Ensino da letra cursiva para crianças em alfabetização divide a opinião
de educadores
HÉLIO SCHWARTSMAN
articulista da Folha
articulista da Folha
Deve-se ou não exigir que as crianças escrevam com
letra cursiva? A questão, que divide educadores e semeia insegurança entre
pais, está --ao lado da pergunta sobre o ensino da tabuada-- entre as mais ouvidas
pela consultora em educação e pesquisadora em neurociência Elvira Souza Lima. A
resposta, porém, não é trivial.
Quatro ou cinco décadas atrás, a dúvida seria
inconcebível. Escrever à mão era só em cursiva e, para garantir que a letra
fosse legível, os alunos eram obrigados desde cedo a passar horas e horas
debruçados sobre os cadernos de caligrafia.
Veio, contudo, a pedagogia moderna, em grande parte inspirada no construtivismo de Piaget, e as coisas começaram a mudar. O que importava era que o aluno descobrisse por si próprio os caminhos para a alfabetização e a escrita proficiente. Primeiro os professores deixaram de cobrar aquele desenho perfeito. Alguns até toleravam que o aluno levantasse o lápis no meio do traçado. Depois os cadernos de caligrafia foram caindo em desuso até quase desaparecer.
O segundo golpe contra a cursiva veio na forma de
tecnologia. A disseminação dos computadores contribuiu para que a letra de
imprensa, já preponderante, avançasse ainda mais. Manuscrever foi-se tornando
um ato cada vez mais raro.
No que parece ser o mais perto de um consenso a que
é possível chegar, hoje a maior parte das escolas do Brasil inicia o processo
de alfabetização usando apenas a letra de forma, também chamada de bastão.
Tal preferência, como explica Magda Soares,
professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG, tem razões de
desenvolvimento cognitivo, linguístico: "No momento em que a criança está
descobrindo as letras e suas correspondências com fonemas, é importante que cada
letra mantenha sua individualidade, o que não acontece com a escrita
"emendada' que é a cursiva; daí o uso exclusivo da letra de imprensa,
cujos traços são mais fáceis para a criança grafar, na fase em que ainda está
desenvolvendo suas habilidades motoras".
O que os críticos da cursiva se perguntam é: se
essa tipologia é cada vez menos usada e exige um boa dose de esforço para ser
assimilada, por que perder tempo com ela? Por que não ensinar as crianças
apenas a reconhecê-la e deixar que escrevam como preferirem? Essa é a posição
do linguista Carlos Alberto Faraco, da Universidade Federal do Paraná, para
quem a cursiva se mantém "por pura tradição". "E você sabe que a
escola é cheia de mil regras sem qualquer sentido", acrescenta.
A pedagoga Juliana Storino, que coordena um
bem-sucedido programa de alfabetização em Lagoa Santa, na região metropolitana
de Belo Horizonte, é ainda mais radical: "Acho que ela [a cursiva] é uma
das responsáveis pelo analfabetismo em nosso país. As crianças além de
decodificar o código da língua escrita (relação fonema/ grafema) têm também de
desenvolver habilidades motoras específicas para "bordar' as letras. O
tempo perdido tanto pelo aluno, como pelo professor com essa prática, aliada ao
cansaço muscular, desmotivam o aluno a aprender a ler e muitas vezes emperram o
processo".
Esse diagnóstico, entretanto, está longe de
unânime. O educador João Batista Oliveira, especialista em alfabetização, diz
que a prática da caligrafia é importante para tornar a escrita mais fluente, o
que é essencial para o aluno escrever "em tempo real" e, assim,
acompanhar a escola. E por que letra cursiva? "Jabuti não sobe em árvore:
é a forma que a humanidade encontrou, ao longo do tempo, de aperfeiçoar essa
arte", diz.
Magda Soares acrescenta que a demanda pela cursiva
frequentemente parte das próprias crianças, que se mostram ansiosas para
começar a escrever com esse tipo de letra. "Penso que isso se deve ao fato
de que veem os adultos escrevendo com letra cursiva, nos usos quotidianos, e
não com letras de imprensa".
Para Elvira Souza Lima, que prefere não tomar
partido na controvérsia, "os processos de desenvolvimento na infância
criam a possibilidade da escrita cursiva". A pesquisadora explica que
crianças desenhando formas geométricas, curvas e ângulos são um sério candidato
a universal humano. Recrutar essa predisposição inata para ensinar a cursiva
não constitui, na maioria dos casos, um problema. Trata-se antes de uma opção
pedagógica e cultural.
Souza Lima, entretanto, lança dois alertas. O tempo
dedicado a tarefas complementares como a cópia de textos e exercícios de
caligrafia não deve exceder 15% da carga horária. No Brasil, frequentemente,
elas ocupam bem mais do que isso.
Ainda mais importante, não se deve antecipar o
processo de ensino da escrita. Se se exigir da criança que comece a escrever
antes de ela ter a maturidade cognitiva e motora necessárias (que costumam
surgir em torno dos sete anos) o resultado tende a ser frustração, o que pode
comprometer o sucesso escolar no futuro.
O que a ciência tem a dizer sobre isso? Embora o
processo de alfabetização venha recebendo grande atenção da neurociência,
estudos sobre a escrita são bem mais raros, de modo que não há evidências
suficientes seja para decretar a morte da cursiva, seja para clamar por sua sobrevida.
Há neurocientistas, como o canadense Norman Doidge,
que sustentam que a escrita cursiva, por exigir maior esforço de integração
entre áreas simbólicas e motoras do cérebro, é mais eficiente do que a letra de
forma para ajudar a criança a adquirir fluência.
Outra corrente de pesquisadores, entretanto, afirma
que, se a cursiva desaparecer, as habilidades cognitivas específicas serão
substituídas por novas, sem maiores traumas.
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