O tema acessibilidade parece ser ainda controverso, ou seja, há muitas perspectivas de julgamento sobre uma obra ser ou não acessível. Começo com um exemplo simples, recente, público. Ao assistir a um vídeo que tratava sobre educação, no You Tube, reclamei ao responsável pela postagem, dizendo-lhe que o vídeo não era acessível e a resposta dada iniciou com uma pergunta “acessível para quem?”.
Tenho que concordar: aquele vídeo era acessível para pessoas alfabetizadas em Libras, para essas era, somente para elas. Mesmo as pessoas sem deficiência visual que não soubessem Libras, não poderiam aproveitar nada, pois não havia legenda em língua portuguesa com a transcrição das falas. O pseudo público-alvo era os surdos. Por que pseudogrupo? Porque mesmo dentro do grupo dos surdos houve uma parcela de pessoas que não teve acesso ao seu conteúdo pelo simples fato de não serem usuários de Libras.
Apesar disso, o responsável pela postagem julgava que o vídeo era acessível aos surdos. Claro, dentro de seu limitado conceito de quem são os surdos, dos quais se julgava ser porta-voz, surdo é aquele que domina Libras. Se adotarmos esse princípio, em outro contexto poderíamos dizer que pessoas analfabetas não poderiam ser computadas como pessoas porque não dominam a língua portuguesa. Nenhum língua é propriedade de ninguém, de nenhum povo. As pessoas são usuárias da língua, não proprietárias.
Evidentemente que as pessoas com deficiência visual nem foram lembradas como possíveis interessadas naquele vídeo, já que não existe absolutamente nenhum áudio. E o que falar de pessoas com deficiência intelectual, dislexia e outras pessoas como eu que, mesmo sem deficiências, não dominam a Libras?
E assim, cada dia mais se evidencia a exclusão e, como se pode perceber, às vezes a exclusão ocorre dentro do próprio grupo de excluídos. Está na hora de os surdos reverem sua posição sobre as diferentes formas de comunicação humana (acredito que os surdos ainda fazem parte da humanidade) e, em particular, percebam que ninguém é dono de uma língua, ou seja, tão certo como o inglês não pertence aos britânicos ou o castelhano ao povo de Castilha, a língua de sinais não pertence ao povo surdo. A língua não é propriedade de nenhuma academia de letras, nenhuma língua é.
Está na hora de ficar claro que nem todos os surdos nasceram assim, que muitos que nasceram com surdez, por diferentes caminhos, voltaram a ouvir; que muitos emudeceram, mas outros se comunicam oralmente sem maiores dificuldades; que entre os brasileiros há analfabetos da língua portuguesa; da mesma forma, entre os surdos, há muitos que desconhecem a Libras e muitos que a dominam sem jamais terem sido surdos. Está na hora de os surdos se conhecerem melhor, de incluir-se a si mesmos em seu grupo.
Imaginemos o seu Zé, de 75 anos, que teve um acidente há um ano e perdeu totalmente a audição. Será que um dia vai ser reconhecido como surdo? E dona Joana, que tem mais idade, tem tendinite e osteoporose e teve o mesmo problema? Vamos querer que aprenda e use Libras? Ou será considerada uma falsa surda? Será considerada nas estatísticas ou descartada como irrelevante?
Porém, se essa limitação no entendimento de o que seja acessibilidade num vídeo silencioso e sem legendas, no qual as pessoas se comunicam em Libras ficasse apenas no âmbito de um grupo de pessoas que luta por causa própria (a defesa da Libras), estaria entendido e até justificado. Entretanto, quando essa ideia limitada passa para grupos que levam o nome da acessibilidade em seu título, o assunto parece carecer de melhor referencial teórico.Muitos pensam que:
É impossível conceber uma única versão de conteúdo da web que seja igualmente compreensível por completo por todas categorias de deficiências, ou até mesmo dentro do espectro das deficiências cognitivas. O conceito de um formato verdadeiramente universal soa como uma idéia maravilhosa, mas é inatingível. Ainda assim, é possível a criação de conteúdo web que se aproxime do ideal do design universal, mesmo que não muito bem sucedida no sentido absoluto. (DEFICIÊNCIA, 2011).
O autor do texto acima usa palavras que evocam o “ideal” e a “plenitude”. Evidentemente, situações perfeitas não são para os humanos, são para os deuses. Desta forma, afirmar que nenhum conteúdo será acessível idealmente para todos é, no mínimo, desnecessário. Logicamente, se a pessoa não tiver um computador disponível não poderá acessar esse conteúdo, se não tiver energia elétrica não poderá acessar esse conteúdo, se não tiver um sistema operacional, um browser e todas as condições que lhe permitam acessar o conteúdo ela não conseguirá acessá-lo. Por acaso isso é diferente para algum de nós, é diferente para uma pessoa sem deficiência? Todos dependeremos de um design que nos permita acessibilidade e, aqui, design nada tem a ver com cores e flores numa página web. Ora, se um conteúdo pode ser acessado apenas com uma senha, então ele é inacessível para aqueles que não a tenham, trata-se, pois, de uma barreira.
A Lei 10.098/2000 garante às pessoas com deficiência o direito à acessibilidade, definida no item I do artigo 2º como:
Condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida. (BRASIL, 2000)
Igualmente, o mesmo artigo no item II deixa claro que barreiras são “qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento e a circulação com segurança das pessoas” e podem ser classificadas em diversos grupos, entre os quais a “barreira nas comunicações” que se refere a “qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa” (BRASIL, 2000).
Não estamos no mundo do ideal, estamos no mundo do real. Não se buscam atitudes de perfeição, mas atitudes coerentes com a cultura de inclusão, com os princípios de inclusão. Esses princípios foram definidos por diversos estudiosos, a partir de pesquisas tanto com o público consumidor como com desenvolvedores, pesquisadores e gestores.
Na Convenção da ONU de 2006, que tratou sobre as pessoas com deficiência, ficou claro que é necessário:
Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços, equipamentos e instalações com desenho universal, conforme definidos no Artigo 2 da presente Convenção, que exijam o mínimo possível de adaptação e cujo custo seja o menor possível, destinados a atender às necessidades específicas de pessoas com deficiência, a promover sua disponibilidade e seu uso e a promover o desenho universal quando da elaboração de normas e diretrizes. (BRASIL, 2007).
O Brasil, como membro e signatário, compromete-se em:
Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento, bem como a disponibilidade e o emprego de novas tecnologias, inclusive as tecnologias da informação e comunicação, ajudas técnicas para locomoção, dispositivos e tecnologias assistivas, adequados a pessoas com deficiência, dando prioridade a tecnologias de custo acessível. (BRASIL, 2007).
Assim, seria de esperar que entidades que trabalham e divulgam temas de acessibilidade e inclusão estivessem preocupadas em ampliar sua visão ou, pelo menos, assumir sua limitação sem apresentar desculpas sem fundamento.
As emissoras de televisão durante anos vêm alegando o alto custo da inclusão do recurso da audiodescrição em sua grade de programação. A mesma alegação foi dada por um canal de televisão disponível na web ao lançar uma série de programas sobre acessibilidade e inclusão, limitando-se a inserir uma pequena janela de Libras nas reportagens. Sobre a ausência de legenda com a transcrição das falas, a alegação foi o custo desse trabalho.
Entretanto, o mesmo grupo, que num bloco de vídeos divulgados não trazia a audiodescrição, posteriormente divulgou os mesmos vídeos, mas agora incluindo o recurso de acessibilidade para cegos e outros que possam se beneficiar dele. O que preocupa é que em lugar de avançar, a atitude foi de retrocesso, já que anteriormente esse mesmo canal divulgava vídeos com legendas.
Prática semelhante foi adotada por outro canal de televisão que disponibilizou seu material na web com uma série de reportagens feitas na ReaTech 2011. Também eles duplicaram o número de vídeos: uma série sem audiodescrição e uma outra série com os mesmos vídeos com audiodescrição. Essa prática é de trabalho dobrado, ocupa espaços em servidores, separa os usuários e, assim, as discussões e comentários dos vídeos. Tudo isso está longe de enquadrar-se no desenho universal e na política de inclusão e acessibilidade legalmente regulamentada.
A legislação, o desenho universal, a praticidade, a economia e até mesmo o sempre questionável bom senso indicam que todos devem compartilhar do mesmo espaço e dos mesmos produtos, cada um com suas características, a seu modo. Orientam que se devem eliminar as barreiras existentes em um produto e permitir o seu acesso a todos. Em nenhum lugar se orienta que se deva criar outro produto para dar acesso a outras pessoas. Se os criadores dos vídeos dos canais citados fossem arquitetos, por acaso construiriam um edifício com escadas e outro edifício com rampas? Um edifício para andantes e outro para cadeirantes?
É curioso, porém, que nos vídeos desses dois canais de televisão a janela de Libras esteja presente nas duas versões. Por que, então, não terem feito apenas um vídeo com a Libras, com a legenda (que nesses dois canais não existe e parece que não pretendem incluir) e com a audiodescrição?
E se apesar de todos os esforços ainda não é possível que tudo esteja acessível a todos, comecemos a eliminar as barreiras das atitudes e, pois isso, ainda podemos.
As barreiras atitudinais, portanto, partem de uma predisposição negativa, de um julgamento depreciativo em relação às pessoas com deficiência, sendo sua manifestação a grande responsável pela falta de acesso e à conseqüente exclusão e marginalização social vivenciada por todos os grupos vulneráveis, mais particularmente, por aquelas pessoas vulneráveis em função da deficiência. (LIMA et. al, 2010, 3)
O certo é que não basta incluir janela de Libras nos vídeos na web ou na televisão, é preciso considerar que há surdos que não usam Libras. É preciso incluir legendas com transcrição das falas. Acima de tudo, é preciso incluir todos os surdos dentro da cultura surda. Da mesma forma que homens, mulheres, crianças, amarelos, negros, brancos, ricos e pobres e outras tantas diferenças, juntas, formam a sociedade. Não basta incluir a audiodescrição no cinema, na televisão, no teatro, é preciso incluir a ideia de que isso não é favor, não é despesa, não é investimento, isso é respeito às diferenças.
Referências
BRASIL. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Tradução Oficial/Brasil, Brasília: Presidência da República Secretaria Especial dos Direitos Humanos Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, Setembro/2007. 48p.
BRASIL. Ministério das Comunicações. Lei 10.098 – de 19 de dezembro de 2000. Disponível em:
DEFICIÊNCIA Visual versus Cognitiva. Disponível em
LIMA, Francisco José de et al. Áudio-descrição: orientações para uma prática sem barreiras atitudinais. Disponível em:
Sobre os autores
Elton Vergara Nunes
Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Pelotas (1997) , graduação em Superior de Teologia pelo Seminário Teológico da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (1988) e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (2002) . Atualmente é professor titular da Universidade Federal de Pelotas e Pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Línguas Estrangeiras Modernas. Atuando principalmente nos seguintes temas: conhecimento, audiodescrição, tecnologia assistiva.
Gertrudes Aparecida Dandolini
Possui graduação em Matemática Licenciatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992), mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997) e doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000). Atualmente é professora Associada da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência na área de Engenharia de Produção, com ênfase em Inteligência Aplicada, Matemática, Ensino de Matemática, Educação a Distância. Atualmente tem atuado nas áreas de Estatística, Métodos de Pesquisa Quantitativa e Mídias do Conhecimento.
João Artur de Souza
Possui graduação em Matemática Licenciatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1989), mestrado em Matemática e Computação Científica pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993), doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (1999) e pós-doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000) . Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal de Santa Catarina e Membro de corpo editorial da Revista do CCEI. Tem experiência na área de Matemática, com ênfase em Matemática Aplicada. Atuando principalmente nos seguintes temas: Reconhecimento de padrões, Redução de Dimensionalidade, Indexação de Padrões, Redes Neurais Artificiais, Inteligência Aplicada.
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