sábado, 15 de dezembro de 2012

“As escolas não querem autonomia com controlo remoto”


Sara R. Oliveira
2012-11-28

Filinto Lima, vice-presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, afirma que não é possível exigir mais sacrifícios aos professores num sistema que não se concentra em objetivos comuns.

O também vice-presidente do Conselho Municipal de Educação de Vila Nova de Gaia e coordenador dos diretores da Região Norte no Conselho das Escolas não entende como se corta no orçamento previsto para a Educação e, ao mesmo tempo, se quer alargar a escolaridade obrigatória para 12 anos. Na sua opinião, as mudanças têm de ser bem explicadas.

"Hoje, o que se passa nas escolas é inquietante: aumentou a responsabilidade (do diretor) e diminuiu a autonomia", comenta. O responsável sustenta que os diretores das escolas e dos mega-agrupamentos não podem trabalhar sem rede e que, portanto, o Ministério da Educação não se pode esquecer do apoio jurídico, financeiro e económico.

EDUCARE.PT: De que forma a autonomia que o Ministério da Educação pretende dar às escolas será visível no terreno?

Filinto Lima: A autonomia nas escolas públicas portuguesas teve o seu boom há quase quatro anos, quando 22 escolas celebraram com o Ministério da Educação (ME) igual número de contratos de autonomia. Neles, estava definido o conteúdo dos contratos de autonomia das escolas, coartando a liberdade negocial de que os contraentes devem dispor em casos similares.

Ora, um contrato é um acordo entre duas partes, em que uma delas se submete a determinadas obrigações, usufruindo em troca de certos direitos. Segundo o Código Civil, os outorgantes têm a liberdade de estabelecer as condições do contrato, desde que estejam conformes com a lei. As escolas não tiveram muito poder negocial e, talvez por isso, só cerca de 2% é que celebraram o dito acordo.

O novo diploma foi publicado em setembro. Estes contratos foram elaborados com base numa matriz igual para todas as escolas que pouco podem acrescentar, tendo em conta a sua realidade. Temendo perder a centralização que atrofia qualquer atividade ou iniciativa, o ME publicou o referido normativo legal salvaguardando-se de qualquer surpresa. Isto é uma das principais conclusões de três seminários que o Conselho das Escolas levou a efeito no ano passado, onde diversos diretores cujas escolas celebraram contratos de autonomia deram o seu testemunho e especialistas na matéria confirmaram a prática. As escolas não querem autonomia com controlo remoto.
E: Pela perceção que tem, neste momento, os diretores das escolas estão satisfeitos com as mudanças previstas, nomeadamente ao nível dessa autonomia?

FL: Talvez nem fosse necessário celebrar contratos de autonomia se o discurso político fosse traduzido numa legislação cada vez menos numerosa, menos específica, menos perturbadora e menos inquietante da vida das escolas já que, na prática, centraliza-se cada vez mais atribuindo-se mais responsabilidades aos diretores, em troca da retirada da praticamente inexistente autonomia.

Julgo que falta coragem e iniciativa políticas para dar passos firmes no sentido de inverter algo que, a manter-se, conduzirá as escolas para o excesso de regulamentação originando uma atrofia incapacitante de mobilizar energias que emergem nas escolas, muitas vezes desprezadas. E o estado da nação não admite desperdícios! Uma verdadeira e operacionalizável autonomia pedagógico-organizacional será vista com bons olhos pelas escolas.

E: A tutela está a exigir muito aos diretores? O que se está a passar nas escolas?

FL: Hoje, o que se passa nas escolas é inquietante: aumentou a responsabilidade (do diretor) e diminuiu a autonomia. Significa que a administração e gestão das escolas é uma tarefa hercúlea a exigir super diretores em que a formação, a experiência e o apoio serão fatores fundamentais para o exercício de uma função muito mais burocrática. Se o nosso país tem um naipe excelente de diretores de escola devido aos primeiros fatores apontados, certo é que o terceiro - o apoio - está muito aquém desta enorme mudança, e será tanto mais importante quanto se sabe que as direções regionais de educação estão a delegar competências, extinguindo-se a 31 de dezembro. Alguns falam em presente envenenado, outros, como nós, apontam o dedo à falta de meios para desenvolver com segurança e em conformidade a função de diretor de escola, se não for acautelada a retaguarda destes professores em comissão de serviço, os primeiros responsáveis dos agrupamentos.

As escolas e os agrupamentos movimentam anualmente muitos milhões de euros, sobretudo em relação aos vencimentos dos seus profissionais. A juntar à vertente financeira temos os atos administrativos e de grande responsabilidade que os diretores praticam diariamente, os contratos que celebram e as inúmeras e diversas decisões que tomam...

Pergunto: se as empresas públicas e privadas, que movimentam até valores inferiores aos das escolas, têm todo o tipo de apoio, não fará sentido facultá-lo aos diretores de escola? O ME deverá dotar os agrupamentos de apoio jurídico (o mais importante), financeiro, económico, etc., não deixando os diretores das escolas e dos mega-agrupamentos sem rede.

E: A constituição dos mega-agrupamentos, tão criticada no início, foi ou não uma boa medida?

FL: Este ano o dossiê "agregações" ficará concluído. As direções regionais de educação já começaram as reuniões concelhias para fechar o processo, por forma a que os futuros mega-agrupamentos iniciem um trabalho atempado. É um exemplo de uma medida reativa pois sabemos o que esteve na sua génese. Contudo, se há situações em que as comunidades até quiseram este desfecho (concretamente nos pequenos centros em que o número de alunos é diminuto e em algumas cidades onde certas escolas estavam a perder elevado número de alunos), na maioria das situações esta solução foi indesejada.

As comunidades educativas e as autarquias, um pouco por todo o país, opuseram-se a uma união forçada que, no final, imperou. Estudos elaborados desaconselham esta medida de política educativa, sobretudo pelo número de alunos da nova unidade organizacional, em alguns dos casos a ultrapassar os 2500, atingindo mesmo 3000 alunos e mais.

E: Neste momento, quais são as principais preocupações da ANDAEP?

FL: As nossas preocupações estão relacionadas com alguns dos objetivos.

A formação contínua e especializada é um dos objetivos da nossa Associação, que irá celebrar protocolos com entidades formadoras em áreas-chave para o bom desempenho dos diretores. De igual modo, e pelo facto de aumentar dia a dia a responsabilidade dos diretores, celebramos com uma seguradora um protocolo que transfere alguns riscos decorrentes da atividade daqueles.

E: São problemas de difícil resolução?

FL: Estes problemas são parte dos nossos objetivos, como referi, e tudo faremos para apoiar os diretores. Ao mesmo tempo, temos reunido com o ME, por vezes com o senhor ministro, que se mostra disponível para ouvir as nossas opiniões, embora na maior parte das vezes não as transporte para os diplomas legais, o que muito gostaríamos que acontecesse, pois nós estamos no centro das escolas, temos um conhecimento excelente das mesmas. Somos parceiros do ME.

E: Os chumbos dos alunos continuam a ser preocupantes. O sistema deveria abordar as retenções de uma outra forma?

FL: É notório que um número considerável de alunos chega ao 5.º ano de escolaridade sem saber ler nem escrever ou a fazê-lo de modo muito deficitário e com imensas dificuldades a Matemática. Aqui, na minha opinião, reside o grosso dos problemas das retenções, que se sente muito mais a partir do 2.º ciclo. Julgo que a atual equipa ministerial, aproveitando a oportunidade que a crise lhe dá, deverá reformar um nível de ensino estruturante, condição de sucesso dos nossos alunos nos patamares seguintes, tanto mais quanto se sabe que dois dos objetivos do Governo são "continuar a alargar a rede pré-escolar" e "apostar na articulação entre o ensino pré-escolar e o ensino básico". Uma aposta neste nível de ensino contribuiria para baixar drasticamente o insucesso escolar e, em grande parte, o abandono.

Também é necessário que não se espere tudo da escola. A articulação da escola com outras instituições e técnicos (psicólogo e assistente social...) será muito importante no combate não só ao insucesso como também ao abandono escolares. De igual modo, aquilo que se ensina e como se ensina deverá merecer a atenção do ME e, seguramente, ajudará no combate àqueles problemas.

É evidente que tudo isto é importante mas não podemos desprezar o interesse dos alunos e dos pais pela atividade escolar. Por muitas estratégias que tenham os professores e muito boa vontade que exista no ME, tudo ficará comprometido se aqueles não cumprirem a sua função.

E: Satisfeito com a exigência dos últimos exames nacionais?

FL: Não sei se os exames foram mais exigentes. De maior exigência foram os critérios de correção, alguns deles, na opinião dos professores, desfasados e muito apertados. Mas é importante a articulação daquilo que se ensina durante o ano letivo e o que se apresenta nos exames, sob pena de confundirmos exigência com falta de sincronia.

E: A perda de autoridade dos professores é, de facto, um problema que afeta o dia a dia da classe docente?

FL: O Estatuto do Aluno e Ética Escolar foi um avanço, mas a próxima revisão terá necessariamente de eliminar as burocracias e formalismos que o enxameiam. Num país em que algumas sentenças são proferidas de imediato e oralmente no final dos julgamentos, o regime disciplinar deve ser expedito, célere e simplificado.

Contudo, ainda falha no capítulo da disciplina. Querendo dar todas as hipóteses de defesa ao aluno prevaricador - sistema excessivamente garantístico - envolve a escola numa teia complexa, mais parecendo um tribunal, atendendo aos procedimentos legais a que deve obedecer a instrução de um procedimento disciplinar. Uma carga de trabalhos que seria evitada se se partisse do princípio da boa fé do professor.

E: As multas previstas para responsabilizar os pais dos alunos faltosos poderá ser um passo importante para mudar mentalidades?

FL: Esse é mais um encargo atirado ao diretor que nem tem formação jurídica e agora vai exercer funções judiciais. Por outro lado, as multas poderão funcionar como intimidação e essa será a grande virtude desta inovação, mas o futuro o dirá. Ao mesmo tempo, punir os pais num momento em que muitos nem dinheiro têm para pagar as despesas normais de um filho estudante... A lei tem de ser, e será, aplicada pelos diretores mas, neste particular, o timing escolhido para a aplicação do Estatuto do Aluno e Ética Escolar não foi o melhor.

E: A contenção financeira na área educativa será um retrocesso sem retorno possível?

FL: Parece que estamos a assistir a um desinvestimento na Educação, área em que todos dizem ser essencial um investimento. A não ser assim, a médio prazo iremos verificar com pesar as consequências desastrosas... Sou apologista de uma racionalização dos meios, mas neste momento não se pode cortar mais na Educação. Por outro lado, não se entende como se pensa em alargar a escolaridade para 12 anos e, ao mesmo tempo, continuar a cortar no orçamento deste setor.

E: Afirmou, no início do ano letivo, que a pobreza envergonhada terminou, que as necessidades já não se escondem. Há carências preocupantes?

FL: Nas escolas não há fome, note-se. O problema é que um número significativo de alunos chega às escolas sem tomar o pequeno-almoço e até sem dinheiro para comer. As escolas estão atentas e, embora alguns destes casos (em número reduzido) se devam a desatenção dos encarregados de educação, a maioria tem a ver com carências económicas. A ação social escolar é um serviço que funciona muito bem e deve ser apoiado cada vez mais pelas entidades estatais, atendendo ao momento difícil que estamos a atravessar. O Estado social, não contando só com as escolas, deve mostrar modos de apoiar os mais necessitados. Há alunos cuja única refeição quente e completa do dia é o almoço da escola.

E: Qual a medida que o atual ministro tomou até hoje que mais lhe custou a entender?

FL: Todas as medidas que não são proativas custam muito a perceber. Muitas das alterações que os inúmeros diplomas legais trazem às escolas não são alvo de avaliação. Julgo que seria necessário explicar os motivos de mudança, mas isto acontece invariavelmente com todos os partidos dos sucessivos governos sem nunca prever as consequências. Percebe-se pelo menos dois motivos para explicar tamanha avalancha legislativa: por um lado, medidas reativas por força de imposições financeiras da troika, embora pense, em alguns casos, que são excessivamente pesadas não dando origem ao efeito previsto; por outro, este Ministério também quer deixar a sua marca, o que é legítimo, mas nesta área os políticos deveriam ser cautelosos e atuarem com um pensamento mais centrado no interesse comum, o que nem sempre sucede.

E: Na sua opinião, o que é fundamental, neste momento, ter em atenção para que a escola pública, que muitos dizem estar em risco, se mantenha de pé?

FL: Devemos refletir em comum e obrigar os partidos com assento na Assembleia da República a assinar um pacto na educação, pois percebe-se que é uma arena política demasiado perigosa para fazer experimentações sem avaliar o que está para trás, nem antever os respetivos resultados. O país só tem a ganhar se forem traçadas e aceite por todos linhas condutoras de atuação na área da educação, de modo a pacificar e a deixar trabalhar os professores, os menos culpados das alterações que proliferam na política educativa. Não é possível exigir aos professores mais sacrifícios em prol de um ensino que não estabiliza nem se concentra em objetivos essenciais e comuns.



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