Da Redação - Marianna Marimon
Ela se tornou uma lenda em Cuiabá. Mas é recorrente muitos duvidarem da veracidade da sua história, afinal, no século 19, uma mulher negra e escrava, que auxiliava a fuga dos outros escravos, parece ser ficção. Porque deixariam Mãe Bonifácia livre, enquanto todos os outros estavam encarcerados? A resposta quem dá é o historiador Aníbal Alencastro, que rememorou a história da negra escrava no livro “Cuiabá: histórias, crônicas e lendas”.
A história de Mãe Bonifácia marcou mesmo já no fim da sua vida. Aníbal conta que a velha negra e escrava parou de ser incomodada devido a idade avançada e ao deixarem de usar seus serviços, foi morar na saída para a Estrada da Guia, em um barracão em frente ao 44º Batalhão e também era ali que nascia o córrego, que viria a ter o mesmo nome “Mãe Bonifácia”.
Curandeira, africana, com um vasto conhecimento sobre as plantas. Mas, porque a sua história marcou tanto? A estátua que hoje se situa no parque que leva o nome da mãe negra, retrata bem a conduta de Mãe Bonifácia diante dos fracos e oprimidos. Ela curava os negros, os salvava da perseguição e os guiava pelo rio até o quilombo situado na mata densa, onde hoje se localiza o parque. A dor que ela sentia no peito, só podia ser esvaziada se pudesse salvar aqueles que passavam pelo mesmo sofrimento que ela: a privação da liberdade.
Quando havia revolta em Cuiabá, e os negros fugiam, era atrás da Mãe Bonifácia que iam em busca de auxílio, já que ela os escondia. A negra orientava os fugitivos a andarem pelo córrego para que os cães dos capitães do mato, não pudessem farejá-los. Com isso, Mãe Bonifácia os guiava mata adentro, até o quilombo (que depois originou o nome do Bairro do Quilombo).
Com relação aos questionamentos sobre a sua existência, Aníbal é categórico “sim, ela viveu aqui, sua história é real”. O pesquisador levantou a trajetória de Mãe Bonifácia a partir de familiares remanescentes de escravos, que até a década de 1950, os avós destes que residem atualmente, viviam no Despraiado e contavam a história da negra velha que ajudava os escravos. Os refugiados também chegaram a ser retratados em livro de Estevão de Mendonça.
A Lei Áurea só foi aprovada em 1888, já no fim do século 19, quando Cuiabá era apenas a região do Centro, da Prainha, com o ouro a jorrar das águas, com a exploração do garimpo em pleno vapor e a exploração do trabalho escravo também. O ouro resplandecia mas, era preciso um olhar atento, para entrever que era também a ruína, a escuridão, a morte que espreitava os negros exauridos pelo trabalho árduo, pelas injustiças, surras, e ver seu corpo valer menos que a sua própria vida.
Os descendentes dos refugiados ainda estão na Estrada do Despraiado. Há um fundo de verdade sobre Mãe Bonifácia. Aníbal ressalta a importância de se manter viva a sua história e memória, “é a nossa raiz, os negros que fizeram Cuiabá em seus primórdios, com as minas de ouro e as mucamas nas casas dos patrões”.
O título de mãe é justamente por isto: por abraçar a desigualdade, romper com os padrões vigentes e abrigar em seu coração toda a dor humana. A estátua é a única representação que sobrou dos seus dias de vida. A mãe negra abraça o filho escravo, mas não é o sangue que a liga a todos os homens, é a sua alma, o seu coração que precisa estancar a dor e acalentar o choro, curar a diferença com amor, com solidariedade, com esperança. Sua história deve ser perpetuada como o único retrato que sobrou envolto em toda a lenda: a mão aberta, estendida, para salvar aqueles que eram expurgados da própria vida.
A mão estendida, o peito aberto e o amor de mãe foram o que a eternizou. E a sua lição é o que nos sobrou: amar independente de todas as adversidades e acreditar que através de nossas próprias mãos, um mundo melhor é possível, basta lutar.
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