis. Essa é a rotina.

A escola tem-se responsabilizado por muitas tarefas além de ensinar os conteúdos escolares aos alunos. É possível delegar aos professores também a tarefa de promover a saúde?
Realmente temos delegado muitas tarefas para as escolas. No caso da saúde, a escola tem condições de promover muitas ações, mas não pode estar sozinha. O pessoal da saúde pode ajudar, mas vejo isso como uma atribuição do professor. Um exemplo de trabalho é ensinar as crianças sobre a separação do lixo. Além disso, existe uma série de ações que tentamos ajudar a escola a fazer, como, por exemplo, abordar questões de higiene pessoal, como escovar os dentes, e lembrar os pais sobre o dia da vacinação ou mesmo levar a vacina para aplicar em seus filhos na escola. Às vezes, tentamos detectar algum problema de saúde que esteja afetando a comunidade, como piolho e dengue, e explicamos para os alunos mais velhos e para os pais como evitar esse tipo de doenças. Naturalmente, os professores já fazem muito, porque a escola vai incorporando ao currículo temas que são da saúde e passam a estar no dia a dia das disciplinas. Saúde é um tema muito amplo que tem muitos traços em comum com a educação.

Vivemos em uma cultura em que a prevenção ainda não é o foco principal. O que é preciso para mudar tal mentalidade e como a escola pode ajudar nesse processo?
De fato, por vezes as pessoas esperam ficar doentes. Também é verdade que existe um risco de se fazer muitos exames de rotina de maneira exagerada. Nenhuma pessoa pode ser hipocondríaca a ponto de fazer exames todos os meses, nem deve esperar ficar doente para procurar cuidados médicos. Existe um meio-termo, que é tentar se cuidar, adiantando-se a certas questões, mas sem paranoia. As prevenções primárias são aquelas que acontecem para evitar que se tenha uma doença, como vacinação ou caminhada. Fazer exames precoces é uma forma de prevenção secundária, como o exame Papanicolau, que revela se uma mulher tem ou não algum problema, mesmo sem sintomas de alguma doença. Ele serve como rastreamento.

Que tipo de conteúdos relacionados à saúde a escola deveria trabalhar? Isso pode ser feito apenas por meio do currículo ou deve abranger outros âmbitos?
Há muitas ações que estão no currículo, mas a escola pode falar disso fora do horário de aula e ampliar para o fim de semana, como promover a prática de esportes. Essas práticas extrapolam a sala de sala. A escola não tem de ficar apenas fechada nisso. Deve ampliar o seu horizonte e envolver cada vez mais os profissionais da saúde nessas atividades. Se a instituição vai fazer uma coleta seletiva de lixo e os profissionais comunitários puderem ajudar, serão bem-vindos. É bom fazer essa intersecção até para que os profissionais da saúde possam exercitar-se.

Uma das dificuldades de realizar trabalhos preventivos com adolescentes é combater o pensamento que os leva a crer que determinadas situações não os atingem, como a dependência química. Como lidar com isso de maneira eficaz?
Não é fácil, mas esses assuntos devem ser tratados sem negligência. É um tanto difícil abordar essas questões se não se encara que muitas pessoas bebem, por exemplo, para relaxar ou para comemorar, e as crianças assistem a tal cena. O importante é ensinar para elas que temos de nos controlar, mas não apenas em relação às drogas. É preciso atenção igualmente na alimentação. Há crianças que são obesas. Droga não pode, álcool não pode, mas macarrão, cachorro-quente, refrigerante e doce podem. Tudo na vida exige moderação, e isso deve ser explicado para elas. Nada pode ser usado de forma impulsiva. Essa questão é complicada porque, às vezes, os pais são impulsivos — ou comem demais ou bebem muito. Os filhos enxergam esse fato e não se pode desconectá-los da realidade em que vivem. No entanto, convém que esse processo seja feito naturalmente e que seja tratado a partir da vivência dos alunos. Não pode ser apenas “um monte” de informações a serem repassadas. É fundamental partir da experiência concreta. É importante que os adultos sejam modelos saudáveis e reais. Não precisam ser idealizados ou super-heróis.

E quanto à gravidez ou às doenças sexualmente transmissíveis (DSTs)?
Uma boa estratégia, quando as crianças têm 11 ou 12 anos, é pedir que coloquem perguntas em uma caixinha sem ninguém saber quem colocou cada uma e ir abordando essas questões anonimamente. Esse é um meio de tratar de assuntos sobre os quais as pessoas têm mais vergonha de perguntar. É uma estratégia que funciona bem, mas é bom individualizar e ver quais são as demandas específicas de cada criança, de cada turma, de cada escola.

O Ministério da Educação é parceiro do Ministério da Saúde no programa Saúde na Escola. O que o senhor pensa a respeito dessa ação?
Conheço o programa e sei de aspectos bons e ruins. Ele promove uma integração da saúde com os profissionais da educação, o que é muito é positivo. Contudo, seria bom que não houvesse ações pré-programadas. Ou seja, se há uma escola que enfrenta problemas com drogas, vamos falar disso. Se há uma escola com questões de gravidez na adolescência ou obesidade, vamos falar disso, sempre buscando a realidade em que os alunos vivem. Há muitos aspectos no programa que são pré-formatados. Os técnicos vão à escola para medir e pesar os alunos, como na década de 1970. Nem sempre é um tempo bem-aplicado, tendo em vista que, para medir, pesar e examinar, gasta-se um tempo grande, e nem sempre tais medidas têm uma função. Sabemos quem está gordinho. Não precisa pesar todo mundo. Não temos esse tempo sobrando para ações que não têm uma função clara, que não vão ajudar as crianças a não comer mais ou a tratá-las. Se há algum problema, podemos eliminá-lo tratando dele individualmente. É desnecessário colocar todo mundo em fila, como acontecia na época da ditadura, para pesar e medir.

Quando o professor detecta que um aluno não está bem, o que deve fazer?
Se um educador detecta problemas com algum aluno, sempre é necessário procurar ajuda de um profissional da saúde. Recomendo também ter uma visão mais ampliada do que acontece na casa desse aluno. Uma grande quantidade de crianças tem diagnóstico de hiperatividade, por exemplo. Às vezes, a dinâmica familiar é muito complicada, e elas são responsabilizadas excessivamente por problemas que herdaram. Elas podem estar refletindo o funcionamento de uma família agitada ou exatamente o contrário: com pais deprimidos, as crianças reagem com hiperatividade. Pode também ser um problema genético, como a tendência a engordar. Uma dieta rica em carboidratos é mais comumente um hábito ou uma cultura de casa. Não foram as crianças que inventaram isso. Elas são vítimas — e não protagonistas — do que acontece hoje em dia.
  • Gustavo Gusso

Matemática na educação infantil

Katia Stocco Smole  

A manutenção do interesse por matemática entre alunos de 4 e 5 anos vem do atendimento de suas necessidades atuais, e não da preparação para o futuro.

Para iniciar este artigo, cuja meta é analisar aspectos referentes à educação matemática na escola infantil, trago um pequeno diálogo entre Sofia, de 4 anos, e sua família. A brincadeira da vez, proposta pela menina, era desafiar os adultos com contas: quanto é 2 + 2 + 3? Quanto é 3 + 4 + 5? Os adultos respondiam a uma pergunta e propunham outra do mesmo tipo. A pequena parava, pensava, fazia caretas, olhava os dedos, mas resolvia todas. Em certo momento, ela decidiu propor contas difíceis e perguntou: “Quanto é 11 + 12?”. Uma das pessoas perguntou: “Mas você sabe quanto é 11 + 12?”. Ao que ela respondeu: “Não, né? Eu só perguntei. Precisa de muitos dedos para calcular!”.

O que leva uma criança dessa idade a se divertir propondo contas para os adultos? O que uma criança precisa saber para enfrentar situações desse tipo e decidir se vai ou não resolver os desafios propostos? Como conseguir despertar e manter o desejo de saber matemática?
Já vai longe o tempo em que ensinar matemática na educação infantil confundia-se com atividades de seriação, classificação e sequenciação. Também não faz mais sentido o trabalho centrado em preencher folhinhas com números ou marcar quantidades de objetos de um conjunto em um quadradinho.

Para entender o interesse de Sofia, não basta considerar o ambiente familiar, nem tampouco que seja talento natural. Estudos de neurociências indicam que as crianças têm capacidades matemáticas características da genética da espécie, o que lhes permite desenvolver algum conhecimento matemático antes da escolarização. No entanto, cabe à escola atuar para a evolução do saber inicial, por meio de um ambiente problematizador, que favoreça o desenvolvimento de novos conhecimentos matemáticos.

Na educação infantil, a aprendizagem matemática se dá a partir da curiosidade e do entusiasmo das crianças e cresce em função do tipo de experiências vivenciadas nas aulas. Experiências desafiadoras incentivam a explorar ideias, levantar e testar hipóteses, construir argumentos de maneira cada vez mais sofisticada.

Contudo, a despeito de haver muita matemática ao redor dos alunos, nem sempre as ideias matemáticas aparecem por sorte ou espontaneamente. Elas são elaboradas ao longo do tempo, estruturando-se na criança e organizando-se em uma rede de relações construídas todos os dias, com aulas bem planejadas pelo professor.

A segurança de Sofia indica que ela tem liberdade de pensamento e, ao mesmo tempo, conhecimento matemático que permite viver e propor desafios. Forma e conteúdo estão em jogo para que uma criança aprenda matemática. Todos os conteúdos matemáticos que as crianças precisam aprender situam-se em um de quatro grandes eixos articuladores:
  1. conhecimento dos números, dos seus significados e das operações entre eles; 
  2. conhecimento de formas geométricas, localização espacial e desenvolvimento corporal; 
  3. conhecimento das principais grandezas e medidas; 
  4. interpretação e organização de dados a partir dos primeiros contatos com o tratamento da informação.
Cada um desses eixos, se abordados desde a educação infantil, contribuirá para que a criança adquira novas formas de interpretar, ser e estar no mundo, lentes novas para ver seu entorno com maior criticidade. A matemática na educação infantil integra a primeira fase de um ciclo de alfabetização, o qual serve para ampliar na criança as capacidades de analisar, comparar, observar, tomar decisões, tirar conclusões, propor e resolver problemas.

Uma das maiores conquistas que a escola pode auxiliar os alunos a ter é o conhecimento da linguagem matemática. Por isso, é necessário cuidado para que a linguagem matemática seja percebida como forma de comunicação. Essa linguagem, a princípio, é a linguagem materna. Aos poucos, a escola auxiliará a criança a perceber que a linguagem matemática também consiste em um código formado por símbolos e signos específicos como aqueles usados para números, operações, gráficos e representações geométricas.

Assim, é importante que os alunos da educação infantil sejam expostos a um contexto de aula no qual ouvir, ler, falar e escrever em matemática sejam não apenas estimulados, mas parte indissociável do ambiente educativo para que os alunos percebam a matemática e sua linguagem como modo de integrar-se ao meio e de ter acesso à informação que elas proporcionam.

Vale destacar que, dos 4 aos 6 anos, há hipóteses de construção da linguagem matemática e os alunos fazem suas produções por tentativa e erro, por aproximação de um modo que, grosseiramente falando, aproxima-se do que acontece com a linguagem escrita. Estudos como os de Dehaene e colaboradores (2004) indicam que os processos linguísticos são importantes no processamento simbólico e destacam o papel do domínio do significado e dos símbolos matemáticos — e, consequentemente, da instrução formal — na estruturação da compreensão da matemática pelos alunos.

Outro ponto importante da educação matemática na infância é a liberdade para a criança pensar por si e ter ideias. Aos 4 anos, Sofia mostra que tem o hábito de desafiar e ser desafiada. Isso indica que convive com a ideia de que algumas vezes resolve os desafios propostos, outras não, e que pode enfrentar uma situação desafiadora por distintos caminhos. Favorecer o intercâmbio de ideias entre os alunos permite que avancem na linguagem e nas formas de representação, deixando fluir seus sentimentos para uma boa aprendizagem matemática, criando a sensação de poder aprender e pensar em matemática.

Os educadores devem ter em mente que todo o trabalho realizado com conteúdos matemáticos não pode ser ocasional ou fortuito; as propostas têm de ser múltiplas, variadas e relacionadas com a linguagem, as expressões e a formação sociopessoal do aluno (Smole, 2000). O papel do adulto é selecionar e planejar situações de aprendizagem que se ajustem às necessidades das crianças, bem como propor atividades adequadas, ajudar os alunos em suas buscas, perguntar-lhes por aquilo que tenham visto, pensado, imaginado, experimentado ou descoberto e refletir junto com eles para ajudá-los a atribuir sentido matemático às experiências vividas.

Tendo em vista que os alunos da educação infantil estão em uma fase lúdica, na qual brincar é um direito legítimo e uma maneira de desenvolver-se amplamente, as aulas de matemática precisam ter espaço para jogos, brincadeiras, histórias, fábulas, problemas, experimentos e tantas outras atividades que compõem o universo infantil. Em seus estudos de neurociências e matemática, Whyte e Bull (2008) demonstram que as crianças que jogam compreendem melhor o universo dos números.

Precisamos desfazer o mal-entendido de que na educação infantil praticamos uma matemática simplista, muito elementar, sem propor situações mais desafiadoras, e também nos desfazer da ideia de que primeiro os alunos aprendem a ler e escrever para depois explorar situações mais complexas de matemática. Se fosse assim, não precisaríamos da escola.

A matemática na educação infantil que proponho é parte indissociável do todo que entendo como educação matemática e apresenta pontos em comum com o que os alunos precisam aprender posteriormente. A manutenção do desejo e do interesse por matemática entre alunos de 4 e 5 anos vem do atendimento de suas necessidades atuais, e não de uma matemática que seja vista prioritariamente como preparação para o futuro.


Entre o direito e o dever

Entrevista // Cristiane Marangon  

Desde 2009, com a aprovação da Emenda Constitucional 59, e mais recentemente, com a publicação da Lei nº 1276, em abril de 2013, a determinação de que é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 anos de idade está provocando debates e exigindo adequações. “A medida visa a possibilitar o ingresso de crianças que, por diferentes razões, como, por exemplo, as características da oferta e o desconhecimento do direito, estão excluídas da educação infantil”, diz a coordenadora geral de Educação Infantil do Ministério da Educação (MEC), Rita Coelho. Nesta entrevista, ela fala sobre as mudanças e os desafios que a emenda acarreta, destacando o papel das diferentes instâncias nesse novo cenário. “É preciso levar em conta que a educação infantil vive um momento importante, tanto como demanda social quanto como investimento governamental. Basta lembrar que é a primeira vez que a educação infantil faz parte de um plano de crescimento do país”, afirma.

Qual é o motivo da decisão pela obrigatoriedade da escolarização das crianças de 4 a 5 anos neste momento da história da educação infantil?
É importante lembrar que essa decisão legislativa não foi amplamente discutida e ocorreu no âmbito do projeto que propunha a desvinculação dos recursos da União. Em decorrência disso, observa-se que não existe um sentido exato da obrigatoriedade, confundida com obrigatoriedade da oferta e da matrícula. Aspectos como a constatação de que o Brasil era um dos poucos países da América Latina em que a escolaridade obrigatória estava restrita a 9 anos de duração, as tendências internacionais de antecipação da entrada na escola e a universalização da pré-escola influenciaram tal decisão. Vale ainda destacar que a proposta também tem caráter de equidade. Diferentes levantamentos evidenciam que as crianças mais pobres, moradoras de zonas rurais, das regiões Norte e Centro-Oeste, filhas de famílias com menor renda, têm menos acesso à educação infantil. Portanto, defesa do direito, desigualdade de acesso e confusão entre dever de oferta e de matrícula são três questões que se relacionam a essa medida.

A medida garante vagas para todas as crianças dessa faixa etária?
Não. No Brasil, nenhuma lei equivale a garantia do direito. A legislação é muito mais um instrumento de luta do que medida de efetiva execução. A matrícula pressupõe a existência da vaga, mas é o dever de ofertar estabelecido pela Constituição Federal que deve garantir vaga para todas as crianças por parte do município. Portanto, na prática, a obrigatoriedade de matricula é muito mais uma medida de defesa, de divulgação e de reafirmação do direito, principalmente se lembrarmos que a educação infantil não é pré-requisito para a matrícula no ensino fundamental. Uma criança que não frequentou a educação infantil ou que a frequentou de maneira esporádica não pode ser impedida de ingressar no ensino fundamental.

A obrigatoriedade para as crianças de 4 e 5 anos pode abrir espaço para uma discussão de incluir também as de até 3 anos de idade?
Esse risco existe. Inclusive, outro risco presente é o de que as crianças de 4 e 5 anos sejam entendidas como prioridade em detrimento do grupo de até 3 anos. A prioridade nacional é a expansão do atendimento de creche, maior déficit de atendimento referente às metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação. A obrigatoriedade não pode ser entendida pelo gestor como prioridade de matrícula, o que depende do perfil da oferta e da demanda local. Existem riscos e também possibilidades, o que depende da nossa capacidade de diálogo democrático e ético, somada à correlação de forças presentes no sistema educacional e na sociedade. Acredito que podemos avançar reconhecendo as contradições e os desafios, qualificando o debate e fortalecendo a concepção de educação infantil como primeira etapa da educação básica.

O Brasil apresenta imensas diferenças sociais, culturais e geográficas. Além disso, nem todos os municípios têm condições de oferecer vagas para essa faixa etária. Como resolver tal problema?
A ampliação da oferta é importantíssima, mas não basta. É necessário conhecer a demanda, o perfil da oferta, as características locais antes de expandir a rede. É preciso trabalhar na sociedade, de modo geral, o conhecimento e o respeito aos direitos da criança. O que acontece no campo e na zona rural? Qual é a demanda do município de menos de 20 mil habitantes? Não existem 120 crianças agrupadas para serem atendidas no mesmo local. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil fazem claramente referência a isso. Um projeto político-pedagógico deve estar comprometido com as identidades dessas infâncias. Eu diria que o nosso maior desafio é garantir o atendimento das crianças que residem na zona rural. É garantir a educação infantil do e no campo, seja das crianças de 4 e 5 anos, seja dos bebês de até 3 anos.

Que ações são indispensáveis para que as políticas públicas de atendimento na educação infantil fomentem uma prática qualificada para essa faixa etária?
A qualidade é um grande desafio para toda a educação básica, e não apenas para a educação infantil. O governo federal vem investindo em expansão da oferta de novas vagas por meio de construção, assessoramento técnico pedagógico, antecipação de financiamento para custeio e formação de professores, porém é indispensável uma ação articulada dos diferentes níveis de governo (federal, estadual e municipal), bem como um efetivo controle social. A qualidade é um complexo processo de negociação e mudança de valores. No caso da educação infantil, há especificidades que passam, inclusive, por uma insuficiência do próprio sistema educacional brasileiro, sobretudo no que diz respeito às crianças de até 3 anos, e pelas característica da organização federativa do Brasil no campo da educação.

Quais são as especificidades da pré-escola?
Existe uma forte influência do ensino fundamental na pré-escola. Estudiosos e pesquisadores apontam uma “escolificação” ou “primarização” da educação infantil. Em alguns debates, aparece a ideia de que essa subetapa foi “sequestrada” pelo ensino fundamental. Penso que isso seja decorrência da identidade do sistema educacional, já que, no processo de integração da educação infantil, não se reviu para atender às características dessa faixa etária. Essa tendência existe e é perversa. Novamente aponto as Diretrizes Curriculares como um esforço considerável para enfrentar a identidade específica da pré-escola, que tem como objetivo “garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças”.

Que ações o MEC está articulando para ajudar o professor de pré-escola?
Nossa prioridade, no contexto atual, é implementar ações que afirmem a identidade da educação infantil como uma etapa indivisível da educação básica  que atende crianças de 0 a 5 anos na creche e pré-escola.

A alfabetização faz parte do processo de trabalho com as crianças de 4 e 5 anos?
Diria que a educação infantil dá prosseguimento ao processo de apropriação da linguagem escrita que se inicia desde o momento em que a criança começa a sua interação com o mun­do. Hoje sabemos que, nesse momento muito inicial, a criança já começou seu processo de alfabetização, aprendendo a representar sentimentos, ideias, desejos, por meio de gestos, rabiscos, desenhos e outros sistemas de representação, até compreender como funciona o sistema de escrita. Isso não significa, em absoluto, que a alfabetização se completa na educação infantil, sobretudo porque o conceito de alfabetização é algo muito mais complexo do que relacionar letras e sons.
Diante disso, não se trata de dizer se a pré-escola alfabetiza ou não alfabetiza, mas de explicitar quais são as práticas adequadas que a educação infantil deve proporcionar para ampliar as possibilidades da criança em relação à linguagem escrita. O debate “se alfabetiza ou não” coloca uma falsa questão e alimenta polêmicas acadêmicas que não contribuem com os dilemas do cotidiano da educação infantil. É preciso ficar claro que a educação infantil não tem como objetivo a alfabetização plena das crianças. No entanto, é inegável que ela tem importante papel na formação do leitor.

E quanto ao livro didático, ele deve ser utilizado com essa faixa etária?
O livro didático não deve ser usado porque as práticas educativas na educação infantil não pressupõem a apreensão de saberes escolares, ainda que essa apreensão possa acontecer. Contudo, as práticas educativas dessa etapa precisam de materiais didáticos, e a Emenda Constitucional nº 59, de 2009, que tornou obrigatória a matrícula na educação básica a partir de 4 anos, estendeu a todas as etapas da educação básica os programas suplementares de material didático, transporte, alimentação e assistência à saúde. É importante constatar que a proposta é de material didático. Discutimos isso com um grupo de especialistas. Na educação infantil, os materiais didáticos são os livros de literatura infantil e os livros de narrativas não ficcionais que despertem a curiosidade da criança para temas em que ela tem interesse, ou seja, bons livros informativos. Além disso, os brinquedos também são importantes materiais que apoiam as práticas pedagógicas na educação infantil. Nosso objetivo é definir um programa nacional de material pedagógico da educação infantil caracterizado pela compra de brinquedos, de livros de literatura infantil, de livros ilustrativos e de outros materiais de apoio para a prática pedagógica. Essa é a perspectiva com a qual estamos trabalhando. Nessa perspectiva, a partir do início de 2014, o MEC, por meio do FNDE e no âmbito do PNBE, distribuirá um acervo de 50 títulos de literatura infantil (0 a 6 anos) por turma de educação infantil.

Cabe também destacar o papel da brincadeira na pedagogia para crianças de 4 e 5 anos. Como ela se apresenta no trabalho pedagógico?
A brincadeira e o jogo, juntamente com as interações, são o eixo vertebral da pedagogia para crianças de 0 a 6 anos. A brincadeira é, para a criança, um dos principais meios de expressão que possibilita a investigação e o conhecimento sobre as pessoas e o mundo. Valorizar a brincadeira significa oferecer espaços, atividades e interações como práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular. Na educação infantil, ela depende de condições prévias, como aceitação do brincar como direito da criança; compreensão da importância do brincar; organização de ambientes educativos especialmente planejados que ofereçam oportunidades de qualidade para brincadeiras e interações. O MEC está distribuindo a publicação Brinquedos e brincadeiras nas creches: manual de orientação pedagógica e disponibilizando no site do FNDE o edital de pregão eletrônico para a compra de brinquedos.
  • Rita Coelho

A produção textual no ensino médio

Magali Lopes Endruweit

Para que o ensino de texto seja possível, é necessário que o professor delimite critérios para a escrita. Não basta, porém, a clareza metodológica: o assunto deve ser proposto partindo de questões que digam respeito ao aluno.

O maior desafio do professor de português sempre foi ensinar redação. E aqui podemos entender redação como qualquer texto escrito para a escola em resposta a uma proposta feita pelo professor. Em todos os níveis de ensino a situação se repete: no ensino fundamental, nos consagrados textos sobre as férias; no ensino médio, na infindável preparação para o vestibular e, finalmente, na universidade, quando o aluno se depara com textos acadêmicos sem que tenha conseguido entender como se expressar na língua escrita. Em consequência, o maior desafio do aluno sempre foi aprender redação. Na verdade, o desafio é maior, pois, bem antes de aprender a fazer uma redação para a escola, o aluno precisa aprender a escrever.

Fala-se de redação. Outra coisa é falar de escrita. Quem escreve, escreve redação para a escola, para o vestibular ou para qualquer outro concurso. Escreve também qualquer tipo de texto ou de gênero e, com o mínimo de dedicação, pode escrever um artigo acadêmico. Saber essas diferenças de gênero é o final do ensino, apenas uma adequação de um longo processo que o aluno deveria fazer na escola. Deveria, mas não faz. Começa-se pelo fim, ensinando-se a diferença entre uma receita de bolo e uma receita médica, solicitando textos pelos quais os alunos não têm o menor interesse.

Mas isso não é de hoje. O ensino da escrita parece ter sido — e ainda é — o calcanhar de Aquiles do professor de português e a denúncia do fracasso da escola: nossos pais fizeram “composição”, nós fizemos “redação” e nossos alunos “produzem textos”. E os escândalos rondam as provas de seleção, denunciando a pouca intimidade dos alunos com o texto escrito e a abissal distância entre ensinar redação na escola e aprender a escrever para a vida.

O momento que vivemos hoje é o resultado da longa trajetória do ensino de texto na escola. Entre as décadas de 1970 e 1980, o ensino volta-se para as teorias da comunicação, prioriza o uso e vê a língua como um instrumento de comunicação transparente, afastando-se gradativamente do ensino da gramática. A discussão sobre o ensino ou não de gramática na escola é tema de grande interesse na época. Por conta disso, textos não literários, do dia a dia, passam a fazer parte dos livros didáticos; a linguagem oral torna-se parte das aulas. A visão instrumental domina a concepção de língua como veículo de comunicação.

Em contrapartida, a escola sustenta a necessidade de o aluno ser o autor de seu texto, garantindo à escrita o lugar, por excelência, de instauração da subjetividade na linguagem. Tal posicionamento reflete-se nas afirmações do tipo “o aluno precisa se tornar sujeito de seu texto”, ou “a escrita é o lugar de emergência da subjetividade”, ou ainda “os alunos escrevem sempre igual”, protestos que demonstram a insatisfação por parte dos professores em relação ao escrever em sala de aula.

Parece que existe certa vagueza de tratamento desse conceito de subjetividade, oscilando entre uma concepção ampla — que poderia ser parafraseada por algo como manifestação linguisticamente marcada daquele que escreve — até uma concepção mais restrita próxima de algo como qualidade estilística superior. Nesse sentido, não é exagero apontar essa busca pela subjetividade como uma condição perseguida nos textos escritos na escola, atributo responsável pelas mais variadas tentativas de ensinar o aluno escrever para esse ou aquele propósito. Significa que, para a escola, escrever é principalmente um ato utilitário. Se não é verdade, como entender o direcionamento das aulas de língua materna para a construção de um texto que contemple as exigências do concurso vestibular?

Os efeitos dessa visão não podem ser minimizados. Por conta desse entendimento, escrever bem significa escrever conforme as regras norteadoras desse texto ideal. Ideal em forma e também em conteúdo, separação que abriu a discussão em dois polos distintos: a importância ou não da presença da redação no ensino médio. Como consequência, praticamente dois momentos recebem a atenção nas aulas de língua portuguesa: a gramática normativa e o ensino de redação.

Creio não ser exagero afirmar que há submissão do ensino médio em relação ao vestibular, ou seja, não é difícil suspeitar da existência de uma estreita relação entre o que é pedido no vestibular e o que é ensinado em sala de aula. Lembremos que, quando a redação não mais constou na prova de vestibular, em 1970, também sumiu da sala de aula no ensino médio. Nessa época, jornais e revistas apontavam o ensino de língua portuguesa nas escolas como decadente e insatisfatório; o Conselho Federal de Educação emitiu parecer sobre o assunto; educadores indicavam a presença de grave crise no ensino da língua.

Enfim, em meio à grita generalizada, o uso de provas de múltipla escolha e a ausência de redação no concurso vestibular foram apontados como responsáveis pelo fracasso dos jovens no uso do português escrito. Em resposta, a prova de redação surgiu como medida de correção para a crise da língua portuguesa. Demasiada responsabilidade atribuída ao ensino médio e particularmente ao ensino de redação, ainda mais em se tratando de um gênero específico de texto, com um único fim que não extrapola o âmbito do concurso vestibular.

Para os alunos, a língua escrita é encarada como capaz de significar por si só, em nada semelhante à língua falada no dia a dia, capaz de produzir todos os sentidos desejados. O texto escrito em sala de aula, para a escola, não pretende incluir-se na discussão do mundo real sobre o tema em questão; tem seu fim determinado no próprio momento da escrita: não nasceu para significar, para somar-se a uma discussão, para dizer como seu autor encara o mundo. Na verdade, passa à margem do diálogo com outros textos do mundo lá fora.

Como se vê, tomar a escrita unicamente como representação foi um equívoco. Dele resultaram os problemas que tornaram o ensino da escrita o grande desafio da escola, fazendo o aluno pensar que escrever era apenas passar para o papel o que já havia pensado antes. Grande engano. Antes de mais nada, existe a necessidade de o locutor se desvincular da representação da língua falada como exteriorização e comunicação. A escrita é outro estatuto da mesma língua. Se na fala como atividade é possível a exteriorização dos pensamentos, na escrita, ocorre a transposição da linguagem interior: rápida e incoerente, na medida em que retorna apenas sobre o próprio locutor. É a escrita que deve tornar inteligível essa linguagem.

No entanto, o reconhecimento de que a escrita é diferente da fala, em um primeiro momento, apenas reforça para o aluno a dificuldade de escrever. Como substituir a confortável situação estabelecida pelo diá­logo oral em uma conversa por uma relação ausente com um interlocutor imaginado, mas nem por isso menos desconhecido? Com esse distanciamento exigido pela escrita, começam a faltar os elementos presentes na fala: se na situação de diálogo a fala é dirigida para alguém, situada em um contexto atual criado pela referência discursiva, na escrita essa relação retorna sobre o próprio locutor. É um momento de ausências que a escrita exige.

Escrever a ausência
De acordo com Benveniste (2012, p. 95), “tornar inteligível a linguagem interior é uma operação de conversão que acontece junto com a elaboração da fala e a aquisição da escrita”. Entender a escrita como um modo diferente de estar na língua significa não apontar hierarquia entre fala e escrita, mas apenas pontuar suas peculiaridades. E não pensar em representação traz para o ensino de texto outra perspectiva em que a escrita não mais simula uma fala pronunciada: ela significa. Então, se é assim, por que é tão difícil escrever? Sabemos que escrever não é apenas colocar as ideias no papel, que não basta seguir os esquemas, observar os gêneros, escrever corretamente e seguir as regras gramaticais para termos um texto. O que falta? Penso que falta entender a ausência de que a escrita é feita.

A primeira questão, a mais aparente de todas, aponta a falta de interlocutor presente, pois na escrita não sabemos nem quem fala nem quem escuta. Se pensarmos no aluno, ainda mesmo na universidade, essa é a grande questão com que nos deparamos em sala de aula. Há que se imaginar um interlocutor, distante do contexto, fora do convívio diário. Contudo, será preciso criar uma relação de diálogo com esse desconhecido. E é assim desde as primeiras séries em que o texto é ensinado. Mas será possível ensinar ausências?

A hipótese é de que a leitura pública do texto em sala de aula funcionaria como um nível intermediário entre a presença do interlocutor na fala e a sua ausência na escrita. No momento da leitura para os colegas, a escrita faz sentido para um número de pessoas ainda presentes, mas que não representam todos os leitores possíveis do texto. Elas podem fazer — e efetivamente fazem — ponderações próprias de um ouvinte. Ou seja, estão presentes, embora simbolizem uma ausência. Há, nesses ouvintes-leitores, certo distanciamento da conversa do dia a dia, centrada em um contexto conhecido, já que é pouco provável que todos os alunos de uma turma mantenham uma relação de proximidade. Entre eles, há uma convivência física, mas uma separação interlocutiva. Ainda que mantenham uma relação de convívio próximo (talvez em turmas pequenas), a especificidade da escrita pressupõe a discussão de assuntos pouco abordados nas conversas. Retomando o que diz Benveniste, para escrever é preciso tornar inteligível a linguagem interior, que apresenta suas especificidades, bem diferentes da fala, pois há diferença entre o grau de consciência que a fala e a escrita demandam do locutor.

Para que o ensino de texto seja possível, é necessário que o professor delimite critérios para a escrita. O primeiro deles é tratar de um único assunto ou unidade temática, pois quem se propõe a dizer tudo não consegue dizer muito de nada. O segundo critério é ter uma questão para ser discutida ou questionamento não resolvido, já que, se estiver solucionado, não há por que falar dele. É mito a ideia de que se escreve o que está pronto e resolvido na nossa cabeça. Pelo contrário: escrevemos para poder encontrar uma saída para o problema que temos. Já o terceiro critério diz respeito à capacidade de olhar o problema de fora ou com objetividade. É necessário enxergar a questão a ser tratada do mesmo ângulo do leitor, posição que impulsiona o último critério, que é a capacidade de oferecer provas ao leitor ou concretude, deixando que ele próprio possa julgar os argumentos apresentados pelo autor, sem precisar confiar no que lhe é contado. O leitor sempre quer provas.

Não basta, porém, apenas ter a clareza metodológica para trabalhar a escrita em sala de aula. O assunto deve ser proposto partindo de questões próximas ao aluno, que lhe digam respeito bem de perto: falar de si e de suas questões é o primeiro passo para falar do que está longe. Portanto, os temas devem fazer alusão à apresentação pessoal, ao cotidiano, a uma emoção, a um aprendizado, levando o aluno a olhar necessariamente para si, contando-se ao leitor. Por último, lembremo-nos que nenhum texto nasce pronto, que reescrevê-lo é a condição da língua escrita, é a condição que a busca da palavra adequada exige.

Finalmente, vale lembrar algumas observações desenvolvidas ao longo deste texto e sua relação com o ensino. Ao tratar da especificidade da escrita, é importante salientar o fato de que fala e escrita são diferentes formas de estar na língua, visto que possibilitam dois tipos de enunciação que, se muito têm em comum, também muito têm de diferente. Entender essas diferenças faz parte do papel do professor, pois a forma pela qual enxerga a língua condiciona todo o seu ensino.
 

Os perigos da rede

Os perigos da rede

Reportagem // Silvana Azevedo

Ignorando o alcance da internet e desconhecendo a legislação, muitos jovens expõem sua privacidade sem cautela, usam redes sociais antes da idade permitida, praticam e sofrem bullying virtual. Saiba como ajudá-los a se proteger.
 
Em 2009, um vídeo com cenas de sexo entre adolescentes, gravado em uma escola em Belém do Pará, chegou à internet, causou indignação, chocou pais e professores e preocupou psicólogos. “O relato que eu tive do educador que acompanhava o caso foi de que o vídeo circulou na cidade toda, em muitas escolas e, ao invés de gerar constrangimento, fez com que os envolvidos se tornassem microcelebridades no contexto escolar”, conta o psicólogo Rodrigo Nejm, da associação SaferNet. Em sua opinião, o caso estimulou outros adolescentes a também fazer esse tipo de vídeo. “Para eles, teve um efeito positivo. Isso me surpreendeu muito”, afirma.
 
Em vez de apontar os meios de comunicação digitais e as redes sociais como vilões, o especialista entende que esse tipo de comportamento não é fruto da internet, mas sim de uma sociedade que supervaloriza a exposição do corpo e da erotização precoce da infância e da adolescência, o que pode ser visto em contextos como a música, o cinema, a televisão e a moda. “De certa maneira, os jovens só estão respondendo a esses estímulos e reproduzindo os conceitos culturais presentes nas outras mídias”, acredita.
 
Fundada em 2005 por um grupo de cientistas da computação, professores e bacharéis em Direito, a SaferNet é uma referência nacional no tratamento aos crimes e violações aos direitos humanos na internet. Rodrigo Nejm é diretor de prevenção e trabalha no sentido de provocar esse tipo reflexão, partindo para uma postura mais proativa nas escolas, incorporando questões de ética e cidadania na pauta curricular.
 
Cerca de 20 mil educadores já participaram do programa da SaferNet, porém ainda há muito a ser feito nesta área. De acordo com a instituição, o Brasil é um dos países onde as crianças e os adolescentes passam o maior número de horas diante das telas de celulares, computadores e televisores. “As estatísticas demonstram que o uso intenso é limitado ao lazer e ao entretenimento”, revela Nejm. “Também ficou explícito nas pesquisas que eles não dominam as próprias ferramentas das redes sociais”, relata o psicólogo, que cursa doutorado em gerenciamento da privacidade em ambientes digitais na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para ele, este é um risco, pois a maioria dos usuários demonstra que não lê os termos de uso dos sites e desconhece as ferramentas de configuração de privacidade. Além disso, o adolescente não se dá conta da dimensão do que publica nas redes sociais e acaba, muitas vezes, em situação vulnerável.
 
A idade é outro problema, já que menores de 13 anos não estão autorizados a criar perfis na maior parte das redes sociais. Segundo a advogada Guataí de Paula, especialista em direito digital, uma pesquisa realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil mostra que 25% das crianças e dos adolescentes brasileiros entre 9 e 16 anos não só têm um perfil na rede social, como ele ainda é aberto ao público: 57% delas informam a idade, o que pode ser considerado um ato infracional, previsto no artigo 299 do Código Penal.

Responsável pelo iStart, instituto fundado pelo escritório Patrícia Peck Pinheiro Advogados, que oferece aos jovens conteúdos relacionados a ética e segurança digital, Guataí alerta para a importância de educá-los para o uso da internet.  O movimento Criança Mais Segura na Internet (www.criancamaissegura.com.br), que integra o iStar, tem como objetivo principal a educação de crianças, jovens, pais e professores, por meio da orientação para o uso seguro das ferramentas digitais. No site do movimento são disponibilizados gratuitamente vídeos e cartilhas que ensinam a comprar com segurança na internet, a adotar posturas adequadas nas redes sociais e outras condutas importantes. As escolas podem solicitar palestras de conscientização sobre o uso ético, legal e seguro das tecnologias digitais.
 
A SaferNet também tem criado instrumentos pedagógicos para as escolas a fim de levar os jovens a refletir sobre o tema, pensando bem antes de divulgar uma informação em um ambiente que reúne bilhões de pessoas. Para Rodrigo Nejm, o grande desafio é conectar a educação para o exercício da cidadania, o exercício dos direito humanos e o respeito à diversidade. “Pais e professores podem não saber usar tão bem a internet como os filhos e os alunos, mas certamente têm um domínio maior, ou deveriam ter, sobre as noções de cidadania”, adverte. “A criança pode aprender sozinha a usar o Facebook, mas não aprende sozinha a ter cuidados nos ambientes públicos”.
 
Socorro on-line
Além de dialogar com as escolas, desenvolver videoaulas e cartilhas e promover palestras, a SaferNet inaugurou mais uma frente de trabalho em 2012. Trata-se do HelpLine (www.canaldeajuda.org.br), um canal que possibilita a pessoas de qualquer lugar do Brasil falar on-line, das 13h às 19h, ou por e-mail, 24 horas por dia, com um psicólogo especializado, sem qualquer tipo de custo. “Em um ano já tínhamos mais de mil pedidos de ajuda”, informa a psicóloga Juliana Cunha, coordenadora do programa, que atende ocorrências que vão do arrependimento de postagem de um conteúdo gerado pelo próprio usuário a situações de sexting (exposição de fotos íntimas ou de conteúdo sexual).
 
Ofensas, discriminação étnica, intimidação e amea­ças, o chamado cyberbullying, também são recorrentes, e a profissional explica que, muitas vezes, o canal é acionado por adolescentes que temem contar para os pais. “O cyberbullying é diferente do bullying e ainda mais nocivo, porque o constrangimento não fica restrito a um espaço físico determinado, como a escola”, destaca. “Para onde quer que o indivíduo vá, o problema vai junto. As vítimas sofrem consequências que afetam a sua vida social, os seus relacionamentos e a sua saúde”, explica Juliana, que, além de dar suporte psicológico, também orienta a respeito de questões legais.
 
Segundo a especialista, para muitos adolescentes, existir é estar na rede. Ela alerta, porém, que esse comportamento requer cuidados redobrados e que gerenciar a própria privacidade tornou-se um desafio. “Antigamente as pessoas cometiam ou falavam pequenas bobagens na adolescência e as histórias caíam no esquecimento ou se transformavam em motivo de risos nos encontros de amigos. Hoje não se tem mais direito ao esquecimento”, ressalta.
 
Registro permanente
Essa opinião é compartilhada pelo sociólogo e educador em mídias e tecnologias educacionais Yuri Bastos Wanderley, coordenador geral da Rede Anísio Teixeira do Estado da Bahia. “Na internet, a informação fica registrada permanentemente, não se pode voltar atrás no que foi dito, e o dado está acessível a qualquer pessoa, a qualquer momento”, observa. Ele também lembra que muitas opiniões tendem a mudar no decorrer da vida, por isso é preciso tomar cuidado com os posicionamentos publicados nas redes sociais. Por isso, defende que os valores éticos de um indivíduo devem ser replicados da vida real para o mundo virtual, embora os diferentes espaços requeiram comportamentos diferenciados.
 
“O nosso dever, como educadores da rede pública, é educar para a ética cidadã. É uma educação que vai para além da sala de aula”, afirma.
 
O Instituto Anísio Teixeira, vinculado à Secretaria de Educação, oferece programas de difusão das mídias e tecnologias da informação e da comunicação na rede de ensino para formar professores dos núcleos de tecnologia educacional e professores de projetos pedagógicos, os quais desempenham o papel de multiplicadores. Assim, os ensinamentos chegam às 1.400 escolas estaduais, através dos 36 mil professores da rede, beneficiando 1,2 milhão de estudantes. Videoconferência são realizadas em parceria com a SaferNet, que promove debates e discussões a respeito do uso seguro e ético da internet, disponíveis para qualquer educador da rede estadual da Bahia. “Entendemos que os novos meios de comunicação tecnológica são mais uma forma de expressão da nossa sociedade, mais um espaço onde as pessoas estão se encontrando, se relacionando e construindo coisas em comum. Contudo, as redes sociais não substituem as relações face a face”, observa Yuri Bastos Wanderley.
 
Em sua trajetória como educador em tecnologia, o coordenador da rede Anísio Teixeira reuniu subsídios para analisar o comportamento dos jovens na internet e verificou que aqueles que têm dificuldade de se socializar nas relações do bairro e da escola acabam transferindo as expectativas para o mundo virtual, criando perfis que valorizam suas qualidades e escondem características que muitas vezes os fazem sofrer bullying nas relações presenciais. “É importante analisar por que o jovem prefere passar o tempo dele na internet. Será que a internet é perfeita? Ou será que as relações que ele mantém fora são repressoras? O uso excessivo da internet talvez seja uma consequência da maneira como as pessoas estão se relacionando fora dela”, alerta.
 
Liberdade vigiada
O subsecretário de Novas Tecnologias Educacionais da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Rafael Parente, vê a internet como uma ferramenta muito recente, em constante transição, e acredita ser necessário um processo de educação que torne os jovens mais críticos e conscientes: “A ética, que já é tão rara no mundo presencial, é praticamente inexistente no mundo virtual”. Ele aposta no desenvolvimento de habilidades e competências para que os educadores possam apropriar-se das ferramentas tecnológicas da melhor forma possível.
 
Para isso, a Secretaria Municipal do Rio de Janeiro desenvolveu um curso on-line para os professores da rede, o Transformação 3.0, cujo conteúdo aborda temas relacionados a segurança na rede, ética e riscos a que os usuários estão expostos. “Acreditamos em um processo de educação complexo, trabalhoso, que exige diálogo e reflexão”, diz o subsecretário. “Também vemos a proibição como um caminho mais curto e menos eficiente, por isso a melhor atitude a se tomar é trabalhar com uma conscientização aprimorada para que os alunos se tornem autônomos, conscientes dos limites para suas ações e seus comportamentos”, explica.
 
Esse método já é aplicado no Ginásio Experimental das Novas Tecnologias Educacionais (GENTE), escola instalada na Rocinha, cujo ensino é personalizado, sem separação de turmas, e tornou-se possível graças ao uso intensivo do computador. Nessa escola, quanto mais o aluno prova que é responsável, mais o professor o deixa livre. Quando existem excessos, como o acesso a páginas indevidas, o estudante sofre consequências, que variam de acordo com a gravidade.
 
Os computadores não têm filtros, mas há softwares que permitem ao professor enxergar as telas de todos os alunos. Segundo o subsecretário, em toda a rede municipal de ensino há 670 mil alunos, e as ocorrências oscilam entre 10 e 30 por mês. “Não podemos ir pelo caminho mais fácil e pensar que, se temos problemas, devemos proibir e abrir mão dos recursos tecnológicos”, observa. Para ele, também é papel dos educadores propor esse tipo de educação e de reflexão na escola. “É um desafio essencial para o futuro dos nossos alunos. Eles usarão essas ferramentas e precisarão estar conscientes de que devem agir com civilidade também no mundo on-line”, afirma Parente. 
 
Como usar a internet de maneira ética e segura
 
  1. Leia os termos de uso dos aplicativos e dos sites.
  2. Use senha. Além de impedir o acesso não autorizado a um dispositivo, ela identifica o usuário e é imprescindível para a configuração de um crime.
  3. Mantenha o antivírus atualizado.
  4. Seja prudente ao baixar conteúdos. Arquivos “piratas” podem configurar crime de violação de direitos do autor, previsto no artigo 184 do Código Penal.
  5. Esteja atento ao compartilhamento de imagens. Evite expor excessivamente a intimidade, arriscando a própria segurança e a de sua família.
  6. Tenha cuidado para não violar direitos de imagem ao compartilhar fotos com amigos ou conhecidos. 
  7. Use os mecanismos de privacidade dos aplicativos e sites.
  8. Lembre-se que vítimas de cyberbullying devem recolher provar, denunciar o agressor e buscar ajuda especializada. Muitas vezes, as agressões podem caracterizar-se como algum dos crimes contra a honra, previstos nos artigos 138 a 140 do Código Penal. É importante que a vítima não se transforme em agressor.
  9. Há quem se sinta protegido por um perfil falso para praticar crimes e agressões na internet. O artigo 307 do Código Penal estabelece uma pena para esses casos, podendo variar de multa ou detenção de três meses a um ano, dependendo da gravidade do crime.
  10. Quem tem o computador violado, sem autorização expressa, está protegido pela Lei nº 12.737/2012. Apelidada com o nome da atriz Carolina Dieckmann, que teve seu computador invadido e imagens divulgadas sem autorização, a lei alterou o Código Penal para incluir a tipificação de alguns crimes digitais, como o de invasão de dispositivo informático. A pena pode ser de até dois anos de prisão. 
  11. O usuário também pode contar com leis que tratam de temas específicos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente.
 
Crédito da imagem:
Foto: Hélio Melo

MT - Os tradicionais mercados e feiras livres de Cuiabá

Quem vai às compras hoje nem pode imaginar que esse singular comércio cuiabano já foi uma bagunça que faltava gente pra ver

NELSON SEVERINO



Quem vai às compras nos dias atuais nos dois principais terminais atacadistas de Cuiabá – o do Porto e o do Verdão – e vê aquela abundância de produtos que são ofertados à clientela, sem contar as feiras livres domingueiras que se espalham pela capital mato-grossense, nem de longe pode imaginar que esse singular comércio cuiabano já foi uma bagunça que faltava gente pra ver. Como toda feira livre que se preza...

Hoje, todo tipo de mercadorias chega a Cuiabá em grandes containers, caminhões frigoríficos e ate de avião, tudo isso sob rigorosa fiscalização da saúde pública. Em tempos bem remotos, não tinha nada disso! Os gêneros alimentícios, incluindo peixes, naturalmente, chegavam na primeira feira livre de Cuiabá, a do Largo da Cruz das Almas, hoje Praça Ipiranga, de canoas ou pequenos botes, impulsionados a remo, através do córrego da Prainha.
Arquivo Pessoal/Aníbal Alencastro
Feira da Avenida General Ponce, além de ser o centro comercial nos finais de semana, era palco das batalhas de confetes nos períodos carnavalescos
O transporte dos produtos que a população consumia era feito pelos próprios chacareiros e sitiantes que subiam ou desciam o Rio Cuiabá até a “Boca do Valo”, que é onde o córrego da Prainha se encontra com o grande rio que banha a capital. Na época, o córrego da Prainha, com um grande volume de água, era totalmente navegável, facilitando o trabalho dos remadores, que iam vender diariamente ou de vez em quando seus produtos aos cuiabanos.

Geógrafo, historiador e professor universitário aposentado, o escritor Aníbal Alencastro dá um mergulho no passado e relembra detalhes interessantes dos mercados e feiras livres de Cuiabá. A confusão que caracteriza as feiras era uma diversão para os seus frequentadores habituais. O texto que se segue é de sua autoria. As fotos que ilustram o material jornalístico são de Laércio Ojeda.  Alencastro é autor de vários livros, entre os quais Cuyabá histórias, crônicas e lendas (já esgotado) e colaborador do HiperNotícias.

A história das feiras e mercados de Cuiabá tem suas origens no antigo Largo Cruz das Almas, hoje Praça Ypiranga.

No século XIX, na região ribeirinha do Rio Cuiabá, havia muitos sítios e chácaras que produziam em pequena escala produtos hortifrutigranjeiros e cujos proprietários, que também eram exímios pescadores, transportavam quase que diariamente tudo o que tiravam de suas terras em suas modestas canoas ou botes, subindo ou descendo o rio até a “Boca do Valo”, ou seja, a foz do córrego da Prainha com o Cuiabá.

Com suas canoas abarrotadas de cargas, subiam o córrego da Prainha, que na época era navegável, em direção a cidade, onde em frente ao Largo Cruz das Almas atracavam suas embarcações e descarregavam aquelas variedades de mercadorias e onde de forma improvisada vendiam seus produtos aos clientes que ali apareciam. Entre a variedade de produtos, vendiam também peixes como pacus, curimbatás, piraputangas, pintados, dourados, cacharas, etc.

Aquele espaço do largo logo se converteu em um pequeno comércio informal (1ª feira livre), preocupando o poder público, que compreendendo a necessidade do evento, resolveu empreender a construção de um mercado público para melhor acomodar aqueles feirantes e para trazer, automaticamente, benefícios à sociedade e mesmo para o governo, através da cobrança de impostos.

Laércio Ojeda
Feira da Avenida Ponce foi transferida para o Arsenal de Guerra, atrás do Estádio Presidente Dutra

Esse fato se deu na administração do presidente da Província de Mato Grosso, Augusto de Leverger (1852), com a construção do casarão do mercado, onde funciona hoje o Ganha Tempo.

A denominação do Largo da Cruz das Almas está atrelada ao nome do córrego Cruz das Almas, que existiu no meio da Avenida Generoso Ponce e cuja vertente vinha da então Rua do Coxim e da Cacimba do Soldado.

O Largo da Cruz das Almas, com o passar do tempo, ganhou o nome de Praça Marquês de Aracaty, em homenagem ao 8º Capitão General da Capitania de Mato Grosso, João Carlos Augusto Oeynhansem de Gravemberg, quando a praça foi urbanizada e cercada com grades de ferro.

Já no século XX a Câmara Municipal achou por bem trocar o nome do local para Praça do Ypiranga em homenagem a data cívica de 7 de Setembro,.relembrando o Grito da Independência às margens do riacho do Ypiranga, em São Paulo.

O antigo casarão do Mercado Público perdeu sua condição de mercado, quando foi impostamente ocupado pela Força Militar no período da Guerra do Paraguai, passando a servir de enfermaria aos soldados acometidos de varíola, a temida bexiguinha preta.

Em 1910, o então intendente geral do município de Cuiabá, tenente coronel Avelino de Siqueira, foi autorizado através da Resolução nº 75 e aprovada pela Câmara Municipal a contrair empréstimo de quinhentos contos de réis para construir o segundo Mercado Público, que foi edificado na Rua Formosa (hoje Joaquim Murtinho), esquina com a Avenida Generoso Ponce (antiga Vilas Boas).

O tradicional Mercado Público foi um dos mais importantes centros de abastecimento de Cuiabá, principalmente depois de desativada a navegação pelo córrego da Prainha, evidentemente por causa do assoreamento do seu leito.

Com isso, o abastecimento do novo mercado passou a ser compensado pela chegada de tropas de mulas advindas de várias localidades ao redor de Cuiabá, entre elas Nossa Senhora do Livramento, Nossa Senhora da Guia, Aricá, Chapada dos Guimarães, Santo Antonio do Rio Abaixo, etc.

Orlando Nigro/Acervo Leopoldo Nigro/C&C
Em 1964 a Prefeitura resolveu transferir todos os feirantes para o Mercado do Porto, no antigo Campo do Bode

Até os anos 50, era comum se ver nas ruas de Cuiabá as figuras dos tropeiros com seus bois de cangalhas carregados de mantimentos, lenhas, cachos de bananas, entre outros produtos do campo, dirigindo-se para o grande quintal do Mercado Público onde as ripas de mulas ou bois eram devidamente acomodadas, bebendo água de um velho poço artesiano ali existente.

O velho casarão do mercado tinha a sua frente principal para a Rua Joaquim Murtinho, com um belo portão de ferro na entrada e suas amplas dependências, permitindo a exposição e mostra dos mais diversos produtos trazidos pelos tropeiros, acondicionados em bruacas de couro cru ou em sacos de mantimentos. Era intenso o movimento comercial entre vendedores e compradores.

O espaço do Mercado Público era imenso, principalmente o quintal (área externa), que era cercado de grades de ferro e algumas vezes requisitado pelas companhias circenses que visitavam Cuiabá, a exemplo do inesquecível Circo Garcia, com sua maior atração, o leão “Minelique”, que muito emocionou o público cuiabano.

AS FEIRAS LIVRES

As feiras livres sempre fizeram parte das tradições cuiabanas. Uma vez desativada a do Largo da Cruz das Almas por ocasião da construção do Mercado Público, também pela urbanização da Praça Marquês de Aracaty (a Praça Ypiranga), a feira se deslocou para a Avenida General Ponce (antiga Travessa Vilas Boas), recém construída pelo então prefeito Isaac Póvoas no ano de 1939, quando esta avenida foi calçada com paralelepípedo e o córrego foi encoberto.

Esta grande feira se tornou o espaço tradicional de Cuiabá: além de ser o centro comercial nos finais de semana, ali era realizada as batalhas de confetes nos períodos carnavalescos e o ponto atrativo para os desfiles dos eventos do Rei Momo. Sempre esteve presente naqueles eventos a tradicional Rádio Clube Voz D’Oeste, irradiando os desfiles.

Com a modernização da Avenida Generoso Ponce no final dos anos 60, quando foi alargada e asfaltada, ela perdeu aqueles ares românticos do calçamento de paralelepípedos e dos tradicionais postes de ferro assentados no meio da avenida, com luminárias de dois braços, com imensas lâmpadas incandescentes. Nesse tempo, nossa luz elétrica era produzida pela Empresa de Força Luz e Água (Efla).

Tudo mudou radicalmente: a nossa da Avenida Ponce foi transladada para a Rua 13 de Junho, em frente ao Arsenal de Guerra (Sesc Arsenal), localizada atrás do Estádio Presidente Dutra.

No ano de 1964 a Prefeitura Municipal resolveu transferir todos os feirantes para o amplo Mercado do Porto, localizado no antigo Campo do Bode nas proximidades do velho Mercado do Peixe, construído no distante século XIX, no ano de 1899, nas margens do Rio Cuiabá e que foi transformado no Museu do Rio Hid Alfredo Scaff, antigo proprietário da Empresa de Navegação Scaff Gattas & Cia.

O VERDUREIRO–PEIXEIRO

Falando em feiras e mercado, ponto de encontro dos pequenos comerciantes, isto é, pequenos mais importantes para o nosso dia a dia, proporcionando à nossa gastronomia produtos de boa qualidade, etc., não podemos nos esquecer dos tradicionais e inesquecíveis verdureiros-peixeiros. A começar do fato da criançada mudar o vocábulo vulgarmente para “verduleiro”.

Lembro-me dos meus dias de criança, quando a mamãe mandava eu ficar na porta de casa a espera da passagem do verdureiro ou peixeiro, para poder comprar aqueles produtos fresquinhos!

Os verdureiros ou peixeiros, assim denominados pela população, eram pessoas determinadas, que altas madrugadas desciam até o mercado do peixe no Porto, com seus modestos “carrinhos de mão” para comprar o peixe fresco ou outros produtos como verduras, temperos, frutas, etc., para vender de porta em porta para a população.

E aí, ainda em plena madrugada, seguindo seus costumeiros roteiros pelas ruas desertas da cidade, saiam gritando: “ó o peixe”, “ó o verdureiro”. Na nossa Cuiabá do passado, esse ritual fazia parte do nosso cotidiano.

OS PADEIROS

Naquele mesmo ritual da madrugada outro personagem que fazia parte daquele teatro urbano era o padeiro, geralmente montado a cavalo entre dois imensos balaios abarrotados de pães, ainda quentinhos recém tirados dos fornos de lenha das tradicionais padarias da cidade. Lá iam eles, os padeiros cuiabanos, deixando os pães nas janelas das casas. Alguns proprietários fincavam alguns pregos na janela onde eram afixados os pães...

Lembro-me da rapaziada que ao retornar dos bailes já na madrugada, vindos dos clubes Dom Bosco ou Náutico, pegavam os pães nas janelas das casas... mas sempre deixando um ou dois para que o morador do imóvel não ficasse sem o seu pão de cada dia...