domingo, 11 de março de 2012

Coisas que eu queria saber aos 21: Marina Silva

Ambientalista e ex-senadora de 54 anos reflete sobre escolha da profissão e carreira política

Estadão.edu

"Até os 21 anos tinha acontecido tanta coisa na minha vida que me dava a sensação de já ter 40. Ia fazer o vestibular, mas a hepatite não deixou. Tinha chegado a Rio Branco com 16 anos, em setembro de 1975 (Marina cresceu em uma palafita num seringal a 70 km da capital do Acre; perdeu a mãe aos 14 anos e duas irmãs aos 15, vítimas de sarampo e malária). Em 79 já tinha terminado o 2.º grau. Fiz Mobral, supletivo do primário, do 1.º e do 2.º grau. Trabalhei como doméstica e morei num colégio de freiras.

Leonardo Soares/AE-27/9/2011'Nunca um professor me deu colher de chá'Vejo minha trajetória até essa época como uma espécie de tessitura, aquela parte do cesto que vai definir tudo aquilo que o cesto vai ser depois. Ali consegui integrar as marcas da minha memória, baseada no saber narrativo que veio comigo do seringal, às coisas que aprendi no contato com a cidade. Aos 19 anos, tinha descoberto a Teologia da Libertação, o Chico Mendes. Cheguei aos 21 envolvida com o movimento dos seringueiros, com teatro amador. Minha ‘carreira artística’ foi breve, me identifiquei muito mais como figurinista, mas foi lá que tive o primeiro contato com grupos de esquerda. A escolha por fazer História veio daí. Queria fazer Psicologia, que não tinha na época no Acre, porque uma coisa que sempre me encantou é lidar com a alma humana. História era lidar com muitas almas ao mesmo tempo, o coletivo delas adensado nos processos históricos.

Entre na faculdade em 1981, aos 21, casada e grávida. Tive minha primeira filha, Shalom, aos 22, durante uma greve na universidade. Continuava nas Comunidades Eclesiais de Base, no grupo de teatro. Também trabalhei com carentes na Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor.

Marxismo


Chegar à universidade era uma conquista (passei em 18.º lugar) e ao mesmo tempo intimidava. Era um momento ainda da ditadura e foi marcante o contato com o marxismo-leninismo. O Brasil ainda vivia a supernova do marxismo-leninismo. Ele já estava ruindo nos países do socialismo real, mas o brilho da supernova era muito forte na América Latina.

Estava envolvida também com o Partido Revolucionário Comunista, clandestino. Tinha lá o Tarso Genro, o Genoíno e o Marcos Rolim. Tive um envolvimento imediato com o movimento estudantil da época, dentro de uma de suas muitas tendências, a Caminhando.

No primeiro ano, trabalhava com menores à tarde. De manhã ia para a aula e à noite costurava, para ajudar na renda. No segundo ano, já dava aula no colégio das freiras e em mais duas escolas. Aí veio todo o movimento de fundação da CUT, os empates (em que os seringueiros protegiam árvores com os corpos, para impedir sua derrubada) em Xapuri com o Chico Mendes. Me formei em quatro anos. Queria fazer mestrado em Teoria da História, mas teria de ir para São Paulo ou Rio. Prestei para Economia. Fiz um ano, em 85, e parei. Estava muito envolvida com movimentos sociais, o trabalho de professora, os dois filhos e com a entrada no PT, que ocorreu naquele ano.

Quando cheguei a Brasília, em 95, fiz um semestre de Psicologia, mas não tinha como, já era senadora. Uma coisa é a pós, com aulas dois dias por semana. Graduação não dá. Tinha sido eleita pelo povo do Acre, não podia faltar às sessões. Imagine: ‘Ah, a senadora está na escola e perdeu uma votação importante.’ Isso não serviria de justificativa.

Ritmo maluco


Mas fiz pós em Teoria Psicanalítica na UnB, terminei em 2007, num ritmo maluco, estudando em aviões ou de madrugada. Como gosto de trabalhar com educação de jovens e adultos, fiz especialização em Psicopedagogia na Católica de Brasília. Antes de terminar, entrei noutro curso, dado na Argentina por uma psicopedagoga muito respeitada, a Alicia Fernandez. Não consegui terminar em 2010, por causa da campanha eleitoral. Terminei em outubro o último módulo, em Buenos Aires, estou na fase de escrever o trabalho.

Nunca nenhum professor me deu colher de chá. Até porque, para mim, quanto mais amigo do rei, mais alta é a forca. Uma vez fui para a Noruega, para uma reunião sobre clima. Tinha de apresentar um trabalho na volta. Cheguei às 9 da manhã no aeroporto, uma colega deu carona até a UnB. Tinha virado a noite no avião finalizando o trabalho. Apresentei com minhas colegas, sob o rigoroso olhar do competente professor Luiz Celes, e foi muito bom.

Nunca parei de estudar. Já estou em outro curso, Autorias Vocacionais, com o grupo da Argentina. Geralmente trabalhamos com jovens o conceito de orientação vocacional. E esse grupo desenvolveu a ideia de autoria. Você não orienta a vocação. Faz um processo, no qual o jovem vai descobrindo a vocação. Perderei um módulo porque vou, em abril, para um intercâmbio no MIT, dar palestras, conhecer experiências, principalmente em sustentabilidade. Meu sonho é ser psicanalista, mas aí entra um conflito ético. Só vou trabalhar com isso se um dia sair da política.

Unidade de serviço


Acho que, quando se é jovem, é preciso dar atenção aos fios que aos poucos vão ajudando a tecer a base sobre a qual fazemos as escolhas presentes e futuras. Eles estão presentes o tempo todo, na maioria das vezes, onde menos esperamos. Meus fios foram a vida com minha avó, meu pai, meu tio xamã, minha mãe e irmãs. Nasci em meio a uma verdadeira unidade de serviço. Minha avó era parteira, andava horas no mato para fazer parto. Via meu pai ficar a semana cortando seringa, andando 14 km por dia, mas pegar o sábado e domingo para aplicar injeção em quem precisava. Fazia contas no seu caderninho e ensinava às pessoas como não ser enganadas no peso da borracha.

Meu tio era mateiro, sabia fazer trilhas, achar pessoas perdidas. Era um xamã diferente, não exercitava a cura. Morou com os índios, vivia uma opção espiritual xamânica que aprendeu com eles no Alto Madeira. Ensinava sobre chás, ervas e, mais raramente, coisas que, segundo ele, tiravam o azar das pessoas. Era ferreiro, carpinteiro, fazia uma cestaria maravilhosa, tudo de graça. Minha mãe era excelente costureira. Fazia roupa de festa para batismo, casamento e até mortalha.

Todos esses serviços tinham como valor uma única moeda, sem a qual seria impossível suportar vidas tão marcadamente Severinas. Foi dessa unidade que tirei os fios que tecem até hoje minhas escolhas. Daí vêm os princípios e valores que me fazem sentir e viver o que faço, como um serviço."



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