terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A Pesquisa Linguística no Ensino Médio - Primeira Fase


Professor: Ewerton RezerGindri[i]
Turmas envolvidas: 3º D e 3º E da EE. 29 de Novembro


Introdução

A história de uma língua está diretamente relacionada à história de seus falantes, assim como, em um movimento de reciprocidade incontestável, a história desses relaciona-se à história de sua língua. Essa certeza, bem como o entendimento de que língua, sujeito e história ligam-se através da ideologia materializada no Discurso, levou EniOrlandi, juntamente com outros pesquisadores brasileiros, a firmar com a França, especialmente com o grupo coordenado por SilvainAuroux, um programa de pesquisas que aliasse a história da construção de um saber metalinguístico à história da construção da língua nacional, surge assim, no Brasil a HIL (História das Ideias Linguísticas).Tais estudos acabam por abordar também a questão da identidade, já que as pesquisas demonstram que a língua é a principal manifestação ideológica, das quais os sujeitos enunciam.
Por muito tempo o ensino de linguagens na escola esteve resumido a uma prática metalinguística, na qual o professor passava inúmeras aulas trabalhando o ensino da nomenclatura gramatical, sem ao menos contextualizar sua origem ou uso. Os livros didáticos de língua portuguesa priorizavam a morfologia e um pouco de sintaxe, reservando pouquíssimo espaço para a semântica e a interpretação textual resumiu-se, por muitos anos, a “encontrar” os sentidos “no” texto.
Entendemos, a partir de um posicionamento teórico que busca na Análise de Discurso de linha francesa sua base, que “os sentidos e o sujeito se constituem ao mesmo tempo no interior de uma formação discursiva no confronto entre as diferentes formações. Esta relação constitui a historicidade do sujeito e dos sentidos” (Orlandi, 1998, p. 13). Com o intuito de demonstrar a relação existente entre sujeito, sentidos e ensino, bem como perceber a heterogeneidade discursiva do “sujeito migrante” de Mato Grosso, desenvolvemos com os alunos dos 3º D e 3º E um projeto denominado “O monolinguismo e o ensino de línguas”.

Metodologia

A pesquisa em Análise de Discurso não segue os caminhos tradicionalmente percorridos pelas demais áreas, nem mesmo o conhecido caminho da pesquisa sociolinguística, preconizado por Labov e popularizado no Brasil por Taraloet al. Podemos, seguindo Orlandi(2007), dividir a pesquisa discursiva em três etapas.
Na primeira etapa, tem-se contato com o texto, com o material linguístico propriamente dito. Para essa fase usamos questionários, visando um perfil específico de informante: nascido na região alvo, tendo vivido nela mais de 20 anos antes de mudar-se para Mato Grosso, e que resida, atualmente, em Tangará da Serra. Em seguida, produz-se uma análise que terá por finalidade identificar as Formações Discursivas presentes no texto. Na última etapa, busca-se analisar as Formações Ideológicas presentes nos discursos e suas relações com os efeitos metafóricos do texto. Nesse texto, trazemos os resultados da primeira etapa.

Reflexões

As cidades de Mato Grosso hoje, especialmente as que são fruto direto da onda migratória chamada de “Marcha para o Oeste”, em sua maioria, emancipadas na segunda metade da década de 1970, possuem uma diversidade de falares comparável talvez apenas aos grandes centros metropolitanos da região sudeste, como São Paulo e Rio de Janeiro. Nesse novo panorama, as especificidades do falar regional, exemplificado em diversos trabalhos pelo falar cuiabano[ii], são estigmatizadas, trazendo um já-dito de atraso e rusticidade relativos ao nativo de Mato Grosso[iii]. Dessa forma o falar nativo carrega consigo uma memória (Payer, 2006) que se choca com a ideia de brasilidade trazida pelo migrante das regiões sul e sudeste, especialmente.
Podemos citar como exemplo alguns traços encontrados no falar cacerense[iv]. Nessa cidade, diversos pesquisadores[v] têm encontrado, em seu falar peculiar, formas que rememoram outro português, falado pelos primeiros colonizadores e modificado pelo contato com as línguas indígenas de Mato Grosso. Podemos citar alguns dos exemplos observados por Bisinoto (2007), tais como: “a aparente indiferença quanto aos marcadores de gênero, tanto no uso de artigos como no de morfemas flexionais [...] a saliência fônica no timbre de vogal nasalizada, que se abre” (Bisinoto, 2007, p.20).  Esses migrantes têm ao seu lado o poder econômico, mas também representam uma ordem, um projeto nacional que em Mato Grosso tomou outros caminhos, deslizou, de forma que durante algum tempo o Estado de Mato Grosso esteve como um desafio à ordem nacional, mas agora é “tomado”, por essa.
A ganância do mercado globalizado, em seu hipertexto, a mídia, (Payer, 2005), apoia os migrantes na mesma proporção em que condena a cultura que se distancia dela. Essa condenação não se faz de maneira explícita ou com violência física, mas os meios pelos quais o capital age afetam o viver tradicional, empurrando a cultura matogrossense, e seus atores, para a periferia dessa nova conjectura, de forma tanto simbólica, quando lhes nega o saber, por exemplo, como de maneira material, ao ocupar espaços, sejam urbanos ou rurais, tradicionalmente pertencentes às comunidades nativas. Dessa forma, o falar nativo passa por uma espécie de negação, na qual não só lhe é negada a historicidade, como também um futuro.
Ao lado do migrante, além do texto midiático, está também a Escola. Nela não há espaço preponderante para a variante do nativo, apenas para a trazida pelo migrante. Também não haverá na Escola espaço para as línguas indígenas, relegadas ao imaginário e circunscritas às aldeias. O que queremos realçar nesse momento é o fato de que Mato Grosso constitui-se numa pluralidade linguística, na qual identidades estão em luta, formas de saber, de fazer, de significar. Dessa forma a Escola de Mato Grosso representará uma arena na qual essas historicidades estarão em enfrentamento direto, pois a língua é onde se materializa o discurso. Segundo Silva (2007)[vi]

A Escola é uma instituição de uma sociedade dada, gerida em suas grandes diretrizes pelo Estado, marcada por realidades complexas e contraditórias, e que se caracteriza por colocar em jogo práticas, teorias, metodologias e tecnologias que são datadas historicamente, que se aliam-confrontam aos interesses e necessidades materiais dos diferentes grupos sociais. Dá-se, ali, então um confronto de forças, de alianças e cooptações de posições políticas e ideológicas que não são individuais, nem universais, mas que se organizam em formações discursivas, referidas a formações ideológicas [...] (Silva, 2007, p. 148)

Por isso, pelo fato da Escola ser de “uma sociedade dada” é que o contato dos alunos com o migrante, através das entrevistas, trás uma perspectiva de estudo, até então relegada a disciplinas como a sociologia ou a geografia.

Algumas considerações

Compreender as relações entre história, língua e sujeitos possibilita ao aluno ver nos fenômenos da linguagem mais do que pragmatismo. Ele compreenderá a língua como materialização de discursos, espaço de luta ideológica e poderá assim, desenvolver uma leitura crítica.
As OCs do Estado de Mato Grosso, ao tratarem do ensino de Língua Portuguesa, lembram que

[...] alíngua  pode  ser  instrumento  de  poder,  um  meio  pelo  qual indivíduos  controlam  outros  ou  resistem  a  esse  controle;  um  meio  a  ser  utilizado para promover mudanças na sociedade ou para impedi-las; para afirmar ou extinguir identidades culturais; enfim, dominar a linguagem, em seus aspectos linguísticos, textuais e discursivos, dá condição de os alunos participarem ativamente da sociedade. (OCs – Linguagens, p.101)

            Demonstrar, através de abordagens históricas, e também por análises discursivas, como se dão esses processos é essencial para a compreensão dessa nova concepção de leitura. As atividades do projeto irão construir um painel a partir do qual o cursista consiga perceber os efeitos de sentido da língua para além do óbvio, de forma que a intenção do autor não seja a única meta perseguida, mas como esses textos significam em uma formação discursiva dada.
Nessa primeira etapa do projeto, foram realizadas quatorze entrevistas, sendo,dois informantes das regiões Sul, Sudeste, Norte e Nordeste e quatro da região centro-oeste. Os alunos, ao realizarem as pesquisas, tiveram o cuidado de recolher o Termo de Consentimento dos informantes, de forma que as próximas etapas, as de análise, possam ser publicadas e também arquivadas na biblioteca da escola, onde ficarão a disposição da comunidade escolar. Com a pesquisa de campo, tem-se também a oportunidade de ver como Mato Grosso equaciona as diferentes formações discursivas e as várias formas de produzir sentidos, encaixando-se no que Pistrakdisse:

O trabalho na escola, enquanto base da educação, deve estar ligado ao trabalho social, à produção real, a uma atividade concreta socialmente útil, sem o que perderia seu valor essencial [...] Assim, o trabalho se tornaria anêmico, perderia sua base ideológica. (Pistrak, 2000, p. 38)

Assim, pensamos que as aulas de Língua Portuguesa devem perseguir um alargamento do conceito de leitura, que passe pela historicidade da língua, pela ideologia, que se materializano discurso, e pela interpelação do sujeito. Essa abordagem não pode se concretizar sem o uso consciente de diferentes gêneros textuais, dentre eles a entrevista, nas aulas de linguagem.
Vale ressaltar que as OCs a esse respeito dirão que

Tais atividades, nessa perspectiva, devem constituir situações quepermitam  a reflexão sobre o uso dos recursos expressivos na constituição dos sentidos de um texto que propiciem a análise da trama discursiva dos textos lidos e a percepção de diferentes vozes  presentes  neles,  que  revelem  as  diferenças  composicionais  e  estilísticas  entre os gêneros discursivos. (OCs – Linguagens, p.102)

É exatamente isso, analisar as tramas discursivas e as diferentes vozes do/no sujeito migrante, que esse projeto pretende. Nessa primeiraavaliação, julgamos caminhar pela estrada que leva à aprendizagem e à educação de qualidade, que se voltaàquilo que é de sua gente e de seu chão para com eles contribuir. 

Referências Bibliográficas

BISINOTO, Leila Salomão Jacob. Atitudes sociolinguísticas: efeitos do processo migratório / Leila Salomão Jacob Bisinoto – Campinas: Pontes Editores, RG Editores, 2007.

Mato Grosso. Secretaria de Estado de Educação. Orientações Curriculares: Diversidades Educacionais./ Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Cuiabá: Defanti, 2010.

Orientações Curriculares: Área de Linguagens: Educação Básica./ Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Cuiabá: SEDUC – MT, 2010.

Orientações Curriculares: Concepções para a Educação Básica./ Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Cuiabá: SEDUC – MT, 2010.

ORLANDI, E. P. A leitura e os Leitores / Eni Puccinelli Orlandi (organizadora). – Campinas, SP: Pontes, 1998.
______________. Análise de Discurso: princípios e procedimentos, Eni P. Orlandi. 7ª ed., Campinas, SP: Pontes, 2007.

PAYER, M. Onice. Linguagem e sociedade contemporânea – Sujeito, mídia, mercado. In: RUA: Revista do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da UNICAMP – NUDECRI. Campinas, SP, n. 11, março 2005.

________________. Memória da Língua. Imigração e nacionalidade. São Paulo, Ed. Escuta, 2006.

PISTRAK, M. Fundamentos da escola do trabalho. 1ª ed. São Paulo, Expressão Popular, 2000.

SILVA, M. V. A Escolarização da Língua Nacional. In: Orlandi, Eni P. Políticas linguísticas no Brasil, Eni P. Orlandi (org.) / Campinas, SP: Pontes Editores, 2007.






[i] Professor de Língua Portuguesa da EE. 29 de Novembro, Mestre em Linguística pela Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT e pesquisador do NEED/UNEMAT (Núcleo de Estudos de Educação e Diversidade da UNEMAT).
[ii]Bisinoto (2007), Oliveira (1996), Arruda (1998), Lima (2007) dentre outros.
[iii] Para saber mais sobre esse já-dito, Di Renzo (2012).
[iv] Relativo ao município de Cáceres, situado ao sudoeste do Estado de Mato Grosso, distante 210 km de Cuiabá e a 90 km da fronteira com a Bolívia.
[v]Bisinoto (2007), Arruda (1998), Cassiano da Silva (1921).
[vi] Vieira, M. S. A escolarização da Língua Nacional. In: Orlandi, Eni P. Políticas linguísticas no Brasil, eni P. Orlandi (org.) / Campinas, SP: Pontes Editores, 2007.

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