terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Discípulos e Mestres

Albano Estrela

Professor catedrático jubilado da Universidade de Lisboa (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação), nasceu no Porto em 1933. Autor de variadíssimos trabalhos na área das Ciências da Educação, tem-se dedicado, nos últimos anos, à literatura de ficção, nomeadamente ao conto e à crónica ("O Mapa dos Sabores", "Crónicas de Um Portuense Arrependido", "As Memórias que Salazar Não Escreveu", "E Se o Mal Existisse Mesmo?", entre outros).


'...no Oriente, na Índia, não é a relação funcional entre duas pessoas que determina a mestria - esta, na verdade, só pode ser conferida pelo discípulo. O mestre, só o é, se for reconhecido como tal pelo seu discípulo. A relação mestre-discípulo insere-se na aceitação da supremacia do outro, enquanto fonte de saber e farol de espiritualidade.'

Dizia-me uma amiga - que tem dedicado parte da vida à prática e à reflexão yoga -, que, em Portugal, não há uma autêntica vivência yoga. E quanto mais o yoga se desenvolve, menos ele existe, entre nós. Para ela, a razão era clara: não temos uma mentalidade oriental. Como exemplo, referiu-me a relação mestre-discípulo. Quando alguém completa a sua formação, passa a formar outros, a quem considera 'discípulos'. E, por via disso, passa a ser o seu 'mestre'. Ora, no Oriente, na Índia, não é a relação funcional entre duas pessoas que determina a mestria - esta, na verdade, só pode ser conferida pelo discípulo. O mestre, só o é, se for reconhecido como tal pelo seu discípulo. A relação mestre-discípulo insere-se na aceitação da supremacia do outro, enquanto fonte de saber e farol de espiritualidade. É uma relação mágica. Não assim em Portugal, com 'mestres' reduzidos a instrutores e 'discípulos' a instruendos, enredados, todos eles, nas malhas que as práticas físicas do yoga tecem à volta daqueles que prescindem da vivência dos princípios que lhes subjazem - e são a sua razão última de ser (e a sua essência).

Eu, a pensar no que tenho visto e vivido, quis saber mais, se o mestre também o era mesmo quando o não queria ser. Ou seja: o que acontecia se ele não aceitasse que o discípulo o considerasse como tal? A resposta foi perentória: esse modo de pôr a questão nada tem a ver com o verdadeiro yoga. A 'mestria' é uma dádiva e o seu reconhecimento, a sua outorgação, está no coração do discípulo; não depende, pois, da vontade de quem a recebe, mas de quem a dá. Se assim é, e por que estamos perante um outro paradigma, que cessem as minhas interrogações e que eu me reduza à minha condição de pequeno bárbaro, na orla da Europa Ocidental acocorado....

Mas no caminho que nos conduzia à Lisboa das nossas misérias, enquanto ela falava e eu seguia os movimentos dos faróis dos automóveis que connosco se cruzavam, fui-me lembrando dos dois grandes professores de Filosofia que tive, na Universidade de Coimbra, nos idos anos de cinquenta - Joaquim de Carvalho e Miranda Barbosa. E das discussões homéricas que as suas 'mestrias' em nós suscitavam, dividindo-nos em partidários de um ou do outro.

Joaquim de Carvalho, muito mais velho, era uma figura patriarcal da Cultura e da Universidade Portuguesas. O homem do saber filosófico, vertido nas suas dimensões históricas - de escolas, de correntes, de pensadores - enfim, do que se ia sucedendo ao longo dos tempos, no mundo da Filosofia. E, talvez por via disso, Joaquim de Carvalho, que amava os filósofos, era Descartes, quando dele falava, era Spinosa, quando expunha o seu pensamento. Para nós, Joaquim de Carvalho era a História Viva da Filosofia. E um expoente da Cultura do Portugal Contemporâneo - impulsionador e diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra, estudioso das modernidades lusas e brasileiras, republicano e democrata e, acima de tudo, cultor de um modo de estar na Universidade, raro, na época. As suas aulas continuavam-se na conversa do corredor, a extravasar para a rua. Descia-se com ele até aos Arcos, onde ia apanhar o elétrico. Às vezes, continuava-se no elétrico, até à porta de sua casa, ou, se ele convidasse a entrar, no interior da sua sala-escritório, onde trabalhava, emoldurado de livros. Nunca ninguém pensou em contradizê-lo: ouvia-se e absorvia-se o que ele dizia. Um sábio e um santo - o saber feito generosidade e grandeza.

Miranda Barbosa: baixinho, gordinho, bem vestido e penteadinho. Bem cheiroso. O melhor automóvel da Faculdade de Letras. Homem da sociedade, distante, sempre uma pressa no andar. Um dos caudilhos da Causa Monárquica. Tudo menos uma figura emblemática da Academia. Conversas com ele, nem pensar, só no gabinete, com marcação, por vezes, conseguida apenas à terceira tentativa. O seu saber era o discurso - feito de rigor e luminosidade - com que enchia as nossas aulas. No entanto, nunca ninguém de bom senso pensou tomar como boas as suas ideias sobre Lógica, nunca ninguém se debruçou sobre o poço da sua sabedoria, a perscrutar a profundidade das águas... Mas todos sucumbiram ao brilho da sua inteligência, todos se empolgaram perante o fulgor da sua palavra, faísca a acender o fogo que vivia no fundo de cada um de nós, filósofos em aprendizagem. E também muitos, por vezes, os mesmos, se irritaram com as suas posições intelectuais, eivadas de ideologia que não era a do nosso tempo. Se poucos se lhe opuseram, pela desigualdade das armas de que dispunham, todos, sem exceção, desejaram possuir a sua capacidade de síntese, fruir da maquinaria poderosa que era o seu método de análise do conhecimento filosófico. Enfim, todos se prepararam para virem a utilizar as suas armas, talvez ao serviço de outras abordagens, de outros ideais... Por via de isso, não fez discípulos, fez de nós mestres (ou aspirantes a mestres) - ensinou-nos a pensar, 'mostrando-nos' como ele pensava.

Quando Joaquim de Carvalho morreu, eu fui ao enterro. Triste, entre muitos outros - os discípulos. Quando Miranda Barbosa morreu, não fui ao enterro. Fui para o café, só, a reler um opúsculo seu. E a espantar-me como inteligência tão prodigiosa, quanto a sua, pôde ter estado ao serviço de causas tão estranhas. E a refletir: se fosse eu... - eu, mestre-pensante entre mestres, graças a ele.

Enfim, histórias, histórias pequenas de discípulos e mestres, na orla da ocidental praia lusitana acocorados...

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