quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Milagre da multiplicação


Piracema: devemos ter o mínimo de dignidade com a renovação da vida

Tudo que existe no universo se encontra em contínua transformação, evoluindo em ciclos ou períodos de duração variável. Desde o aparecimento de ambientes habitáveis, estes vêm sendo ocupados por espécies animais e vegetais que se sucedem ecologicamente em equilíbrio dinâmico, segundo as leis de fluxo refluxo e dissipação de energia.

O declínio, ou mesmo a extinção de determinadas espécies, tantas vezes documentada pela paleontologia, certamente decorreram de transformações, verificadas nesses mecanismos, motivadas por mudanças relativamente rápidas de variáveis físicas, químicas e biológicas em ecossistemas em naturais e/ou antropizados.

Com o surgimento da espécie humana na Terra (Homo Sapiens), e em todo o decorrer de historia evolutiva da humanidade, o peixe foi e será sempre uma importante fonte de proteína conhecida e apreciada no mundo inteiro, singular base alimentar para a humanidade.

Nós, seres “racionais”, devemos mais do que ninguém respeitar sua preservação e conservação, especialmente no sagrado período da procriação. Nesse espaço de renovação da vida é preciso evitar pescarias, não praticar esporte aquático, não alterar o curso das águas... Só assim a vida se perpetuará naturalmente.

Para que o fenômeno da piracema possa ocorrer naturalmente, a mãe natureza sabiamente prepara o ambiente, criando todas as condições para que rios, córregos, lagos, lagoas e vazantes o recebam... No Brasil a piracema acontece de novembro a fevereiro, período em que os ambientes aquáticos estão com o nível das águas em elevação. As condições de intempéries estão perfeitas, água aquecida pelo sol, coloração amarronzada, aumento de nutrientes em suspensão... É exatamente nesse momento que os cardumes detectam as mudanças e sabem que chegou a hora.

Um radar infalível chamado sistema nervoso central decodifica as mensagens traduzindo-as numa ordem única: subir, saltar e vencer as corredeiras rio acima, entregando-se a um duelo orgástico com as águas até atingir a explosão da desova e o surgimento de novas vidas.

Para o cientista Manoel de Godoy, profundo conhecedor da ictiofauna brasileira, “o ser humano precisa entender e respeitar o impulso irresistível da piracema e os requisitos para que ela continue a existir”.

Ao estudar o ecossistema aquático, percebe-se que lá o ambiente é muito bem organizado, com área de alimentação, onde eles desenvolvem-se fisicamente. O pantanal mato-grossense é um bom exemplo desse ambiente. Em seguida, o local de reprodução propriamente dito, para onde os cardumes se deslocam, são as cabeceiras dos rios com a água em movimento contínuo e bem oxigenada. Estimulados por instintos naturais, sabem que ali a probabilidade de aumentar a prole é muito maior.
No entanto, para que tal fenômeno possa ser bem-sucedido, a natureza exige mais, é preciso que o ambiente em questão apresente as seguintes características: níveis dos rios em elevação, temperatura da água entre 22 e 28 graus, pH entre 7 e 7,4, transparência inferior a 10 cm, gás carbônico inferior a 20 ppm, horário propício para que a fecundação ocorra entre 16 horas e 17 horas.

No período que antecede a piracema, o ovário maduro representa 24% de peso nas fêmeas, e os testículos maduros representam 15% do peso nos machos. 20% de gorduras são armazenados em seus corpos a ser gastos ao deslocarem rio acima, até atingir seus objetivos.

Além de todos esses percalços, as arribações enfrentam desafios gigantescos tais como oscilações climáticas, temperaturas extremas, parasitas, barreiras naturais... Pressão antrópica, com interferência humana poluindo ecossistemas aleatoriamente. Produtos químicos como mercúrio, chumbo, cádmio, pesticidas, agrotóxicos, metais pesados... Esgotos domésticos e industriais in natura correndo a céu aberto assoreando rios, córregos, nascentes... Barragens rudimentares de pequenas, médias e grandes hidrelétricas... Fiscalização pública ineficaz, pesca predatória... São questões literalmente em aberto. Ou será que não?

Tem razão o cientista Manuel de Godoy. É muito difícil, quase impossível, pensar na insensibilidade humana, em não conseguir mirar a irresistível força reprodutiva da arribação selvagem e serena do dourado, do pintado, da piraputanga, do curimbatá e tantas outras, em duelo pelos rios e córregos do país buscando a perpetuação da vida.

Como disse, de novembro a fevereiro ocorre o período de defeso nos rios mato-grossenses. Vamos respeitar esse espaço. Enquanto seres humanos ‘racionais’, devemos ter o mínimo de dignidade com a renovação da vida, nesse período. Pronto, falei!

ROMILDO GONÇALVES é biólogo, mestre em Educação e Meio Ambiente, perito ambiental em fogo florestal e professor-pesquisador da UFMT/Seduc.

romildogoncalves@hotmail.com

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