domingo, 11 de dezembro de 2011

Entrevista - Diálogo entre pesquisa e escola

Ano XV - Nº 57 - A Matemática em Questão - Fevereiro / Abril 2011

Terezinha Nunes

Brasileira, mas com boa parte de sua carreira desenvolvida na Inglaterra, a doutora em psicologia Terezinha Nunes está hoje envolvida em múltiplas atividades na Universidade de Oxford. "No ensino, eu me dedico principalmente à supervisão de doutorandos e à coordenação e ao ensino no mestrado em Psicologia da Criança e Educação. Com relação à pesquisa, continuo desenvolvendo investigações sobre a aprendizagem e o ensino da leitura e da matemática entre crianças ouvintes e surdas", conta.

Com um novo livro, escrito em colaboração com o marido, o também professor Peter Bryant, lançado no Brasil pela Artmed (leia a Resenha na p. 21), Terezinha Nunes concedeu esta entrevista à Pátio Ensino Fundamental, na qual aborda o processo de ensino-aprendizagem da matemática e o que a ciência tem trazido de importante para esse campo. "A matemática no ensino fundamental não deveria ser vista como um conjunto de técnicas a serem aprendidas, mas como uma forma de representar o mundo para compreendê-lo melhor", afirma.

Nos últimos anos, foram feitos muitos avanços no ensino da leitura e da escrita, mas o ensino da matemática continua sendo um problema na maior parte das escolas. A que a senhora atribui esse fato?

Os avanços em pesquisa sobre o ensino da matemática também foram consideráveis nos últimos anos, e eu tenho certeza de que um número muito maior de alunos poderia estar não só aprendendo matemática melhor, como também gostando de matemática se os resultados de pesquisa fossem aproveitados no ensino. Para isso, precisaríamos de duas mudanças radicais.

Quais seriam elas?

A primeira seria uma nova maneira de pensar sobre essa questão. A matemática no ensino fundamental não deveria ser vista como um conjunto de técnicas a serem aprendidas - aprender aritmética, aprender álgebra, aprender a fazer contas com frações e com decimais -, mas como uma forma de representar o mundo para compreendê-lo melhor. As pesquisas mostram que, desde 5 ou 6 anos, as crianças começam a estabelecer relações entre quantidades e a raciocinar logicamente sobre essas relações. Quando entendem as relações entre quantidades, elas se tornam capazes de compreender as mesmas relações no campo simbólico dos números.

Poderia exemplificar?

A maioria das crianças de 6 anos é capaz de entender que, se adicionarmos uma quantidade a outra e depois retirarmos a mesma quantidade, a quantidade inicial não se altera. A descoberta dessa relação lógica entre quantidades deveria ser estimulada na sala de aula de matemática através de perguntas e problemas que provocassem a criança a pensar sobre relações entre quantidades. Quando ela compreende essa relação no mundo, pode ampliar tal raciocínio, bem como entender a relação inversa entre adição e subtração no mundo dos números.

Isso já não está sendo feito nas escolas?

Atualmente, na maioria dos currículos de matemática, não existe a previsão de trabalhar com a criança sobre a lógica das quantidades. A escola espera que a criança já entenda essa lógica e passa direto ao ensino dos números. No entanto, nossas pesquisas mostram que entre metade e um terço das crianças precisariam trabalhar esses raciocínios na escola, pois, quando ingressam no ensino fundamental, ainda não tiveram oportunidades anteriores para pensar sobre relações entre quantidades. Nossas pesquisas mostram ainda que, se as crianças que estão correndo o risco de fracasso na matemática tiverem as oportunidades certas para desenvolver esse raciocínio lógico sobre as quantidades, seu desempenho posterior poderá ficar até mesmo um pouco acima da média.

Qual seria a segunda mudança necessária?

A segunda mudança relaciona-se à formação de professores para o ensino fundamental. Se eles não tiverem a oportunidade de repensar a matemática, não terão como trabalhar com seus alunos de uma nova maneira. A participação dos professores é essencial para que qualquer mudança ocorra na educação. Portanto, para transformar o ensino da matemática, é essencial haver um conjunto integrado de mudanças, apoiando os professores em formação e a formação continuada dos professores. Transformar a educação matemática significa transformar toda uma cultura escolar, pois os professores têm de recriar a matemática escolar na sala de aula todos os dias. Por isso, as mudanças em educação são sempre demoradas, porque se trata de mudanças culturais que não são conquistadas de um dia para o outro.


O processo de ensino-aprendizagem da matemática também é um problema em outros países?

As comparações internacionais mostram que os níveis de desempenho nas mesmas provas variam de modo significativo entre países diferentes. Alguns sempre se saem bem, outros sempre mostram resultados baixos, e outros oscilam, melhorando em alguns anos, porém demonstrando quedas nos resultados em outros anos.


O que faz com que certos países
tenham bons resultados?

As comparações internacionais devem ser interpretadas cuidadosamente, já que não podem ser vistas como medidas somente da eficácia do ensino escolar. Sabemos, por exemplo, que as diferenças socioeconômicas têm consequências para o sucesso escolar. Em alguns países, como a Finlândia, as diferenças socioeconômicas são muito pequenas; portanto, espera-se que o resultado dos alunos seja em média mais alto e homogêneo. Em outros países, como os Estados Unidos e a Inglaterra, existem diferenças socioeconômicas marcantes, embora não sejam comparáveis às diferenças existentes no Brasil.


Por que tais diferenças não são comparáveis?

Uma criança pobre na Inglaterra tem acesso a alimentação e saúde básicas, enquanto as mães têm acompanhamento durante todo o período pré-natal e visitas de uma especialista após o nascimento do bebê para orientá-las no cuidado infantil. O acesso a alimentação, saúde e orientação nos cuidados infantis não é o mesmo no Brasil. Outra diferença importante entre países é o acesso à educação pré-escolar, que em muitos países pode começar aos 3 ou 4 anos, dando às crianças uma aceleração inicial quando elas ingressam na escola, porque já começam socialmente adaptadas ao ambiente e tendo algum conhecimento preparatório construído na pré-escola. Finalmente, em muitos países, existe uma tradição de ensino particular, além do ensino escolar. Nos países em que o ábaco é utilizado, é comum que as crianças frequentem aulas particulares para dominar tal uso. Logo, seria ingênuo concluir que podemos simplesmente importar para o Brasil as características dos sistemas educacionais que apresentam melhores resultados nessas comparações.


Que lições podem ser retiradas
das avaliações internacionais?

Feitas essas ressalvas, não se pode esquecer que o desempenho do Brasil nas comparações internacionais revela o mesmo que as provas feitas por professores brasileiros para estudantes brasileiros: o ensino de matemática precisa ser melhorado. O Brasil tem dado passos importantes para melhorar o ensino, como, por exemplo, a análise de livros didáticos, que identifica aqueles que são mais adequados, bem como a biblioteca do professor, que facilita o acesso a livros que possam contribuir para a sua formação continuada. Contudo, o país não utiliza os recursos disponíveis em sua plenitude. Existem fortes grupos de pesquisa em educação matemática e pesquisadores de renome internacional que poderiam contribuir para a melhoria do ensino, mas cujo trabalho ainda não é aproveitado.


Que novos aportes a ciência tem trazido para ajudar os professores de matemática?

É difícil listá-los, pois são muitos, mas é possível exemplificá-los, fazendo uma comparação entre a tradição atual de ensino no Brasil e as novas concepções que surgiram a partir da pesquisa em educação matemática. Por exemplo, no ensino de matemática pensa-se em ensinar as operações aritméticas. Na pesquisa em educação matemática, pensa-se em campos conceituais, o que significa que a adição e a subtração precisam ser compreendidas como aspectos diferentes do mesmo raciocínio.


Como esse processo funciona na prática?

Quando alguém compra algo que custa 80 reais e o vendedor calcula o troco para uma nota de 100, ele pode calcular por soma (80 mais 20 igual a 100) ou por subtração (100 menos 80 igual a 20). O importante não é a conta que o vendedor faz, mas o uso de um raciocínio parte-todo segundo o qual o todo (o dinheiro que o freguês deu ao vendedor) é igual à soma das partes (o que ele gastou mais o que recebeu de troco). Esse raciocínio caracteriza as situações chamadas aditivas e é diferente daquele usado em situações chamadas multiplicativas. Em uma situação multiplicativa, as relações entre as quantidades não são do tipo parte-todo, e sim do tipo correspondência um-a-muitos. Por exemplo, se um caqui custa 5 reais, existe uma relação 1:5 entre o número de caquis e o preço. Os problemas que envolvem esse tipo de raciocínio situam-se no campo do raciocínio multiplicativo e são resolvidos por multiplicação ou divisão.


De que modo essas questões se relacionam com as pesquisas?

As pesquisas indicam que os alunos precisam pensar sobre as quantidades de modo diferente quando os problemas versam sobre situações aditivas ou situações multiplicativas. A base dos dois tipos de raciocínio é completamente diferente. Essa perspectiva sobre situações aditivas e multiplicativas é bastante diferente da prática atual, ou seja, a de se ensinar primeiro a adição e depois a subtração, como dois tópicos distintos, e também é muito diferente do ensino da multiplicação como adição repetida. É verdade que se podem resolver contas de multiplicar por adições repetidas, porém o raciocínio multiplicativo é completamente diferente do raciocínio aditivo. Esses aportes da ciência para o ensino poderiam transformar a educação matemática se fossem concebidos como política nacional.


Muitos professores de matemática resistem à inclusão de alunos com necessidades especiais, pois dizem que a matemática é impossível para tais alunos. Qual é a sua opinião a esse respeito?

O significado da inclusão vai além da questão do ensino de matemática. A expressão alunos com necessidades especiais encobre muitas diferenças que precisam ser compreendidas. Minha opinião é a de que todos os alunos devem receber o melhor ensino possível - e, para isso, é necessário compreender essas necessidades especiais, em vez de encobri-las com uma terminologia inespecífica. Por exemplo, sabemos que os alunos surdos aprendem melhor quando usamos recursos visuais, como objetos ou figuras, para apoiar a apresentação de problemas de matemática, não importando se essa apresentação seja feita usando língua de sinais ou língua oral. Sabemos também que os alunos precisam discutir ideias matemáticas para que se tornem conscientes do próprio raciocínio. Portanto, eles precisam participar de uma comunidade linguística que permita a discussão das ideias matemáticas. A questão é se a classe regular tem condições de oferecer ao aluno surdo as condições de ensino que correspondem às suas características.


Nesse caso, a seu ver, o uso de recursos visuais não seria suficiente?

O uso de recursos visuais algumas vezes ajuda igualmente o aluno ouvinte; outras vezes não o ajuda, mas também não o atrapalha. Por isso, é fácil atender às necessidades do aluno surdo nesse sentido em uma classe regular, mas como garantir que ele não seja marginalizado em uma discussão sobre ideias matemáticas entre pares? Essa é uma questão que merece a atenção dos professores. A importância de uma comunidade de aprendizes não pode ser ignorada na sala de aula. l,

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