quarta-feira, 26 de março de 2014

Os surdos aprendem melhor nas escolas especiais ou regulares?

Lodenir B. Karnopp & Maura Corcini Lopes

“Não é somente o espaço que determina que os surdos aprendam, sejam incluídos e também se socializem, mas as condições para firmar um contrato comunicativo e pedagógico”

“Aprender na escola”. Tal enunciação, aparentemente simples, exige que nos debrucemos sobre o que significa aprender na contemporaneidade. Também significa, já que se trata de pensar a educação de surdos e a aprendizagem, de estranhar por que pessoas surdas não estão aprendendo na escola. Uma das primeiras lições que aprendemos como docentes é que os sujeitos devem ser conduzidos à aprendizagem e que todos podem aprender, mesmo que em tempos e espaços diferentes ou sob condições distintas. Não há razões para que os surdos não aprendam na escola se nela forem oferecidas as condições para tal aprendizado. Para abordar esse tema, propomos uma discussão sobre a aprendizagem na educação de surdos, a experiência de ser surdo na escola e as línguas na educação de surdos.

Cabe inicialmente destacar que a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência postula que tais indivíduos têm o direito de usufruir plenamente dos direitos humanos. Nesse sentido, os direitos humanos das pessoas surdas envolvem acesso à língua de sinais e o reconhecimento dessa língua, a aceitação e o respeito à identidade linguística e cultural de pessoas surdas, a educação bilíngue, a oferta de intérpretes de línguas de sinais e recursos de acessibilidade. O relatório intitulado Deaf people and human rights (Haualand e Allen, 2009) reuniu dados quantitativos e qualitativos em 93 países, incluindo o Brasil, com o objetivo de verificar as condições de vida de pessoas surdas, tendo como referência os direitos humanos.

Resultados desse relatório apontam que relativamente poucos países negam às pessoas surdas acesso à educação, aos serviços públicos ou ao exercício da cidadania, tendo como base apenas a surdez. No entanto, aspectos como a falta de reconhecimento da língua de sinais, a carência de educação bilíngue, a disponibilidade limitada de serviços de interpretação e a generalizada desinformação da sociedade sobre a situação e as condições de vida das pessoas surdas na maioria dos países mantêm esses sujeitos privados do acesso a amplos setores da sociedade e do exercício da cidadania (Karnopp, 2013).

Implicadas na efetivação da aprendizagem estão variáveis que englobam também o tipo de escola e de modalidade de ensino, o desenvolvimento linguístico-cultural de todos os envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem, a concepção que os docentes e os próprios sujeitos surdos têm da surdez e de si mesmos, os domínios de saberes pedagógicos, as concepções históricas de escolas e de modalidades de ensino, entre outras. Também nas discussões acerca da aprendizagem escolar está implicada a noção de experiência, uma experiência que deve deixar para trás a noção de experimentos metodológicos para abarcar atravessamentos maiores envolvidos em uma dimensão maior do que vem a ser a experiência da surdez e/ou do quem vem a ser a experiência educacional-pedagógica com sujeitos surdos (Lopes, 2011).

A aprendizagem decorre da experiência vivida, nesse caso, na escola. Entendemos experiência como um conjunto de práticas que, ao se articularem em torno da surdez e dos indivíduos, acabam por constituí-los e constituem a própria experiência de ser surdo e aprendiz. Trata-se de uma experiência inventada no interior das práticas nas quais estamos inseridos. Inventada porque a experiência não preexiste às relações, às normativas legais, discursivas e comportamentais, tampouco aos espaços. Elas são o resultado de tensões geradas na convivência com o outro e nas relações que o indivíduo mantém com ele mesmo.

Então, voltemos à aprendizagem, mas pensando-a no intrincado jogo das experiências educacionais e pedagógicas vividas nas escolas. Muitas são as teorias que conceituam aprendizagem; porém, qualquer uma delas determina que, para aprender, é preciso partir da noção de um sujeito agente, ou seja, um sujeito ativo sobre si mesmo. Um sujeito agente e ações pedagógicas estratégicas são condições para que sejam mobilizados processos de ensino-aprendizagem em um ambiente adequado. No caso da aprendizagem de alunos surdos, além das condições exigidas para qualquer ação pedagógica, também estão colocadas as condições escolares, linguísticas e culturais de todos os envolvidos no contexto da escola para que a comunicação entre surdos e entre surdos e ouvintes aconteça de modo a desafiar os indivíduos a se desenvolver e aprender, permitindo-se que os docentes possam exigir dos alunos a dedicação de que estes necessitam para aprender.

Entender o indivíduo surdo a partir de um contexto no qual a surdez não é um limitador, mas um traço que pode estar associado às experiências visuais e a um vasto repertório de práticas linguístico-culturais desafiadoras e potentes para o desenvolvimento, é condição para se preparar para ser docente. Portanto, não é somente o espaço em si que determina todas as variáveis para que os surdos aprendam, sejam incluídos e também se socializem na escola, mas as condições dadas para firmar um contrato comunicativo e pedagógico é o que determina a qualidade da experiência escolar surda. Destacamos ainda que espaços educacionais adequados às crianças surdas requerem que se considere a aquisição da linguagem nesse processo. A aquisição da língua de sinais precisa ocorrer com os pares surdos, em companhia de professores surdos ou professores ouvintes bilíngues, em um ambiente que considere a língua de sinais como primeira língua. Esse é o modo de acesso e imersão linguística que favorece a constituição de uma língua no sujeito, condição primeira para tantos outros aprendizados.

Na escola regular, pode haver aprendizagens surdas, assim como na escola para surdos. Porém, tal afirmação é perigosa se considerarmos uma disputa acadêmica e profissional por quem tem razão na condução dos indivíduos — aqueles que defendem práticas bilíngues e biculturais para os surdos em escolas de surdos e aqueles que defendem a inclusão. Fora de tal impasse reducionista, o que parece estar em jogo são entendimentos e concepções históricas de normalidade. Se a normalidade for definida a partir de referentes audiológicos, a surdez será uma deficiência que incapacita e fragiliza aqueles que dela sofrem, independentemente do tipo de escola. Se a normalidade for definida a partir de referentes antropológicos, identitários e linguísticos, a surdez será uma experiência visual que agrega potência às formas de vida surda e de ser surdo. Eis aí o problema central — a partir do qual nos posicionamos para olhar e narrar o outro surdo.

Por fim, o slogan “Nada sobre nós, sem nós”, defendido pela Federação Mundial dos Surdos, convoca-nos a pensar sobre a importância de incluirmos nas discussões sobre os espaços de escolarização de surdos os próprios surdos. A Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos traz para o primeiro plano de discussão as propostas de escolas de surdos e da educação inclusiva, ambas construídas por especialistas surdos em educação. Tais propostas defendem o contato com pares usuários da mesma língua e a atuação de pro?ssionais bilíngues nas escolas, entre outras condições que garantam desenvolvimento, aprendizagem e participação surda de qualidade na escola — sejam elas bilíngues para surdos ou em escolas regulares.

Tendo em vista que a maior parte da população é ouvinte, todo surdo conviverá constantemente com tal realidade. Assim, entendendo-se que na escola não se aprende apenas conteúdos escolares (português, matemática, história, etc.), mas uma gama de conhecimentos que servirão para toda a vida, como, por exemplo, justiça, respeito mútuo, diálogo crítico entre culturas diferentes, convivência com as diferenças e trabalho em grupo, por que segregar o ensino das pessoas surdas?
 
  • Lodenir B. Karnopp é doutora em Letras e Linguística e professora do Departamento de Estudos Especializados e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. lodenir.karnopp@ufrgs.br
  • Maura Corcini Lopes é doutora em Educação e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). maurac@terra.com.br

Referências

  • HAUALAND, H.; ALLEN, C. Deaf people and human rights. Finland: World Federation of the Deaf and Swedish National Association of the Deaf, 2009. Disponível em: .
    KARNOPP, L.B. Produções culturais em Língua Brasileira de Sinais (Libras). Letras de Hoje, v. 3, p. 407-413, 2013.
    LOPES, M.C. Surdez e educação. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

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