Beatriz Rizek
Como tudo Começou
A Declaração Mundial sobre Educação para Todos (UNESCO, 1990), aprovada pela Conferência Mundial sobre Educação para Todos de Jomtien, na Tailândia, em 1990, e a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), firmada na Espanha, em 1994, marcam, no âmbito internacional, momentos históricos em defesa da educação inclusiva que inspiraram o Brasil a seguir princípios semelhantes: a Constituição Federal de 1988, art. 208, inciso III (Brasil,1988), o Plano Decenal de Educação para Todos – 1993 / 2003 (MEC, 1993) e o Plano Nacional de Educação 2011 – 2020 são exemplos de documentos que não deixam dúvidas sobre compromissos e desafios da educação brasileira para todos.
A julgar pelo teor do conjunto de tais documentos, as escolas devem se ajustar a todos os alunos, independentemente de suas condições físicas, sociais, linguísticas ou quaisquer outras. Neste conceito, devem incluir-se crianças com deficiência(s), com transtornos globais de desenvolvimento, com altas habilidades (superdotadas); crianças de rua ou crianças que trabalham, crianças de populações imigradas ou nômades, de minorias étnicas ou culturais e também alunos / pacientes, internados em hospitais (públicos ou particulares).
Com exceção dos casos de doenças contagiosas, desencadeadoras de baixa imunidade ou que impedem o indivíduo de se relacionar e conviver socialmente, o aluno/paciente pode continuar indo à escola ou, em casos mais dramáticos, pode, sim, passar a frequentar uma sala de aula, mesmo que jamais tenha entrado numa. A escolarização nessas condições delicadas é um direito que lhe assiste, pois tem amparo legal em documento elaborado pelo Ministério da Educação, em parceria com a Secretaria de Educação Especial, intitulado “Regulamentação da Classe Hospitalar e Atendimento Pedagógico Hospitalar”.
Por meio dele, o indivíduo hospitalizado ou com assistência domiciliar tem direito até mesmo ao atendimento educacional no leito. Cabe destacar que a meta 4 do Plano Nacional de Educação para o decênio 2011 – 2020 é “Universalizar, para a população de 4 a 17 anos, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino”. Em muitos desses casos, a necessidade de internação e/ou afastamento da escola está presente na vida do estudante com essas características e nem sempre exclusivamente em decorrência de condições adversas de saúde, mas em função de efeitos de medicamentos que podem vir a alterar sua capacidade cognitiva ou suas habilidades sociais e comportamentais.
Nesse sentido, a assistência pedagógica hospitalar e domiciliar é fundamental, pois permite o diálogo interdisciplinar com os vários profissionais da área médica. Para que a meta seja atingida, as estratégias que a acompanham são:
1) Contabilizar, para fins do repasse do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, as matrículas dos estudantes da educação regular da rede pública que recebem atendimento educacional especializado complementar, sem prejuízo do cômputo dessas matrículas na educação básica regular.
2) Implantar salas de recursos multifuncionais e fomentar a formação continuada de professores para o atendimento educacional especializado complementar, nas escolas urbanas e rurais.
3) Ampliar a oferta do atendimento educacional especializado complementar aos estudantes matriculados na rede pública de ensino regular.
4) Manter e aprofundar programa nacional de acessibilidade nas escolas públicas para adequação arquitetônica, oferta de transporte acessível, disponibilização de material didático acessível e recursos de tecnologia assistiva, e oferta da educação bilíngue em língua portuguesa e Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS.
5) Fomentar a educação inclusiva, promovendo a articulação entre o ensino regular e o atendimento educacional especializado complementar ofertado em salas de recursos multifuncionais da própria escola ou em instituições especializadas.
6) Fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso à escola por parte dos beneficiários do benefício de prestação continuada, de maneira a garantir a ampliação do atendimento aos estudantes com deficiência na rede pública regular de ensino.
Importante lembrar que o Projeto de lei que aprova o Plano Nacional de Educação 2011–2010 foi apresentado pelo ministro da Educação, Fernando Haddad, ao presidente Luis Inácio Lula da Silva em dezembro de 2010 e ainda precisa ser analisado pelo Congresso Nacional.
Além desses documentos, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, que dispõe sobre a proteção integral a cada um deles, incluindo, dentre outros, o direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer.
Mais do que isso, o Estatuto obriga a todos os municípios brasileiros a organizarem os seus Conselhos Tutelares, responsáveis por defender crianças e adolescentes cujos direitos não estão sendo respeitados.
Certamente, o direito à educação é um deles. Diante de tais iniciativas, a educação para todos - inclusiva e sem discriminação - vem sendo alvo de estudos e debates, envolvendo e despertando o interesse de famílias, escolas, órgãos governamentais e não governamentais na busca principalmente pela desinstitucionalização daqueles que têm necessidades especiais de atendimento.
Para iniciar esse processo, multiplicam-se os espaços de e para aprendizagem que vão muito além da sala de aula e, desta forma, abarcam um número bem maior de pessoas dispostas a aprender sem, necessariamente, ter que frequentar a escola formal. Consolida-se, assim, a prática da cidade educadora.
A Carta das Cidades Educadoras (Barcelona, 1990) reúne os princípios essenciais ao impulso educador da cidade a partir dos quais o desenvolvimento dos seus habitantes não pode ser deixado ao acaso. Em linhas gerais, a Carta defende que “Todos os habitantes de uma cidade terão o direito de desfrutar, em condições de liberdade e igualdade, os meios e oportunidades de formação, entretenimento e desenvolvimento pessoal que ela lhes oferece”.
Em outras palavras, a designação “todos os habitantes” envolve, sem dúvida, o indivíduo hospitalizado ou em atendimento domiciliar, visando ao seu desenvolvimento biopsicossocial. No Brasil, algumas das capitais educadoras (com cidades signatárias da Carta) são Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo e Cuiabá.
Mesmo inspirado em tantas iniciativas positivas e defensoras da educação inclusiva, todo atendimento oferecido a qualquer aprendiz – seja ele cidadão da Cidade Educadora ou não – precisa prever situações adversas que podem acometer o estudante a qualquer momento, como a descoberta de uma doença ou a súbita impossibilidade de locomoção e deslocamento devido a um problema ortopédico, por exemplo.
É aqui que entra o pedagogo hospitalar, o professor especialmente preparado para não só acompanhar os estudos do aluno/paciente, mas para integrar a equipe multidisciplinar que o assiste, identificando e compreendendo mais facilmente os efeitos positivos e negativos que o tratamento causa em seu aproveitamento escolar.
Vivenciando de perto esse processo, o pedagogo cumprirá sua função educativa oferecendo um “algo a mais” ao paciente: o direito à curiosidade, ao desejo descompromissado de querer aprender qualquer coisa – qualquer coisa mesmo! – e, claro, o direito de acompanhar as atividades escolares enviadas pela escola de origem sem que, para isso, o calendário de provas, trabalhos e demais tarefas seja comprometido.
O pedagogo hospitalar é um profissional muito pouco conhecido, até mesmo nos meios médicos. As estratégias e orientações descritas na Regulamentação da Classe Hospitalar e Atendimento Pedagógico Domiciliar (Brasília, 2002) somadas à Portaria nº 2.529 de 19 de outubro de 2006, que institui a internação domiciliar no Âmbito do sus, são documentos praticamente desconhecidos pelas entidades e pela população, talvez pela falta de divulgação, talvez pela falta de formação especializada desse profissional.
O fato é que os direitos existem, podem e devem ser cobrados e aplicados, seja na rede pública, seja na rede particular da saúde ou da educação. A exemplo da Portaria que institui a internação domiciliar no âmbito do SUS, há casos particulares em que a família do paciente que iniciou tratamento hospitalar opta por dar continuidade a ele em condição de homecare (onde os cuidados e, eventualmente, os aparelhos hospitalares são instalados na residência do paciente).
Isso tende a ocorrer quando o indivíduo, além de apresentar algum tipo de deficiência, ainda tem reações variadas (principalmente comportamentais) em decorrência de medicação ou da associação dessa deficiência com algum distúrbio mental mais comprometedor. Todo esse conjunto pode inviabilizar a convivência fora de casa, por isso o atendimento pedagógico hospitalar pode ser uma boa alternativa.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 10% da população de todo país apresenta algum tipo de deficiência, isto é, “diferenças físicas, sensoriais ou intelectuais, decorrentes de fatores inatos ou adquiridos, de caráter temporário ou permanente”. Em linhas gerais, no âmbito escolar/educacional, as mais comuns são:
Deficiência intelectual – Refere-se a padrões intelectuais reduzidos, apresentando comprometimentos de nível leve, moderado, severo ou profundo, constatados a partir de testes psicométricos (que indicam resultados qualitativos do indivíduo em relação à sua inteligência) e de comportamentos adaptativos inadequados.
Gera comprometimentos de ordem pessoal, como diminuição da autonomia e da independência; bem como de ordem familiar, constituindo-se num fator de vulnerabilidade das relações intrafamiliares do ponto de vista socioeconômico deficiências múltiplas – Caracterizada quando a pessoa apresenta duas ou mais deficiências associadas.
Na deficiência múltipla, como o indivíduo apresenta duas ou mais deficiências primárias – mental, visual, auditiva e motora - ocorrem comprometimentos que acarretam atrasos no desenvolvimento global e na capacidade adaptativa.
Distúrbios de Aprendizagem - Dificuldades na leitura e/ou na escrita, com trocas e inversões de fonemas e/ou sílabas, junções de palavras, omissões de sílabas ou uso de palavras que caracterizam grande parte dos distúrbios de aprendizagem escolar (perturbação na aprendizagem da leitura que leva a pessoa a embaralhar letras e números).
Dispraxia (comprometimento grave do desenvolvimento da coordenação motora).
Discalculia (dificuldade em aprender conceitos matemáticos), Transtorno do Déficit de Atenção (ou distúrbio de atenção) e Hiperatividade são algumas das condições neurológicas mais comuns em várias faixas etárias.
Do ponto de vista pedagógico, a escola tem à mão orientações legais para a flexibilização curricular, sugerindo formas alternativas de ensinar os vários conteúdos que compõem o currículo propriamente dito.
No entanto, em muitos casos, o que conta é a criatividade de cada docente, pois ela considera não só as condições cognitiva e física do aprendiz, mas seu universo pessoal de vivências e a existência de materiais “não pedagógicos” disponíveis e que podem ser usados para o entendimento de certos conceitos (o que não deixa de ser sinônimo de flexibilização).
Considerando “currículo” como estruturação das disciplinas e de seus conteúdos factuais, atitudinais e procedimentais, vejamos as breves definições sobre cada um deles: o conteúdo factual apela para a memorização de eventos, fórmulas, regras, e não representa aprendizagem no contexto construtivista, sendo, praticamente, apenas informativo.
O conteúdo atitudinal valoriza a diversidade de manifestações individuais – ideias, sentimentos, hipóteses – e defende o respeito por elas no âmbito coletivo. O conteúdo procedimental, por sua vez, relaciona-se diretamente à adaptação de materiais e também à transposição didática, quando a intenção for aproximar/ apresentar conteúdos acadêmicos refinados para um público leigo ou com características cognitivas diferenciadas.
Os três aspectos comportam tanto a utilização de ferramentas pedagógicas mais lúdicas e menos estruturadas (ida à feira ou ao supermercado, por exemplo) como ferramentas tecnológicas mais apropriadas para cada caso - as tecnologias assistivas. Todas são desenvolvidas especialmente para, dentre outros benefícios, oferecer bem-estar corporal/postural, mobilidade, movimentação “natural” de partes do corpo que sofreram algum tipo de dano irreversível e condições de acesso à informação e comunicação disponíveis na rede mundial de computadores.
Tecnologia Assistiva é um termo ainda novo, utilizado para identificar todo o arsenal de recursos e serviços que contribuem para proporcionar ou ampliar habilidades funcionais de pessoas com deficiências em graus variados, dificuldades temporárias ou em situação de invalidez prolongada/permanente.
Por meio dela, espera-se melhorar a funcionalidade dos pacientes no que diz respeito, por exemplo, à mobilidade, independência, integração social e comunicação. Os recursos podem variar de uma simples bengala a um complexo sistema computadorizado.
Estão incluídos brinquedos e roupas adaptadas, computadores, softwares e hardwares especiais, que contemplam questões de acessibilidade, dispositivos para adequação da postura sentada, recursos para mobilidade manual e elétrica, equipamentos de comunicação alternativa, chaves e acionadores especiais, aparelhos de escuta assistida, auxílios visuais, materiais protéticos e um sem número de outros itens confeccionados ou disponíveis comercialmente.
Os serviços são aqueles prestados profissionalmente ao paciente (ou à pessoa com deficiência) visando selecionar, validar ou usar um instrumento de tecnologia assistiva. Exemplos de serviços são avaliações, experimentação e treinamento de novos equipamentos em diferentes áreas, como fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional e até mesmo arquitetura, para validar projetos de acessibilidade.
A julgar pela união dos esforços locais e mundiais no sentido de consolidar a educação para todos, noto claramente que o que falta (ao educador e ao aluno brasileiros) é o poder do conhecimento de cada instrumento citado no início do artigo. Mais do que isso, falta a real apropriação do que cada um deles defende, visando a proteger a infância, a juventude e a população que necessita de atendimento especial qualificado – seja ela deficiente, hospitalar ou superdotada.
Referências bibliográficas
Assistência Domiciliar: uma proposta interdisciplinar – Barueri, SP: Manole, 2010 Brasil. Ministério da Educação.
Classe hospitalar atendimento pedagógico hospitalar: estratégias e orientações. Secretaria de Educação especial – Brasí lia: MEC; SEESP, 2002.
Escolarização hospitalar: educação e saúde de mãos dadas para humanizar. Elizete L. Moreira Matos (org) – Petrópolis; RJ: Vozes, 2009.
Beatriz Rizek é Psicopedagoga, Psicomotricista, Pedagoga Hospitalar e aluna dos cursos Reabilitação Neuropsicológica e Neuroaprendizagem e Transtornos do Aprender. Realiza atendimento educacional domiciliar com apoio de equipe multidisciplinar.
Site: www.biarizek.com.br
E-mail: beatriz@biarizek.com.br
Fonte: Portal Rede Saci - http://saci.org.br/ Em 15/02/11
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