quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Bourdieu - Contestador da meritocracia escolar

Por Norberto Dallabrida*

Dito de modo abrupto, este texto defende a tese de que a reflexão sociológica de Pierre Bourdieu tem como questão de fundo a análise da produção das desigualdades sociais. Os diferentes objetos investigados por esse enervante sociólogo francês como a visitação aos museus, o campo científico, sistemas de ensino, uso sociais da fotografia, obras de arte e a televisão procuram compreender a distribuição desigual dos bens econômicos e culturais na sociedade capitalista na segunda metade do século XX.

Procurando superar o determinismo economicista, Bourdieu elaborou conceitos originais e operacionais para explicar a gestação das gritantes diferenças sociais. Em primeiro lugar, deve-se destacar o conceito de capital cultural, que apresenta-se em três estados. O capital cultural em estado incorporado refere-se a disposições duráveis no organismo que são plasmadas a partir de um trabalho de inculcação, realizado sobretudo na atmosfera familiar.

O sociólogo francês afirma que “o capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da pessoa, um habitus” (BOURDIEU, 1998, p.74-5).

Enquanto o capital cultural no estado objetivado é constituído por bens culturais na forma material como livros, obras de arte e acervos virtuais, no estado institucionalizado ele é formado por certificados e diplomas escolares, sendo também chamado de capital escolar.

Com o intuito de flagrar as desigualdades sociais de forma ainda mais refinada e oculta, Bourdieu percebeu as dimensões social e simbólica do capital, que são colocadas em movimento por meio de estratégias específicas.

Para Bonnewitz (2002, p.93) o conceito bourdieusiano de capital social refere-se ao “conjunto de relações ‘socialmente úteis’ que podem ser mobilizadas pelos indivíduos ou pelos grupos no quadro de suas trajetórias profissional ou social”.

Para Bourdieu, essa “rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento” é tecida em diferentes instituições sociais como a família, instituição de ex-alunos de escolas de elite, clube seleto.

Segundo Nogueira e Nogueira (2004, p.51), “o capital simbólico diz respeito ao prestígio ou à boa reputação que um indivíduo possui num campo específico ou na sociedade em geral. Esse conceito se refere, em outras palavras, ao modo como um indivíduo é percebido pelos outros”.
De outra parte, as análises bourdieusianas pensam o espaço social formado por campos, “microcosmos sociais” que têm autonomia relativa, constituídos por leis, jogos e capitais específicos.

Para Nogueira e Nogueira (2004, p.36), “o conceito de campo é utilizado por Bourdieu, precisamente, para se referir a certos espaços de posições sociais no qual determinado tipo de bem é produzido, consumido e classificado”.

Os campos são marcados, necessariamente, por disputas pelo controle e legitimação dos bens produzidos e classificados, de forma que no seu interior há relações de força entre “posições dominantes” e “posições inferiores” ou pretendentes.

Deve-se mencionar que o sociólogo francês realizou investigações sociológicas sobre diversos campos e subcampos.

Desconstruindo a tradição

Em relação ao campo escolar, além de vários artigos científicos, Bourdieu escreveu quatro obras, que desconstruíram a tradição meritocrática, de corte republicano, do sistema de ensino na França. Em 1964, em parceria com Jean-Claude Passeron, ele escreveu Les héritiers: les étudiants et la culture, que aborda as Faculdades de Letras da França, na década de 1960, procurando mostrar como a origem social e geográfica dos alunos condiciona os seus percursos escolares.

Esse trabalho constata que, enquanto os estudantes de classes abastadas têm uma atitude diletante em relação à cultura escolar, os alunos oriundos das camadas médias/populares pautam-se pelo esforço e ascestismo na realização de seus estudos superiores.

Os primeiros herdam uma “atmosfera cultural de família”, adquirida por meio da frequência sistemática aos museus, teatros e cinemas, da leitura de livros e revistas e da convivência cultivada no círculo familiar e social.

Essa familiaridade com os bens da cultura legitimada confere aos filhos das elites “privilégio cultural”, que os distingue dos outros alunos das faculdades de Letras e faz a diferença no seu desempenho universitário.

Cinco anos depois, instigados pelo movimento de 68, esses filósofos-sociólogos publicaram A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, obra enervante sobre os mecanismos reprodutivos do sistema de ensino francês, que teve impacto singular na sociologia da educação na França e em vários países.

O objetivo desse trabalho é “determinar os fatores sociais e escolares do êxito da comunicação pedagógica pela análise das variações do rendimento da comunicação em função das características sociais e escolares dos receptores”. Trata-se de uma compreensão diferenciada da recepção da mensagem pedagógica que varia de acordo com o volume de capital cultural escolarmente rentável dos alunos de diferentes frações de classe social. Diante das desigualdades sociais retraduzidas pelo sistema escolar, Bourdieu-Passeron sugerem um ensino contínuo e metódico que eleve o nível de recepção daqueles alunos com desvantagens culturais, que não deve confundir-se com o “rebaixamento puro e simples do nível de emissão”.

Na década de 1980, Bourdieu colocou o foco sobre o ensino superior francês, procurando mostrar que ele também concorria para a reprodução social. Em 1984, Bourdieu escreveu Homo academicus, uma reflexão sociológica sobre o mundo universitário francês e seus impasses na década de 1960. Quatro anos depois, ele publicou, com a colaboração de Monique de Saint Martin, La noblesse d`état: grandes écoles et esprit de corps, uma obra volumosa e densa sobre a elitização das chamadas grandes écoles francesas – instituições de educação superior, independentes das universidades, que têm por objetivo formar as elites dirigentes e intelectuais.

Nestes seus livros sobre o ensino superior francês da década de 1980, Bourdieu explora a “dualidade institucional” entre o sistema universitário e o mundo das grandes écoles, uma singularidade francesa que tem raízes históricas.

É importante anotar que, na França, as universidades são instituições de massa, abertas aos jovens que são aprovados no bac – exame obrigatório no final do ensino médio – e as grandes écoles são instituições de ensino superior de elite, cujo ingresso é feito por concurso público muito concorrido.

À partir de vasta e diferenciada base empírica e de conceitos inovadores e consistentes, em La noblesse d`état, Bourdieu verifica que o elitismo tem evidentes origens sociais. Ou seja, os privilégios educativos conferidos pelas grandes écoles aos estudantes das classes privilegiadas são construídos anteriormente, no meio familiar e nos percursos escolares pré-universitários desses alunos, realizados em colégios de elite tanto no sistema público (e eles existem na França, diferentemente do Brasil!) como das redes privadas.

Para realizar a análise “sócio-lógica” das elites das grandes écoles, Bourdieu movimenta, de forma refinada, os conceitos de capital cultural, capital social e efeitos simbólicos do capital que ele criou para compreender as desigualdades sociais e escolares.

Obra crítica aos mecanismos de elitização das grandes écoles francesas, La noblesse d`état foi publicada em 1989, ano do bicentenário da Revolução Francesa, feito uma espécie de manifesto jacobino contemporâneo.

Três anos antes da sua morte, ocorrida em 2002, numa entrevista concedida para Maria Andréa Loyola, Bourdieu afirmou: “continuo a pensar que o sistema de ensino contribui para conservar. Insisto sobre, e contribui, o que é muito importante aqui. Não digo, reproduz; digo contribui para conservar”.

Esse instigante sociólogo francês procurou compreender, de modo exaustivo, “a rigidez do mundo”, indicando que, apesar de esforços e de avanços políticos, a democratização social é um desafio complexo.

*Norberto Dalabrida é professor da UDESC e co-autor de “A Escola da República (Editora Mercado de Letras, 2011)

Referências
BONNEWITZ, Patrice. Pierre Bourdieu: vie – oeuvres – concepts. Paris: Ellipses, 2002.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Les héritiers : les étudiants et la culture. Paris : Éditions de Minuit, 1985. (Le sens commun).
BOURDIEU, Pierre ; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Paris : Minuit, 1984. (Le sens commun).
BOURDIEU, Pierre. La noblesse d`état: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1989. (Le sens commun).
BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio. Escritos de Educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. p.71-9.
NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, M. Martins. Bourdieu & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

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