domingo, 23 de março de 2014

Do poeta ao diretor de teatro, Francisco Aquino Amorim é o Chico boêmio, subversivo e com fina ironia

Da Redação - Marianna Marimon

“É o morto mais vivo de Cuiabá”, profetiza o amigo, compadre e parceiro de primeira hora, o escritor Lorenzo Falcão. A memória permanece e continua a viver através das lembranças dos amigos e dos familiares, que sempre retomam em suas conversas, os causos e acasos desta figura emblemática. Muitos, talvez, não o conheçam e por isso, é preciso destrinchar com cuidado para desanuviar as ideias e encontrar o caminho, o mesmo que ele gostaria de trilhar. Com fina ironia, escreveu e dirigiu inúmeras peças em Cuiabá, tirou o riso da plateia na parceria com Liu Arruda e também cutucou políticos e dondocas, meteu um monte de gente nua em cima de um palco no Teatro da Universidade Federal de Mato Grosso no Grosso (UFMT) e rompeu com qualquer moralismo que pudesse existir. Dominou uma cidade patriarcal com sua fina ironia, sua boêmia desregrada, suas ideias subversivas e se tornou lenda. Francisco Aquino Amorim é o diretor de teatro, poeta e mais um louco desgarrado dos anais da história cuiabana, mas o chamemos como os amigos, apenas de Chico Amorim.

Ousado, despojado e desbocado. Iremos narrar algumas desventuras de Francisco Aquino Amorim (1956-2002), mais conhecido como o diretor maldito de teatro, que trabalhou com Liu Arruda e se engajou na recuperação da autoestima do cuiabano.

Todos os amigos o lembram da mesma maneira: um personagem alegre, com um vozeirão forte, com um chinelo velho nos pés e o jeito preguiçoso do cuiabano. Escrever sobre ele é difícil, porque eu o conheci, e fiz um poema em sua homenagem na ocasião de sua morte, a primeira vez que vi lágrimas nos olhos do meu pai. Até hoje essa trupe de artistas o guarda na memória, quando na década de 80 revolucionaram Cuiabá e a transformaram em um caldeirão borbulhante de ideias, que até hoje não alcança a mesma efervescência.

Com Lorenzo Falcão e sua companheira Fátima Sonoda, Carlão dos Bonecos e outros personagens, montaram o Grupo de Risco, de teatro experimental em Cuiabá. Foi aí que fizeram a adaptação de “O Capote” do escritor russo Gógol em 1988. Lorenzo conta que na peça, o elenco fazia a apresentação sem roupa nenhuma. Questionei se deu público e como foi a recepção, o escritor adiantou que foram mais de 10 apresentações, e que até avós, tias e mães foram prestigiar, pois, “O Capote” tinha muitas referências eruditas, música sacra, contemporânea, brega, minimalista. A estreia foi dedicada ao poeta visual Wlademir Dias-Pino.

E Chico tinha tiradas como ninguém e soltava: “tudo na vida evolui, menos a baixaria”, “Hollywood, Hollywood, comigo ninguém pude”, “eu me amo, mas não sou correspondido”. Chico Amorim era assim, de bar em bar, de mesa e mesa, disparava como uma metralhadora e podia dominar vários assuntos, afinal, não gostava apenas de arte e cultura, mas de novelas e também fofocas. Era um boêmio. Sair para a noite cuiabana era como uma obrigação, relembra Lorenzo.

Chico Amorim montou diversas peças com Liu Arruda, como a que tratava de política “Cidade Pedra Lascada” e também foi a sua ideia de casar Comadre Nhara com Juca e assim, nasceram mais dois personagens deste casório: Ramona e Gladstone.

“Porque sobre ele (Chico) não tem quase nada publicado. Foi um artista que vive na memória dos amigos ao invés dos anais acadêmicos e documentais. Não há registro, e desde o final dos anos 1970, que Chico trabalhava com o teatro, e junto com o Liu veio essa ideia de recuperar a autoestima do cuiabano, e começou a despontar porque todo mundo tinha vergonha, do jeito de falar, das roupas, do siriri e cururu, e ele usou isso, com irreverência”, contou Lorenzo.

Trabalharam com teatro de bonecos, fizeram a Máquina da Palavra no Clube Feminino, com música e literatura. Quando de sua morte em 2002, fizeram um caderno intitulado Chico, no Correio Várzea-Grandense, com uma foto enorme dele na capa. Um documentário também foi produzido pela TV Assembleia, mas não se encontra digitalizado. Lorenzo cobra a si próprio e dos amigos, que reúnam todo o material existente para que possam compilar tudo o que Chico Amorim representou para Cuiabá e transformar a sua história viva em memória fixa, em um livro.

Lembro de uma história engraçada que envolve o Chico. Quando criança, não entendia porque meu pai tinha que sair de casa todos os dias (no caso ele ia trabalhar), e eu me escondi no porta-malas do carro para descobrir aonde ele ia. Nesse dia, meu pai levava a minha mãe e deram uma carona pro Chico. E eu vez ou outra levantava a cabeça para olhar aonde íamos. Foi então que o Chico disse: “Eduardo, acho que tem uma cabeça loira aqui no seu porta-malas”. Meu pai e minha mãe deram risada, e creditaram isso a loucura ou bebedeira de Chico.

Mas, é na loucura que se encontra a sanidade ou então que se abraça todo o caos que existe no Universo, para viver em paz. Valéria Del Cueto, outra amiga de Chico, relembra uma imagem que deve estar na mente de todos os que o conheceram: deitado na rede, a contemplar o vazio, com os olhos fitos na imensidão, provavelmente a descobrir novos significados para a vida. E segurando os chinelos apenas com as pontes dos pés. E divagava, mas sempre, sorria.

Para encerrar, acho que é melhor deixar Chico falar por si só.

"Todas estas coisas
Que sobrevoam a minha mente
Quando em versos se desfazem
Me deixam meio frustrado
Porque perdem seu mistério
E me parecem diferentes
Todas estas coisas
Que minha mente
Sobrevoam
Me deixam meio frustrado
Quando em versos se desfazem
Porque perdem o mistério
Que as confere o pensar
E diferentes parecem

Quero algo mais profundo
Não quero saber de mim
Nem quero o saber do mundo
Quero algo mais profundo
Não quero saber do mundo
Quero um pedaço de pão
Quero algo mais profundo:
Me afundo"
Chico Amorim

"Eu queria ser muito rico
Para ter todas as drogas
Que conduzem meu pensamento
Palavras e obras

Atrás de mim
A vassoura do tempo
Varrendo os rastros
Do meu passo
Apagando todas as paixões
Com o estardalhaço absurdo
Do silêncio"
Chico Amorim

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