sexta-feira, 21 de março de 2014

Musicista, escritora, historiadora e poetista: De Maria Benedita Deschamps Rodrigues para a eterna Dunga

Da Redação - Marianna Marimon

Suas mãos corriam apressadas pelo piano, mas com leveza e sensibilidade transmitiam o som que tocava dentro do seu coração. Todo o dia pela manhã, abria a janela para deixar o sol entrar e pedia mais um dia, porque sua vontade de viver era tamanha que não cabia só em Cuiabá. Em um baú guardava as recordações da infância, quando sonhava com o mundo que queria conquistar, e com uma imaginação em polvorosa estava sempre a trocar de nome. Chegou a se chamar Simiramis,Amarilis, Adeuzinda, até que então, ao ouvir uma história do tio José Rodrigues sobre um moço feio e todo torto, chamado Dunga, se divertiu tanto que só queria ser chamada assim. De Maria Benedita Deschamps Rodrigues para a eterna Dunga Rodrigues, pianista, escritora, poetisa e historiadora.

Dunga nasceu em 15 de julho de 1908 e faleceu em 6 de janeiro de 2002, no Dia de Reis. Quando criança, era muito espevitada e fugia sempre da casa da mãe para abrigar-se na avó, e se colocava na janela a pedir para qualquer adulto que passasse que a levasse. Nestas fugas, Dunga contou com a ajuda de Dom Aquino Côrrea, que naquela época ia até a Igreja do São Gonçalo a pé e dava a mão para a jovem menina e a auxiliava em sua empreitada. A musicista contava que tinha que dar pequenos trotes para acompanhar o passo largo dos padres.

A terceira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Matogrossense de Letras começou a estudar piano aos cinco anos de idade e ia até os domingos na escola de tanto que gostava de tocar. E sobre a literatura, dizia não se recordar muito bem porque começou a escrever. Não sabia se era pelo cérebro que havia absorvido muitas histórias ou se pelo estômago, é que quando estava no colégio Dunga começou a trocar composições com outros alunos por bolinhos de ‘queimada de rapadura’.

Mas, a relação com as letras também começou cedo, assim como a dedicação pela música. Dunga ia para a livraria de Chiquinho Côrrea e devorava livros de história e história moderna, ainda mais com a ‘graça’ que o pai fez ao dar crédito para que ela pudesse adquirir tais obras. Era a primeira filha de Firmo José Rodrigues e Maria Rita Deschamps Rodrigues.

Era considerada polêmica, afinal, nunca chegou a se casar e era totalmente independente. Quando tomou um copo de cerveja pela primeira vez no Clube Feminino, lembrava que todos os olhares se voltaram para ela, que calmamente virou a sua bebida e pronto, ficou por isso mesmo.

Sua paixão não era apenas tocar, mas também ensinar, tendo sido professora durante muitos anos. A relação com o piano ficou mais estreita ainda por morar no Bairro do Porto e tocar me todos os bailes, e considerava que talvez por isso, não tenha se casado, afinal, enquanto todos namoravam ela estava entretida com o instrumento musical.

“A música está em toda a parte, no canto dos pássaros, na natureza, e até no barulho dos automóveis. Acho que é uma graça que Deus criou para gente”, narrou em um curto documentário sobre a sua vida, que está disposto na íntegra ao fim da matéria.

Entre suas publicações literárias constam: Reminiscências de Cuiabá, Roteiro Musical da Cuiabania, Marphysa: Romance de Costumes, Os Vizinhos, Cuiabá: Roteiro das Lendas, Cuiabá ao Longo de Cem Anos, Lendas de Mato Grosso, entre outros. Sobre estas lendas, causos e acasos diz que colecionou das estórias que escutou de Maria Euzébia.

Uma mulher sobretudo moderna, sem deixar o lado tradicional de uma cidade patriarcal como Cuiabá. Dunga Rodrigues era muito viajada, relembra a escritora e bibliófila Yasmin Nadaf, enquanto as mulheres ainda não saíam da capital do Estado, a musicista já tinha perambulado pelo Rio de Janeiro, que era seu destino certo e também pela Europa. “Ela viajou o mundo todo”, contou Yasmin.

Um dos momentos que retratam esta fusão de tempos e quebra de paradigmas, foi quando Dunga Rodrigues tocou em 1995, na posse de Yasmin como membro da Academia Matogrossense de Letras, ao lado de Abel Santos. Era a primeira vez que na história da Academia, o piano e a viola de cocho se encontravam para brindar com todos os que estiveram ali, um retrato do regional misturado com o clássico. Um momento que define um pouco do que foi Dunga Rodrigues.
Era considerada sempre uma mulher alegre e simples. Sua vontade de viver era maior do que a própria vida e filosofava sobre o tempo que tinha, as memórias saudosas da infância, a vida rica em poesia, literatura e música. “A vida é isso o que vivemos agora”, sentenciava. “É falar, conversar, caminhar em paz consigo mesmo e depois com os outros”, opinou.

“A juventude, eu finjo que conservo, é tão gostoso que não dá vontade de abrir mão. Cada um tem um caminho para a velhice, mas você quer se agarrar na juventude”, observou. Sobre o século XXI, sabia que devia aproveitar todos os momentos, pois, o caminho era inevitável, apesar de assegurar que quanto mais demorasse seria melhor. Ao definir a si mesma, a artista disse: “Dunga Rodrigues é metida a sabe de tudo, mas não sabe nada. Gosta dos seres humanos, dos pássaros, da natureza e da vida”.

A vontade que dá é voltar no tempo para poder ouvi-la tocar o piano, e dedilhar pelas teclas com a força de toda a sua vida, para traduzir um pouco de tudo o que possuía em seu coração. Todos a classificam em unanimidade como simples, com um bom humor inconfundível e parece que escuto a sua risada, pois, sabia que seria hoje, amanhã e para toda a vida, a Dunga Rodrigues, pianista e desbravadora de histórias e palavras, que chocou a sociedade cuiabana e se perpetuou eternamente como uma das mulheres responsáveis pela vida cultural efervescente, com seus saraus e recitais, atividades pelo Grêmio Julia Lopes e contribuições para a conservação e construção da história de Mato Grosso.

Todo o dia pela manhã, abria a janela e pedia um novo dia, porque viver para ela, nunca foi demais.

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