domingo, 19 de fevereiro de 2012

Entrevista com Gley Costa

Fernanda Bagatini

Nos últimos 50 anos, os brasileiros têm-se deparado com mudanças nas relações familiares que ocorrem numa velocidade que desafia diariamente a capacidade do ser humano. Hoje, 40% das crianças experimentam o rompimento conjugal dos pais antes de completarem 15 anos e aproximadamente 80% dos pais separados voltam a se casar nos três anos seguintes. Como conseqüência da alta incidência de novos casamentos, um quarto das crianças viverá, por algum tempo, com uma família não-consangüínea. Além disso, casais homossexuais também têm optado pela paternidade. A legislação brasileira já admite a adoção de crianças por pessoas solteiras de ambos os sexos, sem questionar a orientação sexual, e Essas modificações, que preocupam pais e professores, são analisadas nesta entrevista pelo psiquiatra Gley Costa, membro titular da Associação Psicanalítica Internacional, professor da Fundação Universitária Mário Martins e autor de diversas obras, entre elas, O amor e seus labirintos, lançada recentemente pela Artmed.

De que modo a sociedade está modificando-se e promovendo novas configurações familiares?

Até a modernidade, família e sociedade influenciavam-se mutuamente, sendo a escola um dos canais de comunicação entre essas duas instituições. Isso acontecia porque era principalmente na escola que a criança e o adolescente tomavam conhecimento do outro diferente, configurado pelos colegas, por suas famílias e pelo próprio conhecimento adquirido através do professor. Contudo, atualmente, observa-se um avassalador declínio da influência familiar, a qual tende a se tornar uma mera repetidora de valores e condutas ditadas pela sociedade. Como resultado, a família tradicional adquiriu uma nova configuração, que, por suas características, pode ser denominada de família pós-moderna, marcadamente influenciada pela propaganda, que gera todos os dias novas necessidades para aquecer o consumo, e pela televisão, que funciona como um novo e persuasivo membro familiar.

Como o senhor analisa essa nova família?

Um aspecto dessa nova família tutelada pela mídia é a inversão de valores. Antes eram os pais que serviam de modelo para os filhos. Hoje, são os filhos que modelam os pais. Isso é fruto de um fenômeno típico da pós-modernidade chamado moda, que define estruturalmente a sociedade de consumo. Nesse império em que tudo se torna rapidamente obsoleto, o jovem, como se fosse um produto recém-saído da fábrica, é oferecido como um ideal de sucesso e felicidade. No passado, o importante para a sociedade era o que o adulto pensava; hoje, o importante é o que o jovem pode fazer. O novo modelo masculino e feminino cultuado pela propaganda é o físico, essencialmente o de um adolescente, não mais de um adulto. Ao mesmo tempo, o corpo não é mais o corpo da pessoa, mas o corpo da moda. Quando falamos em novas configurações familiares, também consideramos as que resultam dos casamentos realizados entre pessoas separadas ou divorciadas, juntando filhos de sua união atual aos filhos dos relacionamentos anteriores. Na falta de um melhor termo, essas famílias costumam ser chamadas de "reconstituídas". As relações entre os integrantes das famílias reconstituídas costumam ser mais tolerantes e democráticas, abrindo caminho para uma melhor aceitação das diferenças, condição fundamental de convivência em grupo que influenciará favoravelmente a vida escolar da criança e do adolescente. A idealização da família tradicional deve ser entendida como uma organização defensiva contra o medo do abandono e da dissolução. Apesar disso, a família continua sendo importante, necessária e indispensável para a estruturação psíquica do indivíduo, mas os seus verdadeiros valores podem ser resgatados na formação das novas famílias criadas pela separação.

Quais as conseqüências dessas novas configurações para o desenvolvimento de crianças e adolescentes?

As conseqüências dessa família submetida a uma verdadeira ditadura do narcisismo revelam-se na dificuldade dos jovens de manter uma relação mais profunda, consistente e duradoura com outras pessoas e com as instituições, entre as quais se inclui a escola e, mais tarde, a faculdade. Eles se encontram embriagados pelo estilo de vida de uma sociedade que estimula e estabelece como aceitável esse padrão de convivência. Faz algum tempo que os adolescentes passaram a empregar o verbo "ficar" para definir um relacionamento diferente do namoro, no qual não há compromisso, nem exclusividade, existe apenas o contato físico. Em uma única festa, é aceito que um rapaz ou uma moça fique com mais de um parceiro. O surpreendente é que tal comportamento passou a ser plagiado pelos adultos que, naturalmente, incluíram em seu discurso o "ficar" dos adolescentes.

Hoje já é muito comum que casais homossexuais tenham filhos, sejam gerados por um dos parceiros, sejam adotados. Como o fato de ser criado por pais homossexuais afeta o desenvolvimento de uma criança?

O desenvolvimento da criança depende, fundamentalmente, de que os pais cumpram suas respectivas funções; caso contrário, é como se eles não existissem. No caso da mãe, sua principal função é compreender as necessidades iniciais da criança e ajudá-la a construir uma subjetividade e, no caso do pai, transmitir as leis da cultura e da sociedade, o que implica a difícil tarefa que se observa na atualidade, que é a colocação de limites. Existem situações em que a falta ou a inadequação de um dos pais é plenamente suprida pelo outro e situações em que as funções encontram-se invertidas ou não são exercidas nem pelo pai nem pela mãe. Por outro lado, a realidade de que a maioria dos homossexuais é filho de casais heterossexuais indica que dispor de uma figura masculina para se identificar, no caso do menino, e de uma figura feminina, no caso da menina, não é suficiente: a questão da sexualidade infantil é muito mais complexa. É provável que o melhor que os cuidadores, pais ou substitutos, possam fazer é não agir de maneira intrusiva ao procurar impor as próprias características como modelo, mas permitir que a criança desenvolva-se com liberdade para explorar todas as suas potencialidades em múltiplos e variados relacionamentos, livre de preconceitos. Se um par, formado por um homem e uma mulher, ou por dois homens e duas mulheres, for capaz de exercer as chamadas "funções parentais", a criança aos seus cuidados terá as condições mínimas para se desenvolver psicologicamente de forma satisfatória.

A homossexualidade é uma realidade na escola, tanto em relação a alunos quanto a professores e pais de alunos, o que em muitos casos gera discriminação, bullying e situações de desconforto para os educadores, que não sabem como agir diante de tais casos. O que o senhor aconselha aos professores?

Diria aos professores que todas as recriminações aos indivíduos homossexuais não passam de preconceito. Em outras culturas, não se observa o mesmo fenômeno. Na verdade, ao longo dos séculos, a história tem-se mostrado cambiante em relação ao homossexualismo: ora idolatrando-o, como na Grécia Antiga, ora degradando-o, como na Idade Média. Contudo, identificado com a moral vigente, o adolescente se considerará "normal" se for heterossexual e "anormal" se for homossexual. Como resultado, um grande número de adolescentes homossexuais, contrariando sua tendência, procura manter relacionamentos heterossexuais com o objetivo de atender à expectativa da família, dos amigos e da sociedade. No entanto, essa submissão acarreta depressão e um grande sofrimento, contribuindo para a baixa auto-estima geralmente observada nos indivíduos que reprimem sua sexualidade. A falta de apoio dos pais e professores e o temor de decepcioná-los fazem com que o adolescente somente torne pública sua atração por pessoas do mesmo sexo mais tarde, por volta dos 20 anos, ou depois de um casamento heterossexual frustrado. A escola pode prestar uma importante contribuição para diminuir o sofrimento imposto aos alunos e professores homossexuais promovendo palestras e debates sobre o tema com a participação de profissionais esclarecidos.

Qual a importância dos limites na formação das crianças e dos adolescentes? Como lidar com eles na escola?

Em 50 anos, assistimos tanto em casa quanto na escola à radical transição de uma educação muito repressiva para uma educação exageradamente permissiva. Pais e educadores estão desnorteados e sentem-se divididos entre a imagem interna de seus pais e o ambiente social que os rodeia na atualidade. Contudo, não se deve colocar essas duas tendências em oposição, como se tivéssemos de optar por uma ou outra; devemos, dentro das possibilidades, procurar integrá-las. Até certo ponto, precisamos encarar a educação como as roupas que saem de moda: não devemos jogá-las fora, pois, passado algum tempo, acabam voltando a ser usadas. Mais do que tudo, não devemos esquecer que a criança precisa de um modelo não apenas para se identificar, mas também para se opor e criticar, constituindo, assim, a própria identidade, que será mais rica, sólida e verdadeira se integrar os pais do passado e do presente. Todavia, no processo educativo, não adianta apenas traçar os limites. As crianças e os adolescentes precisam saber que a disciplina está ligada à sua segurança, favorece o seu desenvolvimento e constitui uma forma de respeitar os direitos alheios. Lamentavelmente, interpretações imprecisas e generalizações das teorias psicanalíticas têm levado a muitos equívocos na educação de crianças. Um desses equívocos tem como origem o pressuposto de que a repressão dos impulsos sexuais leva à neurose, determinando uma postura excessivamente permissiva a esse respeito por parte dos pais. Outra questão relaciona-se com o impulso agressivo. Não condiz com uma boa prática educativa inibir o impulso agressivo da criança, já que é ele que nos permite ter iniciativas, competir, lutar pela vida e enfrentar as dificuldades. No entanto, seus excessos devem ser amenizados e integrados com o impulso amoroso, o qual, quando estimulado e valorizado, capacita o indivíduo para o estabelecimento de relacionamentos gratificantes e estáveis. Se um modelo de educação não levar em consideração tal premissa, é provável que o impulso amoroso seja sufocado pelo impulso agressivo, e as crianças certamente apresentarão dificuldades em sua vida social e afetiva. Cabe aos pais e professores ajudá-las a lidarem com as frustrações correspondentes às sucessivas etapas do desenvolvimento para que consigam progressivamente atingir uma verdadeira e consistente maturidade.

Muitas vezes, a escola atribui à família a responsabilidade pelo fracasso escolar, por exemplo, alegando que as crianças vão mal porque os pais estão separando-se, ou porque a criança não tem a atenção necessária em casa, entre outras razões. Como o senhor analisa essa situação e como a escola deve lidar com tais fatos, que às vezes são verdadeiros, mas não são a única causa do mau desempenho?

A realidade é que não podemos mais fechar os olhos para a possibilidade da separação, uma realidade que se concretiza em um número significativo de casamentos, estimando-se que, na atualidade, cerca de 40% das crianças experimentam o rompimento conjugal dos pais antes de completarem 15 anos. Anualmente, 200 mil crianças vêem seus pais se separarem nas regiões metropolitanas do Brasil. Além disso, aproximadamente 80% dos pais separados voltam a se casar nos três anos seguintes e mais da metade acabará em uma nova separação. Como conseqüência da alta incidência de novos casamentos, um quarto das crianças de hoje viverá, por algum tempo, com uma família não-consangüínea. Não obstante, as separações de casais, principalmente com filhos, mobilizam uma variedade de sentimentos, muitos deles conflitantes, que tornam esse processo doloroso e, freqüentemente, malsucedido. De acordo com a Associação Americana de Psiquiatria, a separação dos pais é um estressor grave e causador de um grande número de sintomas, sobretudo nas crianças. A instabilidade familiar, o divórcio e os novos casamentos interferem no desenvolvimento emocional da criança, cujas conseqüências são observadas a curto, médio e longo prazo. Evidentemente, as reações das crianças à separação dos pais não são exatamente as mesmas em todas as faixas etárias. O ponto de vista atual predominante é de que o sofrimento dos filhos encontra-se mais condicionado à saúde mental dos pais e à forma como processam a separação do que à separação em si. Ao mesmo tempo, ao lado das inevitáveis desvantagens, tem sido possível constatar algumas vantagens obtidas pelos filhos de pais separados, destacando-se o amadurecimento mais precoce em um amplo espectro de situações quando comparados com filhos de casamentos estáveis. Além disso, em muitos casos, eles adquirem uma maior capacidade para tolerar privações e enfrentar adversidades, ambigüidades e experiências novas.

Qual o papel da escola no desenvolvimento dessa geração, fruto de relações familiares diferentes das tradicionais?

A família é uma instituição fortemente influenciada pelo contexto sociocultural, que, no momento, exige mudanças em uma velocidade que supera em muito sua capacidade de adaptação. Essa mesma aceleração é imposta aos indivíduos que são levados a antecipar as passagens da infância para a adolescência e da adolescência para a vida adulta mediante desidealizações precoces das figuras parentais, determinando, em muitos casos, variados problemas de personalidade como resultado de identificações pobres ou inadequadas ao longo do desenvolvimento. A conseqüência dessa situação são pais destituídos de uma identidade que lhe possibilite exercer com segurança as definidas funções paternas e que, para adquirir tal capacidade, teriam de resolver previamente seus conflitos infantis e adolescentes. Esses pais imaturos apresentam a tendência a permanecer em uma relação simétrica com os filhos, mobilizando rivalidades, invejas e ciúmes próprios dos vínculos fraternos. Em vez de os filhos identificarem-se com os pais, são estes que se identificam com os filhos, tornando-se pais intrusivos, quando resolvem que em casa todas as portas devem estar abertas para poderem participar da vida dos filhos, ou pais indiferentes, quando resolvem fazer a própria vida e viram as costas para os filhos. Esses jovens carecem de um modelo familiar adequado de identificação e, muitas vezes, é na escola que encontram um substituto adequado na pessoa do professor. Ao mesmo tempo, as instituições de ensino geralmente apresentam uma organização mais tradicional e, dessa forma, contribuem para a estruturação da personalidade da criança e do adolescente. Sendo assim, não constitui um exagero afirmar que, na atualidade, a escola exerce um papel fundamental e complementar na formação do indivíduo por encontrar-se menos desestruturada do que a família, estabelecendo com mais precisão as diferenças de gerações e os limites que favorecem o desenvolvimento.

Fonte: Ano XI - Nº 41 - Novos tempos, novas realidades - Fevereiro à Abril de 2007


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