domingo, 16 de dezembro de 2012

A mosca de Aristóteles


José Pacheco
06-08-2012

A escola herdeira do Iluminismo, a escola da afirmação da Modernidade, já não existe - ela vegeta, agoniza. E arrasta na sua agonia milhões de jovens condenados à ignorância e à exclusão.

Entre o aparecimento da lousa de ardósia e o da lousa digital distam séculos. Nesse longo hiato, a escola pouco, ou mesmo nada, mudou. Apenas terá mudado o tipo de material utilizado na fabricação da lousa.

Oitenta por cento dos jovens internautas comunicam com outros, pedem ajuda e prestam ajuda, em chats, emails, em múltiplas plataformas online. Num tempo em que importa mais que seja o aluno a esforçar-se, para descobrir realidades, do que uma "realidade" ser comunicada por um professor, quantos desses jovens comunicarão com os professores através da Internet?

Num tempo em que a prática da escrita da letra cursiva vai sendo abandonada, muitos docentes obrigam os seus alunos a um gasto significativo do tempo escolar no exercitar da letra cursiva, para que - segundo afirmam - os seus alunos tenham "uma caligrafia perfeita". Talvez se inspirem em Steve Jobs, que, quando passou pela universidade, apenas quis aprender... caligrafia.

Jardins de infância precocemente escolarizam a infância, instituindo rotinas, nas quais todas as crianças devem começar a dormir ao mesmo tempo, ainda que não tenham sono (e, frequentemente, "embaladas por crews, sertanejos e bandas sonoras de novelas...).

À revelia das descobertas da cronobiologia, as escolas mantêm rituais de horário fixo, como a hora de entrar e de sair, ou os cinquenta minutos de uma aula, que quase ninguém sabe explicar por que são cinquenta... E, entre dois toques de sirene, se anuncia que todos poderão ir ao recreio, ao mesmo tempo. Venho suspeitando de que existe alguma analogia entre o banho de sol dos presidiários e o recreio dos alunos... Ao mesmo tempo, todos deverão estar olhando a nuca do colega da frente. Ao mesmo tempo, todos devem merendar, todos devem fazer xixi no mesmo período de tempo.

Já alguém se prerguntou se terá sido sempre assim? Desde o século XVIII, não existe sequer uma teoria que sustente o modelo de escola, que, no nosso tempo, ainda é hegemónico.

A escola herdeira do Iluminismo, a escola da afirmação da Modernidade, já não existe - ela vegeta, agoniza. E arrasta na sua agonia milhões de jovens condenados à ignorância e à exclusão. A par da família, a escola não se adaptou aos novos tempos. Hoje, é matriz oculta do insucesso escolar e social.

Permiti que cite dois mestres. João Guimarães Rosa, que disse que mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. E Claude Lévi-Strauss, que acertou quando escreveu que sábio não é aquele que fornece as verdadeiras respostas, é aquele que faz as verdadeiras perguntas. Aqueles que, interrogando-se, se libertam de preconceitos e soluções convencionais conseguem compreender que a escola dita tradicional deverá ser demolida, e que, com o material da demolição, se poderá construirá uma nova educação. Sem esquecer que quando se alcança um determinado objetivo de projeto, o mundo já mudou de novo, e que todos os projetos humanos estão em permanente fase instituinte.

O sistema mais antigo de classificação de seres vivos que se conhece deve-se ao filósofo grego Aristóteles, que classificou e descreveu todos os organismos vivos então conhecidos.

Conta-se que Aristóteles deixou registado ter a mosca doméstica oito patas. Ao longo de muitos séculos, os copistas reproduziram a aristotélica asserção até que alguém se atreveu a desafiar a autoridade científica de Aristóteles e verificou que a mosca tem seis patas.

Quando chegará o tempo em que os protagonistas do absurdo modelo de escola, que ainda temos, se decidirão a contar as patas de uma mosca?

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JOSÉ PACHECO Mestre em Ciências da Educação pela Universidade do Porto, foi professor da Escola da Ponte. Foi também docente na Escola Superior de Educação do IPP e membro do Conselho Nacional de Educação.



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