Uso dos tablets nas salas de aula brasileiras impõe nova realidade aos docentes, que precisarão criar formas alternativas de interagir com os estudantes
Nos Estados Unidos, a educação digital já começa a gerar resultados. Um programa piloto realizado na Amelia Earhart Middle School, instituição da Califórnia, comparou o aprendizado de uma turma tradicional de álgebra com outro grupo que utilizou o tablet — no caso, o iPad — em conjunto com os livros e constatou que o uso da nova tecnologia melhorou o rendimento dos estudantes. Resultados apresentados pela publicação Houghton Mifflin Harcourt publisher mostram que as notas do segundo conjunto de alunos aumentaram o rendimento da matéria em 20%. O estudo é um dos primeiros sobre o tema, já que a ferramenta ainda é nova e deve passar por transformações no decorrer dos anos. O certo é que, em qualquer parte do mundo, a transição não pode ser dissociada da capacitação dos docentes.
No Brasil, o desafio não será apenas com o manejo do novo aparelho — novidade para muitos profissionais acostumados com práticas mais antigas — mas também englobará a autoridade nas salas de aula. “Os professores ainda não estão preparados. Essas novas tecnologias vão diminuir a distância cognitiva entre eles e os alunos. Um docente deve estar apto a ouvir um estudante dizer: ‘Tal site diz o contrário do que o senhor está explicando’. Ele deve ter conteúdo suficiente para indicar os melhores canais virtuais e passar o conteúdo”, ressalta Célio da Cunha, professor da faculdade de educação da Universidade de Brasília e consultor da Unesco.
Outros três especialistas da área de educação ouvidos pelo Correio afirmam que o sucesso da nova tecnologia depende da mudança de pensamento e do estilo de atuação dos educadores nas salas aulas. “De nada adianta um material inovador se os professores continuarem com a mesma metodologia. O conteúdo programático deve ser pensado para o uso da nova ferramenta. Novas mídias demandam formas diferentes de se comunicar”, analisa o especialista na área de tecnologias da educação da UnB Gilberto Lacerda.
A digitalização dos livros, que não mudaria o estilo de ensino, mas apenas o meio, é citada como um exemplo claro dessas práticas mais simplistas. Já as alternativas de trabalhar com o tablet podem seguir a criação de obras totalmente interativas e digitais, como no Sigma, ou podem também servir de complemento para o aprendizado com materiais didáticos convencionais, a exemplo do que será feito no Marista e Leonardo da Vinci. No primeiro colégio, a implantação da nova tecnologia começará em uma turma piloto. Após o carnaval, 40 estudantes de uma turma selecionada receberão aparelhos comprados pela própria escola para testar a eficácia da tecnologia.
Durante todo o ano, o desempenho do grupo será analisado e comparado com uma turma inserida no sistema tradicional de ensino. Fatores como retenção do conteúdo e aprendizado serão objeto de estudo. “Vamos trabalhar com prudência. O tablet é uma ferramenta excelente, mas não vamos pensar que é uma varinha de condão com a capacidade de trazer o mundo da tecnologia para a escola. Queremos avaliar os resultados para pensar no melhor modelo de inserção do aparelho”, afirma José Leão da Cunha Filho, diretor-geral do Marista. Por enquanto, a instituição não pensa em substituir livros. A ferramenta será utilizada em conjunto com o material impresso.
No Leonardo da Vinci, a inovação chegou primeiro às aulas de física. Um grupo de professores da disciplina desenvolveu uma ferramenta digital interativa para que os alunos tenham exemplos concretos e possam entender melhor o conteúdo. “É uma forma de levar o laboratório para dentro da sala pelo meio virtual”, explica o coordenador da equipe, Robert de Alencar Cunha. Por enquanto, o uso do tablet não será obrigatório. Os interessados podem comprar os fascículos, por R$ 7 cada e instalar no aparelho ou celular. Se desejarem, podem comprar apenas a apostila impressa.
Compartilhar ideias
O professor de sociologia do Marista Leandro Grass passou por curso ministrado pela escola para a introdução do conteúdo digital. Desde o ano passado, ele procura assuntos interessantes e complementares para as aulas que vai ministrar na turma escolhida para integrar o projeto-piloto. “Temos que adotar a mentalidade de compartilhar ideias. É preciso estar antenado para saber quais são os sites seguros a indicar aos alunos. Além disso, a humildade de discutir as diferentes referências será essencial”, avalia.
Para ele, a inovação é positiva, já que vai estimular os docentes e dar novas possibilidades de ensinar. “Na aula de geografia, os alunos verão os mapas, compararão lugares. Nas de física, poderão ver as fórmulas, os experimentos. Na de sociologia, será possível mostrar fotos sobre a evolução ou de outros assuntos abordados”, enumera Grass.
Rodrigo Timm, 16 anos, e Julia de Moraes Elias, 15, estão ansiosos para saber qual turma vai ganhar os tablets comprados pela escola. A adolescente já pensa no ganho para o meio ambiente e na redução do uso de papel, além dos benefícios educacionais. “Vai dinamizar o aprendizado, vamos poder ver gráficos nas aulas de matemática. A gente nasceu na era da tecnologia, nada mais natural do que a utilizarmos isso na sala de aula”, aposta. Rodrigo faz planos. “Se a minha turma ganhar o tablet, ficarei mais animado para estudar. Pensei que ia terminar o colégio sem passar por essa experiência. Quero muito ter essa oportunidade”, finaliza
Pioneiro
O iPad foi o primeiro modelo de tablet a ser apresentado no mercado. O aparelho foi anunciado em janeiro de 2010 pela Apple em uma conferência para a imprensa na cidade de São Francisco, Estados Unidos. Em 30 de novembro do mesmo ano, o equipamento chegou às lojas brasileiras e vendeu cerca de 64 mil unidades. Em 2011, 400 mil novos aparelhos foram adquiridos no país.
Para saber mais
Conteúdo digital
É comum confundir os termos digitalização e digital. A diferença entre eles, porém, pode ser determinante para o sucesso do uso dos tablets nas salas de aula. Digitalizar significa basicamente escanear um material impresso que já existe e passar para o computador.
Um processo que pode ser comparado com os livros digitais, lidos em extensões como PDF, HTML e ePUB, em celulares ou tablets. O usuário desse tipo de tecnologia deseja somente ler o material em um meio diferente. O conteúdo digital, por sua vez, possibilita interação, relaciona os assuntos e agrega conhecimentos de diversas matérias em uma só. É criado especificamente para as novas tecnologias.
Entrevista Samantha Kutscka
Tecnologia atrai alunos, diz especialista
A introdução dos tablets nas salas de aula é inevitável e pode servir para atrair a atenção dos alunos para o conteúdo acadêmico, mas é preciso dar especial atenção à adequação da linguagem para a nova plataforma e à formação dos professores.
A opinião é da coordenadora executiva de projetos da Escola do Futuro, do núcleo de pesquisas da Universidade de São Paulo (USP), Samantha Kutscka. Em entrevista ao Correio, a especialista, que investiga novas tecnologias aplicadas à área de educação, afirma ser necessário transformar o método de ensino para se obterem resultados. Investir apenas na mudança da mídia, de acordo com ela, não traria progresso algum. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
A senhora acredita nessa ideia de que o lápis, a caneta e o papel vão desaparecer das escolas?
Não vejo a possibilidade de isso acontecer. Não preparamos o aluno para um mundo de certeza, claro. Mas, hipoteticamente falando, se uma instituição ficar sem energia ou houver algum evento complexo envolvendo os aparelhos, o lápis e o papel vão ser a solução. Acredito que eles não vão deixar de existir nunca. Também há um processo de desenvolvimento da cognição, onde você ensina a criança a escrever com a mão. Nesse caso, você não vai alfabetizar alguém com um tablet. Se usarmos um exemplo atual, você vai ver que ninguém deixou de fazer conta com a mão porque apareceu a calculadora. Há nove anos, quando entrei na Escola do Futuro, havia uma resistência dos professores em usar o computador. Não é diferente hoje. Podemos esperar isso a partir da introdução de qualquer nova tecnologia nas escolas.
E quanto ao desvio da finalidade do aparelho, quanto à possibilidade de dispersão por parte do aluno. É realmente um risco que se corre?
Acredito fortemente que o papel do professor não deixa de existir, ele simplesmente muda. Os pais têm, realmente, uma preocupação com a relação do filho e a tecnologia. O professor, por sua vez, com a dispersão do aluno. Mas, hoje, a maioria dos pais trabalha fora e os filhos, quando não estão sob o olhar deles, ficam sujeitos a diversos conteúdos. Não tem como fiscalizar, policiar em 100% do tempo. Tirando a censura, não tem o que fazer. Nesse sentido, acredito que a orientação do professor surge como algo fundamental. Ele deve apresentar conteúdos, mostrar o que deve e o que não deve ser acessado, afinal, a censura não agrega nada. Ela apenas aguça, atrai a pessoa para o proibido.
A senhora acredita que pode haver um agravamento do desnível entre as escolas públicas e as particulares, uma vez que essas últimas vêm incorporando primeiro esses aparelhos?
Esse desnível sempre existiu em praticamente tudo. As escolas privadas acabam sendo mais pioneiras nessa área de tecnologia, principalmente porque têm recursos. Seria incoerente dizer que isso não acontece. Agora, a capacidade de aprender do aluno de uma escola pública é a mesma da de um de uma escola particular. Tudo depende de como você ensina. O governo tem capacidade de fazer algo bem melhor que uma escola particular, afinal ele é um, digamos, polvo com milhões de tentáculos, enquanto uma escola particular está sozinha ou pertence a uma rede. É necessário apenas fazer.
E a capacitação dos professores, a senhora acredita que realmente esse é um desafio?
Sim, porque as gerações são diferentes e, por isso, entendem a tecnologia de forma diferente. Existe certa resistência, mas ela passa. A formação do professor começa com uma quebra de paradigma, pois não se trata apenas de mostrar ao profissional como usar o aparelho, mas de fazê-lo reconhecer potenciais pedagógicos naquilo. Incorporando uma nova tecnologia, você acaba agregando mais trabalho ao educador e ele, normalmente, não está satisfeito com a remuneração que recebe. Então, nesse caso, você deveria incluir uma bonificação, um estímulo a esses professores.
Vem se falando também da insegurança que andar com um aparelho de alto custo pode trazer ao aluno. O que a senhora pensa sobre isso?
Acho que pode ser um risco sim, mas não tenho uma opinião sólida sobre o assunto. Acredito que, quando a tecnologia se popularizar, os preços irão cair e talvez não fique tão perigoso andar com o tablet. Pensar nisso no âmbito das escolas públicas depende da aplicabilidade, afinal, ainda não sei se o aparelho vai sair da escola ou não vai. De toda forma, não acredito que os assaltantes vão se apoderar dos entornos das escolas como um alvo primário. Afinal, hoje vejo muitos alunos de escolas particulares carregando notebooks, smartphones.
Quais são as maiores vantagens em usar esses aparelhos nas escolas?
Atratividade. Esse é o grande diferencial. Uma questão muito complexa é que as pessoas não aprendem da mesma forma. Por isso, quando você tem um conteúdo multimídia, você tem possibilidades maiores e melhores de transmitir um conteúdo de várias formas.
E qual a grande preocupação na introdução desses aparelhos no ambiente escolar?
Adequar a linguagem e formar o professor. O que você não pode fazer é simplesmente transformar um livro impresso para digital. O conteúdo deve ser repensado, você tem que aproveitar o potencial daquela plataforma. No caso de livros, você tem praticamente que os recriar. Sabemos, por experiência, que não adianta apenas trocar a mídia para que o aluno assimile o conteúdo.
Fonte: Correio Braziliense / Manoela Alcântara 06/03/2012
quinta-feira, 8 de março de 2012
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