Descaso com patrimônio é agressão a Cuiabá, diz escritor
6.12.2017
Moisés Martins lamentou desabamento da
Casa de Bem-Bem e descuido com imóveis do Centro
Alair
Ribeiro/MidiaNews
Moisés Martins é considerado um dos
ícones do movimento chamado de cuiabania
THAIZA ASSUNÇÃO
DA REDAÇÃO
DA REDAÇÃO
Foi com lágrimas nos olhos que o escritor e compositor Moisés Martins
falou ao MidiaNews sobre o descaso com o patrimônio histórico e
arquitetônico de Cuiabá.
Moisés é membro da Academia Mato-Grossense de Letras e considerado
um dos ícones da cuiabania.
Ele classificou como lamentável o desabamento de parte da estrutura da
Casa de Bem Bem, na Rua Barão de Melgaço, no Centro de Cuiabá, no início do
mês.
“Cuiabá não tem um projeto de preservação desses bens culturais. Não tem
compromisso com a nossa cultura Uma construção como essa da Casa de
Bem-Bem, da professora Constança Palma, carrega uma história. E tudo veio
abaixo. Mesmo que reformem, nunca mais será a mesma”, disse.
“A cidade tem alma, a cidade fala, a cidade grita, a cidade reclama. Nós
estamos vendo Cuiabá reclamando, mas lamentavelmente estamos convivendo com
essa depredação que está acabando com nossa história. Cada casarão que cai é
uma história que se vai”, afirmou.
Na entrevista, Martins ainda falou sobre o linguajar cuiabano, a
literatura mato-grossense e as músicas regionais.
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews - Nesta semana, os cuiabanos lamentaram o desabamento da
tradicional Casa de Bem-Bem, no Centro Histórico. A que o senhor
atribui esse acontecimento triste para a Capital?
Moisés Martins – É um acontecimento lamentável. E não é só
a Casa de Bem-Bem. Essa história [destruição do patrimônio histórico] vem desde
a Catedral Metropolitana do Bom Jesus de Cuiabá, que foi demolida em 1968. Era
uma preciosidade arquitetônica.
O patrimônio histórico de Cuiabá está sendo agredido e destruído
há muito tempo. É uma agressão. Por exemplo: a Rua 13 de Julho se
descaracterizou totalmente. As nossas praças, o Campo D’ Ourique, onde eu fui
criado e até fiz uma homenagem com a música "Pixé"... Tudo isso se
perdeu. O Campo D’Ourique era ponto de encontro da juventude da época e foi
demolido para montar aquele elefante branco que hoje estão falando que é
a Câmara Municipal, ou a "Casa dos Horrores". E antes foi
Assembleia Legislativa.
Ali na esquina da Travessa João Dias com a Joaquim Murtinho,
demoliram a casa de Eurico Gaspar Dutra [ex-presidente] para dar lugar a um
comércio. Logo mais abaixo havia uma casa com frontispício lindo que era do
Renato Pimenta, um famoso advogado de Cuiabá. Vai lá para você ver. Está tudo
caído. Na Barão de Melgaço, na esquina com a Secretaria de Cultura, a casa de
Rubens de Mendonça, considerado um dos grandes escritores no Brasil, está no
chão.
Aí eu pergunto: vão construir coisa parecida? A Casa de Bem-Bem mesmo
nunca mais. Até porque os construtores têm outra visão, não têm a visão da
cuiabanidade. Nosso Cine Tropical, que coisa linda que era! As cortinas eram
todas de veludo. Demoliram e virou um banco. E tudo isso sem fazer um
plebiscito, sem consultar ninguém. Vão derrubando e vão fazendo.
"Fico emocionado e triste porque eu vejo que a minha cidade está
sendo destruída"
Eu fico triste quando dou uma entrevista sobre isso. Fico emocionado e
triste porque eu vejo que a minha cidade está sendo destruída (chora). Você
imagina que estupidez: construíram um ponto de ônibus na Praça Bispo Dom José.
Bispo Dom José foi o homem que saiu com uma bandeira para pedir aos cuiabanos
que não matassem os portugueses. E ali colocaram um ponto de parada de ônibus.
Cuiabá, para mim, hoje é uma cidade completamente
descaracterizada, mal administrada, não tem compromisso com a nossa cultura
coisa nenhuma.
A cidade tem alma, a cidade fala, a cidade grita, a cidade
reclama. Nós estamos vendo Cuiabá reclamando, mas lamentavelmente estamos
convivendo com essa depredação que está acabando com nossa história. Cada
casarão que cai é uma história que se vai.
MidiaNews - Então há um descaso completo com o patrimônio
arquitetônico cuiabano?
Moisés Martins – Lamentavelmente não há um projeto de
preservação desses bens culturais. Uma construção como essa, da Casa de
Bem-Bem, da professora Constança Palma, carrega uma história e tudo veio
abaixo, não sei se de propósito.
Até sobre essas casas eu fiz um poema interessante na linguagem
cuiabana: “Minha casa geminada qual a alma do meu povo. Uma porta, uma
janela de trancas e tramelas, testada azul, barrado vermeio amarela, feita de
frente pro sol poente, calçada alta pra tchuva escorrê. Uma cancela que sempre
geme quando tchega dgente. Tchão batido, no canto um pote com a beira quebrada,
uma foinha na parede pendurada.Com a fortografia de São Jorge Guerreiro prá nos
protegê. De quebrantu, arca caída e mau oiádo minha casa não é só casa. Minha
casa é um lar de braços abertos pra quem passar, de braços abertos pra quem
tchegar!".
Nesse poema eu já dou uma pincelada boa de como Cuiabá é na
construção. E na urbanização, de modo geral, nós temos - nós e alguns gênios,
né - a mania de querer copiar coisas de fora. Nós não podemos comparar Cuiabá -
onde as ruas foram traçadas na base do moar e do facão e a foice - com Goiânia,
Brasília, Curitiba, que foram feitas na prancheta.
Quando eu estava à frente da Secretaria Municipal de Cultura na gestão
de Wilson Santos, nós chegamos a discutir - porque ele queria aproveitar que
Cuiabá tinha 600 mil habitantes - para abrir ruas mais dilatadas. Fui contra.
Eu disse que Cuiabá é eminentemente brasileira se tratando de urbanização,
assim como Ouro Preto, São João Del Rey, Diamantina [todas em Minas Gerais].
Nessas cidades há um trato dessas casas, umas juntas das outras e também das
ruas. Há ruas em que caminhão não pode passar. Há um cuidado muito grande. As
casas são todas pintadinhas, parecem até de boneca.
Quando fui
vereador, apresentei um projeto para que o quadrante do Centro Histórico fosse
imexível. Mas lamentavelmente o fator econômico fala mais alto
Aqui não existe esse cuidado. Inclusive, quando eu fui vereador,
apresentei um projeto para que o quadrante do Centro Histórico fosse imexível.
Mas lamentavelmente o fator econômico fala mais alto. E hoje em dia nós vemos a
depredação do bem cultural que são as nossas construções.
O Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional]
está aí, mas parece que é um "mendigozinho" sem muitas condições de
fazer alguma coisa. Ou quando faz, não faz bem feito.
MidiaNews - O senhor é um dos ícones da chamada cuiabania, que,
entre outras coisas, se caracteriza pela defesa das tradições e do linguajar
local. Como o senhor vê a cuiabania neste momento?
Moisés Martins – A juventude e os colégios não estão sendo preparados para assimilar a
cultura que já existe.
Há pouco tempo fui dar uma palestra na escola Gustavo Kullmann e
perguntei para a diretora se ela o conhecia. Ela não sabia que Gustavo
Kullmann, juntamente com Leovegildo de Mello, foram os homens que implantaram o
ensino fundamental em Cuiabá a pedido do presidente - na época não havia o
cargo de governador - Pedro Celestino.
Então
Cuiabá é vítima até de muitos cuiabanos que não respeitam a nossa cultura, que
não querem nada com nossa cultura.
MidiaNews - Há algo mais que aflige o senhor em relação à falta
de preservação?
Moisés Marins - Outro fator que tem que ser muito batido:
as mudanças dos nomes dos bairros e ruas tradicionais de Cuiabá. Há pouco tempo
um camarada de fora veio me gozar - e eu até me indispus com ele -
dizendo que Rua dos Porcos [atual Antonio João] não era nome para se dar a uma
via. É nome sim! E na Rua dos Porcos nasceu um dos grandes craques de Mato
Grosso, o Totó Traçaia, que jogou no Corinthians, Botafogo. E por que Rua dos
Porcos? Porque naquela rua havia várias chácaras onde se criava porcos. E ela
desaguava na Prainha.
MidiaNews - O senhor acha que deveria haver algum tipo de
benefício para que proprietários sejam incentivados a preservar seus imóveis,
seja através de isenção de impostos ou mesmo uma linha de crédito subsidiada?
Moisés Martins – Eu acho que é possível, mas não vai acontecer por conta do interesse
mercantilista. O negócio é mercantilista. "Eu quero saber se está
ganhando. Se não estiver, pode derrubar". Por exemplo: no calçadão da loja
Riachuelo [Rua Ricardo Franco], qual é a casa que não foi mexida ali? Nada foi
preservado. Eu fico triste com essas situações. Gostaria de dar uma entrevista
totalmente diferente, mas não posso ser mentiroso.
MidiaNews – Cuiabá criou a Secretaria dos 300 anos. O senhor
acredita na eficácia dessa secretaria no que diz respeito à preservação da
história?
Alair
Ribeiro/MidiaNews
"Você vai nas escolas e os alunos não sabem cantar o hino nacional,
muito menos de Mato Grosso, e de Cuiabá nem se fala"
Moisés Martins – Eu não acredito porque é uma secretaria que não tem uma dotação
orçamentária definida. Sem dinheiro, você não faz. Além disso, é uma secretaria
que tem pouco comprometimento das pessoas que ali estão em relação a Cuiabá.
Alguns até criticam a cidade.
Tudo que existe que poderia ser aproveitado em nível de turismo,
cultura, para Cuiabá não está sendo aproveitado. Pelo contrário, estão
depredando.
Analise bem: o que representou essa destruição do estádio José
Fragelli, o nosso Verdão, que poderia ser aproveitado como uma escola, como
Leonel Brizola fez no Rio de Janeiro? O antigo Verdão poderia ser aproveitado
até para jogos de pequeno alcance. Mas um estádio [Arena Pantanal] para 43 mil
pessoas - onde se chegou a 10 mil nos maiores jogos foi muito - é um elefante
branco.
Essa questão dos 300 anos vai ser difícil, porque nada você faz
nada na vida sem comprometimento. Se você não tem interesse, não tem como
fazer. Botar um palco lá com cantores é evento, não é uma coisa consolidada que
nós precisamos.
Para os 300 anos vai haver muitos panfletos. Disso não tenho dúvida até
porque as gráficas precisam ganhar e quem está contratando as gráficas precisa
tirar uma porcentagem da contratação do trabalho.
MidiaNews - A percepção que se tem é que os jovens cuiabanos não fazem
questão de manter as tradições locais – muitos até debocham do linguajar. O
linguajar cuiabano e as tradições da cuiabania correm o risco de serem
extintos?
Moisés Martins – Você vai nas escolas e os alunos não sabem cantar o hino nacional,
muito menos de Mato Grosso, e de Cuiabá nem se fala. Se nós não temos esse
alicerce cultural, nós vamos construi-lo em cima do que?
A juventude nossa não está nem aí pra nada. Só quer saber de
balada, de ficar.
Há pouco tempo, eu estava em um evento e ouvi duas pessoas de fora
criticando que cuiabano fala "tcha", "tchu". Aí eu fui até
eles e os agradeci por me darem um tema para eu fazer um rasqueado: "O
tcha tcha tcha do tchu tchu tchu do meu falar provoca riso, cochicho e gozação
que me dá vontade de te mandar tomar chá de picão, mas o lugar que eu queria
que você tomasse é um tremendo palavrão".
Existe? Não
existe. Não se ensina literatura nas escolas, principalmente a literatura de
Mato Grosso
MidiaNews - Que avaliação o senhor faz do trabalho do Governo do Estado
e da Prefeitura em relação à Cultura?
Moisés Martins – A cultura no Brasil é considerada rodapé, não é parede. Aqui, quando
fui secretário de Cultura do Município, a dotação era 0,2% do Orçamento. Eu sei
que a Secretaria de Cultura do Estado tem dificuldades, a Secretaria Municipal
tem dificuldades. E por mais boa vontade do gestor público, ele não tem como
fazer porque tudo demanda dinheiro.
Eu me lembro que no dia 8 de Abril, que é comemorado o aniversário da
cidade, para fazer uma comemoração eu sofri demais. Só de instalação para
microfone foi R$ 200 mil. Não tem condições para isso. E, mesmo se tivesse,
seria desvio de função porque nós temos aí um Pronto-Socorro com problemas, a
Educação com problemas.
MidiaNews - O senhor é autor de diveros livros. Não acha que a
literatura mato-grossense tem pouco espaço nas escolas?
Moisés Martins – Existe [ensino de literatrua local nas escolas]? Não existe. Não se
ensina literatura nas escolas, principalmente a literatura de Mato Grosso. Pode
até existir os esforçados que estão trabalhando nas escolas, mas de modo geral
a grade curricular não conta com essa matéria.
MidiaNews- Como avalia o Prêmio de Literatura de Mato
Grosso? É uma boa iniciativa? Aliás, o senhor está acompanhando
os novos escritores de Cuiabá. Há alguém que tenha potencial?
Moisés Martins – Olha, eu desconheço, por isso não posso fazer uma análise profunda. Mas
qualquer coisa que acontece em Cuiabá é sempre com aquela visão de oba-oba. Não
tem aquela perenidade que precisa ter, até porque os órgãos públicos não dão
apoio. Para você publicar um livro, o mais simples custa mais de R$ 25 mil. Se
você chegar para o gestor público com o projeto e com o orçamento de R$ 25 mil,
ele pode até aceitar, como aceitaram o meu lá na Assembleia, mas até hoje nada.
Midia News - O senhor é compositor de um clássico cuiabano, a música
"Pixé". Entende que as músicas regionais têm espaço na
programação local?
Moisés Martins – Veja só: uma vez eu fui numa rádio e levei alguns CDs meus. Aí o
produtor disse que topava tocar se eu lhe desse R$ 1 mil. Eu disse que lhe dava
R$ 2 mil para ele nunca mais fazer uma proposta dessa para ninguém. É difícil.
Não tocam e não vão tocar, apesar de ter uma lei que determina que se toque 20%
da música local.
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