quarta-feira, 26 de março de 2014

MT - Os tradicionais mercados e feiras livres de Cuiabá

Quem vai às compras hoje nem pode imaginar que esse singular comércio cuiabano já foi uma bagunça que faltava gente pra ver

NELSON SEVERINO



Quem vai às compras nos dias atuais nos dois principais terminais atacadistas de Cuiabá – o do Porto e o do Verdão – e vê aquela abundância de produtos que são ofertados à clientela, sem contar as feiras livres domingueiras que se espalham pela capital mato-grossense, nem de longe pode imaginar que esse singular comércio cuiabano já foi uma bagunça que faltava gente pra ver. Como toda feira livre que se preza...

Hoje, todo tipo de mercadorias chega a Cuiabá em grandes containers, caminhões frigoríficos e ate de avião, tudo isso sob rigorosa fiscalização da saúde pública. Em tempos bem remotos, não tinha nada disso! Os gêneros alimentícios, incluindo peixes, naturalmente, chegavam na primeira feira livre de Cuiabá, a do Largo da Cruz das Almas, hoje Praça Ipiranga, de canoas ou pequenos botes, impulsionados a remo, através do córrego da Prainha.
Arquivo Pessoal/Aníbal Alencastro
Feira da Avenida General Ponce, além de ser o centro comercial nos finais de semana, era palco das batalhas de confetes nos períodos carnavalescos
O transporte dos produtos que a população consumia era feito pelos próprios chacareiros e sitiantes que subiam ou desciam o Rio Cuiabá até a “Boca do Valo”, que é onde o córrego da Prainha se encontra com o grande rio que banha a capital. Na época, o córrego da Prainha, com um grande volume de água, era totalmente navegável, facilitando o trabalho dos remadores, que iam vender diariamente ou de vez em quando seus produtos aos cuiabanos.

Geógrafo, historiador e professor universitário aposentado, o escritor Aníbal Alencastro dá um mergulho no passado e relembra detalhes interessantes dos mercados e feiras livres de Cuiabá. A confusão que caracteriza as feiras era uma diversão para os seus frequentadores habituais. O texto que se segue é de sua autoria. As fotos que ilustram o material jornalístico são de Laércio Ojeda.  Alencastro é autor de vários livros, entre os quais Cuyabá histórias, crônicas e lendas (já esgotado) e colaborador do HiperNotícias.

A história das feiras e mercados de Cuiabá tem suas origens no antigo Largo Cruz das Almas, hoje Praça Ypiranga.

No século XIX, na região ribeirinha do Rio Cuiabá, havia muitos sítios e chácaras que produziam em pequena escala produtos hortifrutigranjeiros e cujos proprietários, que também eram exímios pescadores, transportavam quase que diariamente tudo o que tiravam de suas terras em suas modestas canoas ou botes, subindo ou descendo o rio até a “Boca do Valo”, ou seja, a foz do córrego da Prainha com o Cuiabá.

Com suas canoas abarrotadas de cargas, subiam o córrego da Prainha, que na época era navegável, em direção a cidade, onde em frente ao Largo Cruz das Almas atracavam suas embarcações e descarregavam aquelas variedades de mercadorias e onde de forma improvisada vendiam seus produtos aos clientes que ali apareciam. Entre a variedade de produtos, vendiam também peixes como pacus, curimbatás, piraputangas, pintados, dourados, cacharas, etc.

Aquele espaço do largo logo se converteu em um pequeno comércio informal (1ª feira livre), preocupando o poder público, que compreendendo a necessidade do evento, resolveu empreender a construção de um mercado público para melhor acomodar aqueles feirantes e para trazer, automaticamente, benefícios à sociedade e mesmo para o governo, através da cobrança de impostos.

Laércio Ojeda
Feira da Avenida Ponce foi transferida para o Arsenal de Guerra, atrás do Estádio Presidente Dutra

Esse fato se deu na administração do presidente da Província de Mato Grosso, Augusto de Leverger (1852), com a construção do casarão do mercado, onde funciona hoje o Ganha Tempo.

A denominação do Largo da Cruz das Almas está atrelada ao nome do córrego Cruz das Almas, que existiu no meio da Avenida Generoso Ponce e cuja vertente vinha da então Rua do Coxim e da Cacimba do Soldado.

O Largo da Cruz das Almas, com o passar do tempo, ganhou o nome de Praça Marquês de Aracaty, em homenagem ao 8º Capitão General da Capitania de Mato Grosso, João Carlos Augusto Oeynhansem de Gravemberg, quando a praça foi urbanizada e cercada com grades de ferro.

Já no século XX a Câmara Municipal achou por bem trocar o nome do local para Praça do Ypiranga em homenagem a data cívica de 7 de Setembro,.relembrando o Grito da Independência às margens do riacho do Ypiranga, em São Paulo.

O antigo casarão do Mercado Público perdeu sua condição de mercado, quando foi impostamente ocupado pela Força Militar no período da Guerra do Paraguai, passando a servir de enfermaria aos soldados acometidos de varíola, a temida bexiguinha preta.

Em 1910, o então intendente geral do município de Cuiabá, tenente coronel Avelino de Siqueira, foi autorizado através da Resolução nº 75 e aprovada pela Câmara Municipal a contrair empréstimo de quinhentos contos de réis para construir o segundo Mercado Público, que foi edificado na Rua Formosa (hoje Joaquim Murtinho), esquina com a Avenida Generoso Ponce (antiga Vilas Boas).

O tradicional Mercado Público foi um dos mais importantes centros de abastecimento de Cuiabá, principalmente depois de desativada a navegação pelo córrego da Prainha, evidentemente por causa do assoreamento do seu leito.

Com isso, o abastecimento do novo mercado passou a ser compensado pela chegada de tropas de mulas advindas de várias localidades ao redor de Cuiabá, entre elas Nossa Senhora do Livramento, Nossa Senhora da Guia, Aricá, Chapada dos Guimarães, Santo Antonio do Rio Abaixo, etc.

Orlando Nigro/Acervo Leopoldo Nigro/C&C
Em 1964 a Prefeitura resolveu transferir todos os feirantes para o Mercado do Porto, no antigo Campo do Bode

Até os anos 50, era comum se ver nas ruas de Cuiabá as figuras dos tropeiros com seus bois de cangalhas carregados de mantimentos, lenhas, cachos de bananas, entre outros produtos do campo, dirigindo-se para o grande quintal do Mercado Público onde as ripas de mulas ou bois eram devidamente acomodadas, bebendo água de um velho poço artesiano ali existente.

O velho casarão do mercado tinha a sua frente principal para a Rua Joaquim Murtinho, com um belo portão de ferro na entrada e suas amplas dependências, permitindo a exposição e mostra dos mais diversos produtos trazidos pelos tropeiros, acondicionados em bruacas de couro cru ou em sacos de mantimentos. Era intenso o movimento comercial entre vendedores e compradores.

O espaço do Mercado Público era imenso, principalmente o quintal (área externa), que era cercado de grades de ferro e algumas vezes requisitado pelas companhias circenses que visitavam Cuiabá, a exemplo do inesquecível Circo Garcia, com sua maior atração, o leão “Minelique”, que muito emocionou o público cuiabano.

AS FEIRAS LIVRES

As feiras livres sempre fizeram parte das tradições cuiabanas. Uma vez desativada a do Largo da Cruz das Almas por ocasião da construção do Mercado Público, também pela urbanização da Praça Marquês de Aracaty (a Praça Ypiranga), a feira se deslocou para a Avenida General Ponce (antiga Travessa Vilas Boas), recém construída pelo então prefeito Isaac Póvoas no ano de 1939, quando esta avenida foi calçada com paralelepípedo e o córrego foi encoberto.

Esta grande feira se tornou o espaço tradicional de Cuiabá: além de ser o centro comercial nos finais de semana, ali era realizada as batalhas de confetes nos períodos carnavalescos e o ponto atrativo para os desfiles dos eventos do Rei Momo. Sempre esteve presente naqueles eventos a tradicional Rádio Clube Voz D’Oeste, irradiando os desfiles.

Com a modernização da Avenida Generoso Ponce no final dos anos 60, quando foi alargada e asfaltada, ela perdeu aqueles ares românticos do calçamento de paralelepípedos e dos tradicionais postes de ferro assentados no meio da avenida, com luminárias de dois braços, com imensas lâmpadas incandescentes. Nesse tempo, nossa luz elétrica era produzida pela Empresa de Força Luz e Água (Efla).

Tudo mudou radicalmente: a nossa da Avenida Ponce foi transladada para a Rua 13 de Junho, em frente ao Arsenal de Guerra (Sesc Arsenal), localizada atrás do Estádio Presidente Dutra.

No ano de 1964 a Prefeitura Municipal resolveu transferir todos os feirantes para o amplo Mercado do Porto, localizado no antigo Campo do Bode nas proximidades do velho Mercado do Peixe, construído no distante século XIX, no ano de 1899, nas margens do Rio Cuiabá e que foi transformado no Museu do Rio Hid Alfredo Scaff, antigo proprietário da Empresa de Navegação Scaff Gattas & Cia.

O VERDUREIRO–PEIXEIRO

Falando em feiras e mercado, ponto de encontro dos pequenos comerciantes, isto é, pequenos mais importantes para o nosso dia a dia, proporcionando à nossa gastronomia produtos de boa qualidade, etc., não podemos nos esquecer dos tradicionais e inesquecíveis verdureiros-peixeiros. A começar do fato da criançada mudar o vocábulo vulgarmente para “verduleiro”.

Lembro-me dos meus dias de criança, quando a mamãe mandava eu ficar na porta de casa a espera da passagem do verdureiro ou peixeiro, para poder comprar aqueles produtos fresquinhos!

Os verdureiros ou peixeiros, assim denominados pela população, eram pessoas determinadas, que altas madrugadas desciam até o mercado do peixe no Porto, com seus modestos “carrinhos de mão” para comprar o peixe fresco ou outros produtos como verduras, temperos, frutas, etc., para vender de porta em porta para a população.

E aí, ainda em plena madrugada, seguindo seus costumeiros roteiros pelas ruas desertas da cidade, saiam gritando: “ó o peixe”, “ó o verdureiro”. Na nossa Cuiabá do passado, esse ritual fazia parte do nosso cotidiano.

OS PADEIROS

Naquele mesmo ritual da madrugada outro personagem que fazia parte daquele teatro urbano era o padeiro, geralmente montado a cavalo entre dois imensos balaios abarrotados de pães, ainda quentinhos recém tirados dos fornos de lenha das tradicionais padarias da cidade. Lá iam eles, os padeiros cuiabanos, deixando os pães nas janelas das casas. Alguns proprietários fincavam alguns pregos na janela onde eram afixados os pães...

Lembro-me da rapaziada que ao retornar dos bailes já na madrugada, vindos dos clubes Dom Bosco ou Náutico, pegavam os pães nas janelas das casas... mas sempre deixando um ou dois para que o morador do imóvel não ficasse sem o seu pão de cada dia...

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