sexta-feira, 13 de setembro de 2013

A manchete é uma, mas a notícia...

DE SÃO PAULO
 

Quem já fez a prova de português de algum dos concursos da ESAF (Escola de Administração Fazendária) talvez tenha tido de responder a uma questão típica dessa prestigiada instituição. A coisa funciona assim: dá-se o início (um ou dois parágrafos) de um texto real, publicado em algum jornal ou revista. Nas alternativas que compõem o enunciado, dão-se as possíveis continuações daquela matéria. O candidato deve assinalar a sequência pertinente.

Algum analista precípite talvez diga que a banca quer saber se o candidato leu a tal matéria e tem memória de elefante. Nada disso. Não é preciso ter lido aquela matéria quando foi publicada; basta (saber) ler o trecho dado e (saber) relacionar as ideias para ser capaz de apontar a continuação do texto.

Fora eu membro duma equipe de treinamento de funcionários de algum dos tantos infames serviços de teleatendimento deste país, incluiria esse tipo de avaliação, que seria item eliminatório. Não passou nesse tipo de questão, não trabalha no serviço de tortura, digo, de teleatendimento.

Esse exercício também seria interessante em escolas de jornalismo, de onde sai muita gente que não consegue relacionar ideias etc., o que se comprova por algumas manchetes que ou não têm nada que ver com a matéria ou, pior, invertem a relação entre os fatos noticiados.

Quer um exemplo, caro leitor? Lá vai um, bem fresquinho. Um avião da TAM, que fazia a rota Madri-Guarulhos, teve de descer em Fortaleza. O motivo? Uma forte turbulência deixou feridos alguns passageiros. Agora veja esta chamada de capa (publicada, ou seja, não inventada por mim): "Pouso de emergência de voo da TAM deixa feridos no CE". E vamos à página em que estava a matéria. O título que lá se lia era este: "Passageiros ficam feridos após turbulência, e avião da TAM faz pouso de emergência".

E então, caro leitor? O que me diz da chamada da capa? Condiz com o que de fato ocorreu? Os passageiros se feriram durante o pouso? Não e não. O pouso imprevisto se deu porque a forte turbulência deixou feridos alguns passageiros e destruiu partes do teto da aeronave.

A esta altura o leitor talvez se pergunte a que se devem esses títulos falsos. Seja qual for a razão, o procedimento é grave, condenável.

Vou dar outro exemplo, mais "bobinho". Estava num site esta chamada: "Scheila Carvalho e amante posam juntas para foto". Como a foto mostrava duas mulheres, deduz-se que a outra mulher é amante de Scheila Carvalho. Vamos à pagina à qual a chamada da capa remetia. Lá se lia este título: "Scheila Carvalho e Kamila Simioni já posaram juntas para fotos". E tome lambança! A troca de "posam" por "posaram" e a inclusão do advérbio "já" mudam tudo, não? Pois bem. A leitura do começo do texto muda tudo de vez, visto que lá se informa que Kamila é amante do marido de Scheila, e não da própria Scheila. Lambança, lambança, lambança!

Por fim, vale citar o que um grande e saudoso amigo chamava de não notícia, ou seja, a transformação em notícia (manchetada!) do que não é notícia ou do que não é a essência da notícia. Um exemplo: na semana passada, o MEC divulgou algumas redações que obtiveram nota máxima no último ENEM. Uma delas --impecável, muito bem escrita, bem articulada, bem fundamentada-- apresentava um pequeno senão: a palavra "espanhóis" grafada sem acento em uma das suas duas ocorrências. O título era este: "MEC publica exemplo de redação nota 1.000 com erro de português".

Exagero, não? Ninguém perguntou, mas digo que também daria 1.000, sim, apesar da falta do acento. Devagar com o andor. É isso.

Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".

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