O 12 de agosto deveria ser sempre lembrado e celebrado por todos os
brasileiros. Há 215 anos apareceram em locais públicos estratégicos da Bahia
(São Salvador da Bahia de Todos os Santos) os primeiros manuscritos – depois
chamados de “pasquins sediciosos” – assinados por um Partido da Liberdade que
conclamava o Povo Bahinense para a “memorável revolução” que iniciaria um novo
“tempo em que todos seremos irmãos; o tempo em que todos seremos
iguais”.
A historiografia brasileira tem chamado esse movimento de diferentes nomes, dentre eles: “sedição dos mulatos”, “sublevação intentada”, “movimento revolucionário baiano”; “inconfidência baiana”; “conspiração baiana”; “revolta dos alfaiates”; “primeira revolução social brasileira”; “revolução dos búzios”; “conjuração baiana de 1798”.
Base social
Apesar das interpretações diversas que foram e continuam sendo feitas sobre a natureza e os objetivos do movimento baiano de 1798 e sobre suas contradições internas, estudos mais recentes que consultaram, além dos Autos das Devassas, outros arquivos e documentos no Brasil e em Portugal, revelam que estiveram envolvidos, pelo menos em suas origens, brasileiros e portugueses dos mais diferentes estratos sociais.
Embora as penas capitais (enforcamento) tenham recaído sobre dois soldados e dois alfaiates, e outras punições (degredo, açoites e prisão) tenham atingido a artesãos, escravos, pardos e negros forros, o Tribunal da Relação da Bahia chamou também para depor senhores de engenho, comerciantes, intelectuais, médicos, padres, professores, alguns deles diretamente ligados a ocupantes de altos cargos públicos do poder colonial na Bahia.
Parece haver concordância, portanto, que o movimento baiano de 1798 teve a mais ampla base social entre todas as tentativas de enfrentamento da Coroa Portuguesa no período colonial, inclusive em relação a mais celebrada delas, a Inconfidência Mineira de 1789 que transformou o alferes Tiradentes no grande herói da independência.
“Abomináveis princípios franceses”
O que nos interessa destacar, todavia, é que o movimento baiano de 1798 estava em sintonia com as mais avançadas ideias de seu tempo e, sobretudo, com os “abomináveis princípios franceses”, como diria o então secretário de Estado da Marinha e do Ultramar do Reino de Portugal, Dom Martinho de Melo e Castro.
Embora a devassa tenha sido seletiva (já naquele tempo...) e os “poderosos” envolvidos deixados de lado, mesmo assim, a linguagem dos “pasquins sediciosos” e o material sequestrado nas casas de envolvidos (livros, discursos, poemas) revelam com alguma clareza não só as ideias dos revolucionários como a origem delas.
Um dos mais respeitados pesquisadores do movimento de 1798, afirma que as principais ideias revolucionárias eram a independência; a república; a abolição da escravatura; a igualdade de direitos, sem distinção de cor; a liberdade de comércio e a separação da igreja do estado.
Para os revolucionários “bahinenses”, liberdade e igualdade estavam necessariamente juntas. Perguntado por que desejava a república, um dos depoentes na devassa de 1798 respondeu:
“He para respirar mais livres: pois vivemos sujeitos e por sermos pardos nam somos admitidos a acesso algum, e sendo República há igualdade para todos.”
Por outro lado, um dos “pasquins sediciosos” – o “Avizo de nº 3” – contem uma linda definição de liberdade que diz:
“A liberdade consiste no estado felis, no estado livre do abatimento: a liberdade he a doçura da vida, o descanço do homem com igual paralello de huns para outros, finalmente a liberdade he o repouzo e bem aventurança do mundo.”
Mais de dois séculos depois, não é simples uma avaliação correta do enorme significado da defesa desses princípios numa sociedade colonial escravocrata, ainda no correr da Revolução Francesa. O que não resta dúvida, todavia, é que o movimento de 1798 e seus “pasquins sediciosos” estavam impregnados do caráter revolucionário francês. O sequestro seletivo de material impresso revolucionário não revela, na sua inteireza, essa presença, embora tenham sido encontrados textos de Rousseau, Voltaire, Volney, Boissy d’Anglas e outros documentos e livros.
Liberdade versus liberdade de expressão
Sem entender a construção histórica da ideia de liberdade não há como entendermos a disputa contemporânea em torno dos conceitos de liberdade e de liberdade de expressão no Brasil. Neste sentido, o movimento de 1798 constitui talvez o ponto de partida de uma trajetória de lutas permeada de fracassos e avanços que, por certo, continua.
Antes mesmo que existisse uma consciência de nação, no seio de uma sociedade colonial escravocrata, nascia o embrião da liberdade e da igualdade na Bahia do final do século 18.
Ao longo dos últimos 205 anos foi se consolidando uma ideia de liberdade excludente, afastada da igualdade, que ainda insiste em deixar de fora a maioria da população brasileira.
Os quatro mártires baianos – João de Deus do Nascimento, Manuel Faustino Santos Lira, Lucas Dantas de Amorim e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga – estão hoje inscritos no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Reverenciá-los e estudar o movimento revolucionário baiano de 1798, do qual fizeram parte, deve ser a contribuição contemporânea daqueles que continuam comprometidos com a liberdade republicana.
Nota: Esse artigo toma como referência trabalhos de Emiliano José (2009), Florisvaldo Mattos (1973), Kátia Mattoso (1969 e 2004), Luis Henrique Dias Tavares (1955) e Patrícia Valim (2007 e 2012).
Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros
A historiografia brasileira tem chamado esse movimento de diferentes nomes, dentre eles: “sedição dos mulatos”, “sublevação intentada”, “movimento revolucionário baiano”; “inconfidência baiana”; “conspiração baiana”; “revolta dos alfaiates”; “primeira revolução social brasileira”; “revolução dos búzios”; “conjuração baiana de 1798”.
Base social
Apesar das interpretações diversas que foram e continuam sendo feitas sobre a natureza e os objetivos do movimento baiano de 1798 e sobre suas contradições internas, estudos mais recentes que consultaram, além dos Autos das Devassas, outros arquivos e documentos no Brasil e em Portugal, revelam que estiveram envolvidos, pelo menos em suas origens, brasileiros e portugueses dos mais diferentes estratos sociais.
Embora as penas capitais (enforcamento) tenham recaído sobre dois soldados e dois alfaiates, e outras punições (degredo, açoites e prisão) tenham atingido a artesãos, escravos, pardos e negros forros, o Tribunal da Relação da Bahia chamou também para depor senhores de engenho, comerciantes, intelectuais, médicos, padres, professores, alguns deles diretamente ligados a ocupantes de altos cargos públicos do poder colonial na Bahia.
Parece haver concordância, portanto, que o movimento baiano de 1798 teve a mais ampla base social entre todas as tentativas de enfrentamento da Coroa Portuguesa no período colonial, inclusive em relação a mais celebrada delas, a Inconfidência Mineira de 1789 que transformou o alferes Tiradentes no grande herói da independência.
“Abomináveis princípios franceses”
O que nos interessa destacar, todavia, é que o movimento baiano de 1798 estava em sintonia com as mais avançadas ideias de seu tempo e, sobretudo, com os “abomináveis princípios franceses”, como diria o então secretário de Estado da Marinha e do Ultramar do Reino de Portugal, Dom Martinho de Melo e Castro.
Embora a devassa tenha sido seletiva (já naquele tempo...) e os “poderosos” envolvidos deixados de lado, mesmo assim, a linguagem dos “pasquins sediciosos” e o material sequestrado nas casas de envolvidos (livros, discursos, poemas) revelam com alguma clareza não só as ideias dos revolucionários como a origem delas.
Um dos mais respeitados pesquisadores do movimento de 1798, afirma que as principais ideias revolucionárias eram a independência; a república; a abolição da escravatura; a igualdade de direitos, sem distinção de cor; a liberdade de comércio e a separação da igreja do estado.
Para os revolucionários “bahinenses”, liberdade e igualdade estavam necessariamente juntas. Perguntado por que desejava a república, um dos depoentes na devassa de 1798 respondeu:
“He para respirar mais livres: pois vivemos sujeitos e por sermos pardos nam somos admitidos a acesso algum, e sendo República há igualdade para todos.”
Por outro lado, um dos “pasquins sediciosos” – o “Avizo de nº 3” – contem uma linda definição de liberdade que diz:
“A liberdade consiste no estado felis, no estado livre do abatimento: a liberdade he a doçura da vida, o descanço do homem com igual paralello de huns para outros, finalmente a liberdade he o repouzo e bem aventurança do mundo.”
Mais de dois séculos depois, não é simples uma avaliação correta do enorme significado da defesa desses princípios numa sociedade colonial escravocrata, ainda no correr da Revolução Francesa. O que não resta dúvida, todavia, é que o movimento de 1798 e seus “pasquins sediciosos” estavam impregnados do caráter revolucionário francês. O sequestro seletivo de material impresso revolucionário não revela, na sua inteireza, essa presença, embora tenham sido encontrados textos de Rousseau, Voltaire, Volney, Boissy d’Anglas e outros documentos e livros.
Liberdade versus liberdade de expressão
Sem entender a construção histórica da ideia de liberdade não há como entendermos a disputa contemporânea em torno dos conceitos de liberdade e de liberdade de expressão no Brasil. Neste sentido, o movimento de 1798 constitui talvez o ponto de partida de uma trajetória de lutas permeada de fracassos e avanços que, por certo, continua.
Antes mesmo que existisse uma consciência de nação, no seio de uma sociedade colonial escravocrata, nascia o embrião da liberdade e da igualdade na Bahia do final do século 18.
Ao longo dos últimos 205 anos foi se consolidando uma ideia de liberdade excludente, afastada da igualdade, que ainda insiste em deixar de fora a maioria da população brasileira.
Os quatro mártires baianos – João de Deus do Nascimento, Manuel Faustino Santos Lira, Lucas Dantas de Amorim e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga – estão hoje inscritos no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Reverenciá-los e estudar o movimento revolucionário baiano de 1798, do qual fizeram parte, deve ser a contribuição contemporânea daqueles que continuam comprometidos com a liberdade republicana.
Nota: Esse artigo toma como referência trabalhos de Emiliano José (2009), Florisvaldo Mattos (1973), Kátia Mattoso (1969 e 2004), Luis Henrique Dias Tavares (1955) e Patrícia Valim (2007 e 2012).
Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros
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