Entrevista // Cristiane Marangon
Desde 2009, com a aprovação da Emenda Constitucional 59, e mais recentemente, com a publicação da Lei nº 1276, em abril de 2013, a determinação de que é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 anos de idade está provocando debates e exigindo adequações. “A medida visa a possibilitar o ingresso de crianças que, por diferentes razões, como, por exemplo, as características da oferta e o desconhecimento do direito, estão excluídas da educação infantil”, diz a coordenadora geral de Educação Infantil do Ministério da Educação (MEC), Rita Coelho. Nesta entrevista, ela fala sobre as mudanças e os desafios que a emenda acarreta, destacando o papel das diferentes instâncias nesse novo cenário. “É preciso levar em conta que a educação infantil vive um momento importante, tanto como demanda social quanto como investimento governamental. Basta lembrar que é a primeira vez que a educação infantil faz parte de um plano de crescimento do país”, afirma.
Qual é o motivo da decisão pela
obrigatoriedade da escolarização das crianças de 4 a 5 anos neste momento da
história da educação infantil?
É importante lembrar que essa decisão legislativa não foi amplamente discutida e ocorreu no âmbito do projeto que propunha a desvinculação dos recursos da União. Em decorrência disso, observa-se que não existe um sentido exato da obrigatoriedade, confundida com obrigatoriedade da oferta e da matrícula. Aspectos como a constatação de que o Brasil era um dos poucos países da América Latina em que a escolaridade obrigatória estava restrita a 9 anos de duração, as tendências internacionais de antecipação da entrada na escola e a universalização da pré-escola influenciaram tal decisão. Vale ainda destacar que a proposta também tem caráter de equidade. Diferentes levantamentos evidenciam que as crianças mais pobres, moradoras de zonas rurais, das regiões Norte e Centro-Oeste, filhas de famílias com menor renda, têm menos acesso à educação infantil. Portanto, defesa do direito, desigualdade de acesso e confusão entre dever de oferta e de matrícula são três questões que se relacionam a essa medida.
A medida garante vagas para todas as crianças dessa faixa etária?
Não. No Brasil, nenhuma lei equivale a garantia do direito. A legislação é muito mais um instrumento de luta do que medida de efetiva execução. A matrícula pressupõe a existência da vaga, mas é o dever de ofertar estabelecido pela Constituição Federal que deve garantir vaga para todas as crianças por parte do município. Portanto, na prática, a obrigatoriedade de matricula é muito mais uma medida de defesa, de divulgação e de reafirmação do direito, principalmente se lembrarmos que a educação infantil não é pré-requisito para a matrícula no ensino fundamental. Uma criança que não frequentou a educação infantil ou que a frequentou de maneira esporádica não pode ser impedida de ingressar no ensino fundamental.
A obrigatoriedade para as crianças de 4 e 5 anos pode abrir espaço para uma discussão de incluir também as de até 3 anos de idade?
Esse risco existe. Inclusive, outro risco presente é o de que as crianças de 4 e 5 anos sejam entendidas como prioridade em detrimento do grupo de até 3 anos. A prioridade nacional é a expansão do atendimento de creche, maior déficit de atendimento referente às metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação. A obrigatoriedade não pode ser entendida pelo gestor como prioridade de matrícula, o que depende do perfil da oferta e da demanda local. Existem riscos e também possibilidades, o que depende da nossa capacidade de diálogo democrático e ético, somada à correlação de forças presentes no sistema educacional e na sociedade. Acredito que podemos avançar reconhecendo as contradições e os desafios, qualificando o debate e fortalecendo a concepção de educação infantil como primeira etapa da educação básica.
O Brasil apresenta imensas diferenças sociais, culturais e geográficas. Além disso, nem todos os municípios têm condições de oferecer vagas para essa faixa etária. Como resolver tal problema?
A ampliação da oferta é importantíssima, mas não basta. É necessário conhecer a demanda, o perfil da oferta, as características locais antes de expandir a rede. É preciso trabalhar na sociedade, de modo geral, o conhecimento e o respeito aos direitos da criança. O que acontece no campo e na zona rural? Qual é a demanda do município de menos de 20 mil habitantes? Não existem 120 crianças agrupadas para serem atendidas no mesmo local. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil fazem claramente referência a isso. Um projeto político-pedagógico deve estar comprometido com as identidades dessas infâncias. Eu diria que o nosso maior desafio é garantir o atendimento das crianças que residem na zona rural. É garantir a educação infantil do e no campo, seja das crianças de 4 e 5 anos, seja dos bebês de até 3 anos.
Que ações são indispensáveis para que as políticas públicas de atendimento na educação infantil fomentem uma prática qualificada para essa faixa etária?
A qualidade é um grande desafio para toda a educação básica, e não apenas para a educação infantil. O governo federal vem investindo em expansão da oferta de novas vagas por meio de construção, assessoramento técnico pedagógico, antecipação de financiamento para custeio e formação de professores, porém é indispensável uma ação articulada dos diferentes níveis de governo (federal, estadual e municipal), bem como um efetivo controle social. A qualidade é um complexo processo de negociação e mudança de valores. No caso da educação infantil, há especificidades que passam, inclusive, por uma insuficiência do próprio sistema educacional brasileiro, sobretudo no que diz respeito às crianças de até 3 anos, e pelas característica da organização federativa do Brasil no campo da educação.
Quais são as especificidades da pré-escola?
Existe uma forte influência do ensino fundamental na pré-escola. Estudiosos e pesquisadores apontam uma “escolificação” ou “primarização” da educação infantil. Em alguns debates, aparece a ideia de que essa subetapa foi “sequestrada” pelo ensino fundamental. Penso que isso seja decorrência da identidade do sistema educacional, já que, no processo de integração da educação infantil, não se reviu para atender às características dessa faixa etária. Essa tendência existe e é perversa. Novamente aponto as Diretrizes Curriculares como um esforço considerável para enfrentar a identidade específica da pré-escola, que tem como objetivo “garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças”.
Que ações o MEC está articulando para ajudar o professor de pré-escola?
Nossa prioridade, no contexto atual, é implementar ações que afirmem a identidade da educação infantil como uma etapa indivisível da educação básica que atende crianças de 0 a 5 anos na creche e pré-escola.
A alfabetização faz parte do processo de trabalho com as crianças de 4 e 5 anos?
Diria que a educação infantil dá prosseguimento ao processo de apropriação da linguagem escrita que se inicia desde o momento em que a criança começa a sua interação com o mundo. Hoje sabemos que, nesse momento muito inicial, a criança já começou seu processo de alfabetização, aprendendo a representar sentimentos, ideias, desejos, por meio de gestos, rabiscos, desenhos e outros sistemas de representação, até compreender como funciona o sistema de escrita. Isso não significa, em absoluto, que a alfabetização se completa na educação infantil, sobretudo porque o conceito de alfabetização é algo muito mais complexo do que relacionar letras e sons.
Diante disso, não se trata de dizer se a pré-escola alfabetiza ou não alfabetiza, mas de explicitar quais são as práticas adequadas que a educação infantil deve proporcionar para ampliar as possibilidades da criança em relação à linguagem escrita. O debate “se alfabetiza ou não” coloca uma falsa questão e alimenta polêmicas acadêmicas que não contribuem com os dilemas do cotidiano da educação infantil. É preciso ficar claro que a educação infantil não tem como objetivo a alfabetização plena das crianças. No entanto, é inegável que ela tem importante papel na formação do leitor.
É importante lembrar que essa decisão legislativa não foi amplamente discutida e ocorreu no âmbito do projeto que propunha a desvinculação dos recursos da União. Em decorrência disso, observa-se que não existe um sentido exato da obrigatoriedade, confundida com obrigatoriedade da oferta e da matrícula. Aspectos como a constatação de que o Brasil era um dos poucos países da América Latina em que a escolaridade obrigatória estava restrita a 9 anos de duração, as tendências internacionais de antecipação da entrada na escola e a universalização da pré-escola influenciaram tal decisão. Vale ainda destacar que a proposta também tem caráter de equidade. Diferentes levantamentos evidenciam que as crianças mais pobres, moradoras de zonas rurais, das regiões Norte e Centro-Oeste, filhas de famílias com menor renda, têm menos acesso à educação infantil. Portanto, defesa do direito, desigualdade de acesso e confusão entre dever de oferta e de matrícula são três questões que se relacionam a essa medida.
A medida garante vagas para todas as crianças dessa faixa etária?
Não. No Brasil, nenhuma lei equivale a garantia do direito. A legislação é muito mais um instrumento de luta do que medida de efetiva execução. A matrícula pressupõe a existência da vaga, mas é o dever de ofertar estabelecido pela Constituição Federal que deve garantir vaga para todas as crianças por parte do município. Portanto, na prática, a obrigatoriedade de matricula é muito mais uma medida de defesa, de divulgação e de reafirmação do direito, principalmente se lembrarmos que a educação infantil não é pré-requisito para a matrícula no ensino fundamental. Uma criança que não frequentou a educação infantil ou que a frequentou de maneira esporádica não pode ser impedida de ingressar no ensino fundamental.
A obrigatoriedade para as crianças de 4 e 5 anos pode abrir espaço para uma discussão de incluir também as de até 3 anos de idade?
Esse risco existe. Inclusive, outro risco presente é o de que as crianças de 4 e 5 anos sejam entendidas como prioridade em detrimento do grupo de até 3 anos. A prioridade nacional é a expansão do atendimento de creche, maior déficit de atendimento referente às metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação. A obrigatoriedade não pode ser entendida pelo gestor como prioridade de matrícula, o que depende do perfil da oferta e da demanda local. Existem riscos e também possibilidades, o que depende da nossa capacidade de diálogo democrático e ético, somada à correlação de forças presentes no sistema educacional e na sociedade. Acredito que podemos avançar reconhecendo as contradições e os desafios, qualificando o debate e fortalecendo a concepção de educação infantil como primeira etapa da educação básica.
O Brasil apresenta imensas diferenças sociais, culturais e geográficas. Além disso, nem todos os municípios têm condições de oferecer vagas para essa faixa etária. Como resolver tal problema?
A ampliação da oferta é importantíssima, mas não basta. É necessário conhecer a demanda, o perfil da oferta, as características locais antes de expandir a rede. É preciso trabalhar na sociedade, de modo geral, o conhecimento e o respeito aos direitos da criança. O que acontece no campo e na zona rural? Qual é a demanda do município de menos de 20 mil habitantes? Não existem 120 crianças agrupadas para serem atendidas no mesmo local. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil fazem claramente referência a isso. Um projeto político-pedagógico deve estar comprometido com as identidades dessas infâncias. Eu diria que o nosso maior desafio é garantir o atendimento das crianças que residem na zona rural. É garantir a educação infantil do e no campo, seja das crianças de 4 e 5 anos, seja dos bebês de até 3 anos.
Que ações são indispensáveis para que as políticas públicas de atendimento na educação infantil fomentem uma prática qualificada para essa faixa etária?
A qualidade é um grande desafio para toda a educação básica, e não apenas para a educação infantil. O governo federal vem investindo em expansão da oferta de novas vagas por meio de construção, assessoramento técnico pedagógico, antecipação de financiamento para custeio e formação de professores, porém é indispensável uma ação articulada dos diferentes níveis de governo (federal, estadual e municipal), bem como um efetivo controle social. A qualidade é um complexo processo de negociação e mudança de valores. No caso da educação infantil, há especificidades que passam, inclusive, por uma insuficiência do próprio sistema educacional brasileiro, sobretudo no que diz respeito às crianças de até 3 anos, e pelas característica da organização federativa do Brasil no campo da educação.
Quais são as especificidades da pré-escola?
Existe uma forte influência do ensino fundamental na pré-escola. Estudiosos e pesquisadores apontam uma “escolificação” ou “primarização” da educação infantil. Em alguns debates, aparece a ideia de que essa subetapa foi “sequestrada” pelo ensino fundamental. Penso que isso seja decorrência da identidade do sistema educacional, já que, no processo de integração da educação infantil, não se reviu para atender às características dessa faixa etária. Essa tendência existe e é perversa. Novamente aponto as Diretrizes Curriculares como um esforço considerável para enfrentar a identidade específica da pré-escola, que tem como objetivo “garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças”.
Que ações o MEC está articulando para ajudar o professor de pré-escola?
Nossa prioridade, no contexto atual, é implementar ações que afirmem a identidade da educação infantil como uma etapa indivisível da educação básica que atende crianças de 0 a 5 anos na creche e pré-escola.
A alfabetização faz parte do processo de trabalho com as crianças de 4 e 5 anos?
Diria que a educação infantil dá prosseguimento ao processo de apropriação da linguagem escrita que se inicia desde o momento em que a criança começa a sua interação com o mundo. Hoje sabemos que, nesse momento muito inicial, a criança já começou seu processo de alfabetização, aprendendo a representar sentimentos, ideias, desejos, por meio de gestos, rabiscos, desenhos e outros sistemas de representação, até compreender como funciona o sistema de escrita. Isso não significa, em absoluto, que a alfabetização se completa na educação infantil, sobretudo porque o conceito de alfabetização é algo muito mais complexo do que relacionar letras e sons.
Diante disso, não se trata de dizer se a pré-escola alfabetiza ou não alfabetiza, mas de explicitar quais são as práticas adequadas que a educação infantil deve proporcionar para ampliar as possibilidades da criança em relação à linguagem escrita. O debate “se alfabetiza ou não” coloca uma falsa questão e alimenta polêmicas acadêmicas que não contribuem com os dilemas do cotidiano da educação infantil. É preciso ficar claro que a educação infantil não tem como objetivo a alfabetização plena das crianças. No entanto, é inegável que ela tem importante papel na formação do leitor.
E quanto ao livro didático, ele deve ser utilizado com essa faixa etária?
O livro didático não deve ser usado porque as práticas educativas na educação infantil não pressupõem a apreensão de saberes escolares, ainda que essa apreensão possa acontecer. Contudo, as práticas educativas dessa etapa precisam de materiais didáticos, e a Emenda Constitucional nº 59, de 2009, que tornou obrigatória a matrícula na educação básica a partir de 4 anos, estendeu a todas as etapas da educação básica os programas suplementares de material didático, transporte, alimentação e assistência à saúde. É importante constatar que a proposta é de material didático. Discutimos isso com um grupo de especialistas. Na educação infantil, os materiais didáticos são os livros de literatura infantil e os livros de narrativas não ficcionais que despertem a curiosidade da criança para temas em que ela tem interesse, ou seja, bons livros informativos. Além disso, os brinquedos também são importantes materiais que apoiam as práticas pedagógicas na educação infantil. Nosso objetivo é definir um programa nacional de material pedagógico da educação infantil caracterizado pela compra de brinquedos, de livros de literatura infantil, de livros ilustrativos e de outros materiais de apoio para a prática pedagógica. Essa é a perspectiva com a qual estamos trabalhando. Nessa perspectiva, a partir do início de 2014, o MEC, por meio do FNDE e no âmbito do PNBE, distribuirá um acervo de 50 títulos de literatura infantil (0 a 6 anos) por turma de educação infantil.
Cabe também destacar o papel da brincadeira na pedagogia para crianças de 4 e 5 anos. Como ela se apresenta no trabalho pedagógico?
A brincadeira e o jogo, juntamente com as interações, são o eixo vertebral da pedagogia para crianças de 0 a 6 anos. A brincadeira é, para a criança, um dos principais meios de expressão que possibilita a investigação e o conhecimento sobre as pessoas e o mundo. Valorizar a brincadeira significa oferecer espaços, atividades e interações como práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular. Na educação infantil, ela depende de condições prévias, como aceitação do brincar como direito da criança; compreensão da importância do brincar; organização de ambientes educativos especialmente planejados que ofereçam oportunidades de qualidade para brincadeiras e interações. O MEC está distribuindo a publicação Brinquedos e brincadeiras nas creches: manual de orientação pedagógica e disponibilizando no site do FNDE o edital de pregão eletrônico para a compra de brinquedos.
- Rita Coelho
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