domingo, 14 de agosto de 2011

Entrevista- Criança não é miniatura de adulto

Kelly Roncato

Quem trabalha em escola sabe que as crianças de hoje são precoces em tudo: no desenvolvimento de múltiplos conhecimentos, na fala, na escrita, no uso do computador, na facilidade para lidar com a tecnologia. Se fosse só isso, tudo estaria muito bem. Mas essa geração vem acompanhando os adultos em muito mais do que isso.

Existem crenças que pregam ser a criança uma miniatura de adulto. Daí o surgimento de conceitos distorcidos, como o de que tudo o que serve para os pais serve, em menor grau, para os filhos. As roupas da moda, os sapatos de salto, os óculos escuros, as dietas alimentares, os dias cheios de compromissos estafantes, os remédios antidepressivos, os psicólogos e uma cobrança absurda em termos de ganhos. “O meu filho é o melhor da turma em tudo: vnos esportes, em matemática, português, inglês, computação... estou investindo horrores no futuro dele”.

Um comentário assim e lá se vai a tranqüilidade da criança. As famílias atuais, com medo de deixar seus filhos despreparados para o mundo, já não os poupam de mais nada. A mudança de escola deve ser compreendida, pois o custo de vida caiu; o nascimento do irmão deve ser encarado naturalmente, porque a mamãe já está tão atarantada com o novo bebê e os outros afazeres da vida, que cabe ao mais velho colaborar e achar lindo. A morte de um parente próximo deve ser vista como algo que faz parte da vida; se a criança puder fazer poucas perguntas e deglutir sem maiores dificuldades, tanto melhor. Caso demore a sarar, basta dar-lhe alguns comprimidos por determinado tempo que logo ele “esquece”, não é?

Não, não é. Prova disso foi um estudo divulgado pela Escola de Farmácia da Universidade de Londres, segundo a qual é crescente o número de remédios contra a depressão utilizados pelas crianças. A psicóloga Ana Cássia Maturano, especializada em Problemas de Aprendizagem, explica quais os problemas decorrentes do tratamento de conseqüências e não de causas dos problemas emocionais nas crianças.

Profissão Mestre – Quais são os sintomas que diferenciam a hiperatividade, o déficit de atenção e os problemas de ordem emocional nas crianças?
Ana Cássia Maturano – A diferenciação é mais difícil de se fazer pelos sintomas, já que alguns são muito parecidos. O correto é fazer um psicodiagnóstico, que propicia uma visão psicodinâmica da criança. Os sintomas apenas nos comunicam de que algo não vai bem. São sinalizadores que podem nos indicar um caminho. Em geral, a hiperatividade é um quadro associado ao de déficit de atenção. São crianças que não conseguem parar para fazer nada, nem o que lhes dá prazer. Com um detalhe: elas sempre foram assim.

No caso de um problema de ordem emocional, a criança tem dificuldade de se concentrar em determinadas atividades. Em situações mais graves, não consegue se envolver em nenhuma atividade. São aquelas que não demonstram interesse pelas coisas. Não necessariamente são agitadas e nem sempre foram distraídas.

Um dado importante é que a criança hiperativa poderá desenvolver algum problema emocional pela própria dificuldade em se concentrar e aprender. Um problema acaba intensificando o outro.

Um bom instrumento para ajudar a definir um diagnóstico é uma análise da história de vida da criança, considerando-se principalmente o surgimento do problema: época, acontecimentos diferentes ocorridos com o aparecimento dos sintomas, acontecimentos que parecem tê-los agravados, situações em que ficam mais evidentes e toda e qualquer informação sobre o seu desenvolvimento. Em síntese, a realização de uma boa anamnese.

PM – Quais são os principais sinais apresentados pelas crianças que estão sofrendo com problemas emocionais?
ACM – Isso varia de pessoa para pessoa. Mais do que um comportamento muito estranho ou específico, que também pode existir, o mais importante é notar a sua intensidade, para mais ou para menos. Já tive casos de crianças que se masturbavam freqüentemente em sala de aula. Não era um comportamento esporádico, mas algo muito persistente.

Existe também o exemplo daquela criança que parece estar em outro planeta. Mas não uma vez ou outra. Quase sempre. Outro clássico são os casos de agressividade ou passividade exacerbada. Resumindo, é preciso muita atenção a tudo que parece fugir do mais ou menos aceitável. Às vezes, ocorre a confusão de se achar que a criança agressiva é a que tem problema. Nem sempre. Um certo grau de agressividade é normal em qualquer pessoa. Por outro lado, a criança passiva, e que não incomoda, é considerada boazinha. Muitas vezes é a que tem problemas de ordem emocional e, portanto, a que mais precisa de ajuda.

Nossa orientação aos profissionais que cuidam de crianças é a seguinte: tenha sempre em mente que cada criança, como cada ser humano, funciona de um modo muito próprio. Portanto, mais que a qualidade de um comportamento, o que nos dá a dica é sua intensidade.

PM – De que maneira problemas emocionais podem ser constatados durante as aulas?
ACM – Os professores devem observar se o aluno vem apresentando algum comportamento que foge ao esperado. Porém, não se deve supor que a simples ocorrência desse fato seja suficiente para se diagnosticar um problema emocional. Nesses casos, é fundamental buscar o auxílio de um profissional especializado.

PM – Como o professor pode proceder quando percebe a presença de um aluno com problemas emocionais na sala de aula?

ACM – Quando o professor perceber algo que chame sua atenção, o primeiro passo é ficar mais atento ao aluno. Pode ser algo passageiro ou apenas um momento. No caso de o que lhe chamou a atenção persistir, o melhor é chamar os pais para saber como andam as coisas com a criança. Sempre com o cuidado de não fazer diagnósticos ou dizer que o filho deles tem problemas. O professor ou o profissional da escola deve, de forma simples e calma, informar o que observou. Pode ser apenas um mau momento que a criança está passando, como a doença de alguém. Do contrário, o melhor é orientar que os pais procurem uma ajuda especializada.

PM – Que tipo de cuidados os professores e a escola devem tomar em relação a um aluno com problemas emocionais?
ACM – O maior cuidado é não fazer qualquer julgamento moral desta criança ou de sua família, não permitindo que outros também o façam. Além disso, uma criança com problemas emocionais pode não render tanto quanto poderia. É importante que o professor possa perceber o que a criança pode lhe dar. Com isso, tornará o ambiente mais seguro para ela, tornando-lhe as coisas mais fáceis.

Outra dica é evitar chamar a atenção para esta criança. O professor deve cuidar para que sua vida pessoal não seja exposta.

PM – Que profissional da escola é o mais indicado para orientar a família da criança em uma situação dessa?
ACM – O psicólogo ou psicopedagogo responsável pela instituição.

PM – De que maneira ele deve proceder para que essa orientação apresente bons resultados?
ACM – Um ponto fundamental é manter contato freqüente com a família, num ambiente de parceria e colaboração. No caso da criança que tem um acompanhamento com um profissional fora da escola, essa parceria também deve acontecer.

PM – Quais os problemas mais comuns em crianças?
ACM – Penso que o problema mais comum das crianças é o medo: medo de serem abandonadas, de não serem amadas, de não terem a aprovação dos pais. Isso pode ser notado em vários comportamentos: o de roubar, mentir, deprimir-se, o ciúme que tem dos irmãos (claro que certa dose é normal) etc.

As escolas podem contribuir de maneira positiva para o desenvolvimento saudável de seus alunos. Além de realizarem cursos para pais, com o intuito de orientá-los em questões do dia-a-dia com seus filhos, devem fornecer orientação aos próprios educadores, de modo a qualificá-los a trabalhar os conflitos, à medida em que vão surgindo. Um exemplo é a morte de alguém que é conhecido de um grupo de alunos. O assunto pode vir à tona e até deixar algumas crianças incomodadas. O professor, quando bem orientado, pode trabalhar isso de uma forma bastante adequada.

PM – Existe uma idade na qual os alunos estejam mais sensíveis a problemas emocionais?
ACM – Não, não há uma idade. No entanto, a entrada na escola merece uma atenção especial. Afinal, eles estão deixando o ambiente protegido de suas casas para irem para outro em que terão que dividir o espaço com outras crianças e onde não haverá tanta proteção.

A adolescência, por ser naturalmente um período de muitos conflitos, também é uma época que merece bastante atenção.

PM – Se ocorrer de algum estudante apresentar problemas de comportamento na escola em decorrência da falta de medicamento, como o professor deve proceder?
ACM – Caso esta orientação tenha vindo de um profissional competente, a escola deve cobrar dos pais que o estudante não deixe de usá-lo.

PM – Existe uma matéria específica na qual o rendimento apresente queda no caso de o aluno estar enfrentando algum momento difícil?
ACM – Não. A queda de rendimento numa matéria específica poderá ser entendida numa análise.

PM – Por que é mais fácil detectar esse tipo de problema na escola?
ACM – Como família e pessoas que fazem parte do dia-a-dia da criança e, provavelmente, da sua dinâmica, estamos mais envolvidos emocionalmente com nossos filhos e isso nos impede, muitas vezes, de vermos o óbvio. Ou seja, de certo modo fazemos parte do problema.

Na escola existe uma neutralidade maior das pessoas em relação às crianças. Essa neutralidade facilita a observação de que algo não vai bem.

PM – De que forma o uso de remédios pode influenciar o rendimento escolar das crianças?
ACM – No caso de uma criança com o quadro de hiperatividade e déficit de atenção, pode acalmá-la de modo que ela possa investir sua energia no aprender. No entanto, o uso de remédios tem de ser muito bem pensado. Há alguns que são muito fortes e deixam as crianças apáticas, impedindo que elas se envolvam em qualquer atividade.

PM – Existe alguma maneira de tratar a causa, ao invés da conseqüência? Qual?
ACM – No caso de problemas emocionais, um trabalho mais preventivo poderia ocorrer com uma atividade de orientação de pais oferecida pela própria escola. As próprias condições sociais em que vivemos, ou seja, a falta de segurança de emprego, integridade, etc, podem ter uma influência grande nas famílias e aí interferir na saúde mental delas.

PM – O efeito de medicamentos não poderia ser trocado apenas por psicologia ou uma maior atenção dispensada aos pequenos por parte dos pais e professores?
ACM – Cada caso é um caso. O uso de medicamento deve ser utilizado como último recurso. Mesmo a utilização deles não dispensa um trabalho psicológico, que deve envolver as pessoas que cuidam deles.

PM – Partindo do princípio de que um dos problemas mais comuns enfrentados pelas crianças é a separação dos pais, de que forma a família poderia “trabalhar” com essa criança para que ela não venha a apresentar problemas mais sérios?
ACM – Algo interessante seria uma assistência psicológica às famílias cujos pais estejam em processo de separação. Este é um momento em que muitas mágoas vêm à tona, sendo difícil manter um certo equilíbrio emocional. O que os pais devem fazer é deixar claro para as crianças que eles é que estão se separando - e não os pais dos filhos. Também é importante esclarecer para os filhos que eles não são os culpados pela separação. Além disso, os ex-cônjuges devem manter um relacionamento amistoso e não impedir que aquele que sair de casa participe ativamente da vida da criança. A Lei também precisa ser revista, no item que regula a participação daquele que sai de casa a umas poucas visitas por semana. Para que tenha um mínimo de qualidade de vida, uma criança precisa conviver harmoniosamente com ambos os pais.

PM – Em todas as partes existem “vampiros emocionais”, aqueles seres que sugam a energia das pessoas com quem convivem. De que maneira é possível manter-se próximo dessas pessoas sem deixar-se influenciar pela energia delas?
ACM – Não por acaso uns são mais vítimas dessas pessoas que outros. Penso que de certo modo uma pessoa que se sente sugada pela outra, e se isso realmente acontece e não é apenas uma leitura dela, é porque deixou. Sem, provavelmente, ter consciência disso. Quando se sente sugada por alguém, a pessoa deve dizer não e colocar um basta, afinal também é responsável pela situação. Caso se veja impossibilitada de tomar uma atitude, o melhor a fazer é procurar uma análise. Uma compreensão de seu próprio funcionamento pode ajudá-la a se sair melhor de situações como essa.

PM – Existe uma maneira de detectar a presença dessas pessoas? Qual?
ACM – Não sei se existem pessoas com características tão específicas e facilmente detectáveis. Acredito serem duplas que se formam e que, pelas suas características, um de certa forma complementa o outro: um só suga porque o outro se deixa sugar.


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