quarta-feira, 26 de março de 2014

A produção textual no ensino médio

Magali Lopes Endruweit

Para que o ensino de texto seja possível, é necessário que o professor delimite critérios para a escrita. Não basta, porém, a clareza metodológica: o assunto deve ser proposto partindo de questões que digam respeito ao aluno.

O maior desafio do professor de português sempre foi ensinar redação. E aqui podemos entender redação como qualquer texto escrito para a escola em resposta a uma proposta feita pelo professor. Em todos os níveis de ensino a situação se repete: no ensino fundamental, nos consagrados textos sobre as férias; no ensino médio, na infindável preparação para o vestibular e, finalmente, na universidade, quando o aluno se depara com textos acadêmicos sem que tenha conseguido entender como se expressar na língua escrita. Em consequência, o maior desafio do aluno sempre foi aprender redação. Na verdade, o desafio é maior, pois, bem antes de aprender a fazer uma redação para a escola, o aluno precisa aprender a escrever.

Fala-se de redação. Outra coisa é falar de escrita. Quem escreve, escreve redação para a escola, para o vestibular ou para qualquer outro concurso. Escreve também qualquer tipo de texto ou de gênero e, com o mínimo de dedicação, pode escrever um artigo acadêmico. Saber essas diferenças de gênero é o final do ensino, apenas uma adequação de um longo processo que o aluno deveria fazer na escola. Deveria, mas não faz. Começa-se pelo fim, ensinando-se a diferença entre uma receita de bolo e uma receita médica, solicitando textos pelos quais os alunos não têm o menor interesse.

Mas isso não é de hoje. O ensino da escrita parece ter sido — e ainda é — o calcanhar de Aquiles do professor de português e a denúncia do fracasso da escola: nossos pais fizeram “composição”, nós fizemos “redação” e nossos alunos “produzem textos”. E os escândalos rondam as provas de seleção, denunciando a pouca intimidade dos alunos com o texto escrito e a abissal distância entre ensinar redação na escola e aprender a escrever para a vida.

O momento que vivemos hoje é o resultado da longa trajetória do ensino de texto na escola. Entre as décadas de 1970 e 1980, o ensino volta-se para as teorias da comunicação, prioriza o uso e vê a língua como um instrumento de comunicação transparente, afastando-se gradativamente do ensino da gramática. A discussão sobre o ensino ou não de gramática na escola é tema de grande interesse na época. Por conta disso, textos não literários, do dia a dia, passam a fazer parte dos livros didáticos; a linguagem oral torna-se parte das aulas. A visão instrumental domina a concepção de língua como veículo de comunicação.

Em contrapartida, a escola sustenta a necessidade de o aluno ser o autor de seu texto, garantindo à escrita o lugar, por excelência, de instauração da subjetividade na linguagem. Tal posicionamento reflete-se nas afirmações do tipo “o aluno precisa se tornar sujeito de seu texto”, ou “a escrita é o lugar de emergência da subjetividade”, ou ainda “os alunos escrevem sempre igual”, protestos que demonstram a insatisfação por parte dos professores em relação ao escrever em sala de aula.

Parece que existe certa vagueza de tratamento desse conceito de subjetividade, oscilando entre uma concepção ampla — que poderia ser parafraseada por algo como manifestação linguisticamente marcada daquele que escreve — até uma concepção mais restrita próxima de algo como qualidade estilística superior. Nesse sentido, não é exagero apontar essa busca pela subjetividade como uma condição perseguida nos textos escritos na escola, atributo responsável pelas mais variadas tentativas de ensinar o aluno escrever para esse ou aquele propósito. Significa que, para a escola, escrever é principalmente um ato utilitário. Se não é verdade, como entender o direcionamento das aulas de língua materna para a construção de um texto que contemple as exigências do concurso vestibular?

Os efeitos dessa visão não podem ser minimizados. Por conta desse entendimento, escrever bem significa escrever conforme as regras norteadoras desse texto ideal. Ideal em forma e também em conteúdo, separação que abriu a discussão em dois polos distintos: a importância ou não da presença da redação no ensino médio. Como consequência, praticamente dois momentos recebem a atenção nas aulas de língua portuguesa: a gramática normativa e o ensino de redação.

Creio não ser exagero afirmar que há submissão do ensino médio em relação ao vestibular, ou seja, não é difícil suspeitar da existência de uma estreita relação entre o que é pedido no vestibular e o que é ensinado em sala de aula. Lembremos que, quando a redação não mais constou na prova de vestibular, em 1970, também sumiu da sala de aula no ensino médio. Nessa época, jornais e revistas apontavam o ensino de língua portuguesa nas escolas como decadente e insatisfatório; o Conselho Federal de Educação emitiu parecer sobre o assunto; educadores indicavam a presença de grave crise no ensino da língua.

Enfim, em meio à grita generalizada, o uso de provas de múltipla escolha e a ausência de redação no concurso vestibular foram apontados como responsáveis pelo fracasso dos jovens no uso do português escrito. Em resposta, a prova de redação surgiu como medida de correção para a crise da língua portuguesa. Demasiada responsabilidade atribuída ao ensino médio e particularmente ao ensino de redação, ainda mais em se tratando de um gênero específico de texto, com um único fim que não extrapola o âmbito do concurso vestibular.

Para os alunos, a língua escrita é encarada como capaz de significar por si só, em nada semelhante à língua falada no dia a dia, capaz de produzir todos os sentidos desejados. O texto escrito em sala de aula, para a escola, não pretende incluir-se na discussão do mundo real sobre o tema em questão; tem seu fim determinado no próprio momento da escrita: não nasceu para significar, para somar-se a uma discussão, para dizer como seu autor encara o mundo. Na verdade, passa à margem do diálogo com outros textos do mundo lá fora.

Como se vê, tomar a escrita unicamente como representação foi um equívoco. Dele resultaram os problemas que tornaram o ensino da escrita o grande desafio da escola, fazendo o aluno pensar que escrever era apenas passar para o papel o que já havia pensado antes. Grande engano. Antes de mais nada, existe a necessidade de o locutor se desvincular da representação da língua falada como exteriorização e comunicação. A escrita é outro estatuto da mesma língua. Se na fala como atividade é possível a exteriorização dos pensamentos, na escrita, ocorre a transposição da linguagem interior: rápida e incoerente, na medida em que retorna apenas sobre o próprio locutor. É a escrita que deve tornar inteligível essa linguagem.

No entanto, o reconhecimento de que a escrita é diferente da fala, em um primeiro momento, apenas reforça para o aluno a dificuldade de escrever. Como substituir a confortável situação estabelecida pelo diá­logo oral em uma conversa por uma relação ausente com um interlocutor imaginado, mas nem por isso menos desconhecido? Com esse distanciamento exigido pela escrita, começam a faltar os elementos presentes na fala: se na situação de diálogo a fala é dirigida para alguém, situada em um contexto atual criado pela referência discursiva, na escrita essa relação retorna sobre o próprio locutor. É um momento de ausências que a escrita exige.

Escrever a ausência
De acordo com Benveniste (2012, p. 95), “tornar inteligível a linguagem interior é uma operação de conversão que acontece junto com a elaboração da fala e a aquisição da escrita”. Entender a escrita como um modo diferente de estar na língua significa não apontar hierarquia entre fala e escrita, mas apenas pontuar suas peculiaridades. E não pensar em representação traz para o ensino de texto outra perspectiva em que a escrita não mais simula uma fala pronunciada: ela significa. Então, se é assim, por que é tão difícil escrever? Sabemos que escrever não é apenas colocar as ideias no papel, que não basta seguir os esquemas, observar os gêneros, escrever corretamente e seguir as regras gramaticais para termos um texto. O que falta? Penso que falta entender a ausência de que a escrita é feita.

A primeira questão, a mais aparente de todas, aponta a falta de interlocutor presente, pois na escrita não sabemos nem quem fala nem quem escuta. Se pensarmos no aluno, ainda mesmo na universidade, essa é a grande questão com que nos deparamos em sala de aula. Há que se imaginar um interlocutor, distante do contexto, fora do convívio diário. Contudo, será preciso criar uma relação de diálogo com esse desconhecido. E é assim desde as primeiras séries em que o texto é ensinado. Mas será possível ensinar ausências?

A hipótese é de que a leitura pública do texto em sala de aula funcionaria como um nível intermediário entre a presença do interlocutor na fala e a sua ausência na escrita. No momento da leitura para os colegas, a escrita faz sentido para um número de pessoas ainda presentes, mas que não representam todos os leitores possíveis do texto. Elas podem fazer — e efetivamente fazem — ponderações próprias de um ouvinte. Ou seja, estão presentes, embora simbolizem uma ausência. Há, nesses ouvintes-leitores, certo distanciamento da conversa do dia a dia, centrada em um contexto conhecido, já que é pouco provável que todos os alunos de uma turma mantenham uma relação de proximidade. Entre eles, há uma convivência física, mas uma separação interlocutiva. Ainda que mantenham uma relação de convívio próximo (talvez em turmas pequenas), a especificidade da escrita pressupõe a discussão de assuntos pouco abordados nas conversas. Retomando o que diz Benveniste, para escrever é preciso tornar inteligível a linguagem interior, que apresenta suas especificidades, bem diferentes da fala, pois há diferença entre o grau de consciência que a fala e a escrita demandam do locutor.

Para que o ensino de texto seja possível, é necessário que o professor delimite critérios para a escrita. O primeiro deles é tratar de um único assunto ou unidade temática, pois quem se propõe a dizer tudo não consegue dizer muito de nada. O segundo critério é ter uma questão para ser discutida ou questionamento não resolvido, já que, se estiver solucionado, não há por que falar dele. É mito a ideia de que se escreve o que está pronto e resolvido na nossa cabeça. Pelo contrário: escrevemos para poder encontrar uma saída para o problema que temos. Já o terceiro critério diz respeito à capacidade de olhar o problema de fora ou com objetividade. É necessário enxergar a questão a ser tratada do mesmo ângulo do leitor, posição que impulsiona o último critério, que é a capacidade de oferecer provas ao leitor ou concretude, deixando que ele próprio possa julgar os argumentos apresentados pelo autor, sem precisar confiar no que lhe é contado. O leitor sempre quer provas.

Não basta, porém, apenas ter a clareza metodológica para trabalhar a escrita em sala de aula. O assunto deve ser proposto partindo de questões próximas ao aluno, que lhe digam respeito bem de perto: falar de si e de suas questões é o primeiro passo para falar do que está longe. Portanto, os temas devem fazer alusão à apresentação pessoal, ao cotidiano, a uma emoção, a um aprendizado, levando o aluno a olhar necessariamente para si, contando-se ao leitor. Por último, lembremo-nos que nenhum texto nasce pronto, que reescrevê-lo é a condição da língua escrita, é a condição que a busca da palavra adequada exige.

Finalmente, vale lembrar algumas observações desenvolvidas ao longo deste texto e sua relação com o ensino. Ao tratar da especificidade da escrita, é importante salientar o fato de que fala e escrita são diferentes formas de estar na língua, visto que possibilitam dois tipos de enunciação que, se muito têm em comum, também muito têm de diferente. Entender essas diferenças faz parte do papel do professor, pois a forma pela qual enxerga a língua condiciona todo o seu ensino.
 

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