segunda-feira, 27 de junho de 2011

RELATO DE UMA PROGRESSÃO

Sou professora do Ensino Fundamental e ultimamente tenho trabalhado com alunos do segundo ciclo, segunda fase do Ensino Fundamental. Sabemos que o universo da sala de aula nos possibilita conviver com as mais variadas situações de aprendizagens e desafios.

Quero relatar aqui uma importante experiência pessoal, relacionada à tão discutida progressão de aluno em defasagem idade/ciclo, idade/fase. Neste relato vou chamar o meu ex-aluno de “Desafio.com”, porque talvez tenha sido ele o maior dos desafios encontrados em minha carreira profissional até então.

O ano letivo foi o de 2010 e já estávamos vencendo os primeiros trinta dias de aulas, quando recebi o trigésimo aluno da turma, que era formada por crianças entre nove e onze anos de idade. Chegou à sala de aula, acompanhado de uma funcionária da escola e de sua mãe.

A funcionária disse: “Como já conheço Desafio.com, de anos anteriores nesta escola, quero te pedir que seja bem firme com ele”. A mãe completou: “Desafio.com tem me dado muito trabalho na escola, professora. Mantenha a rédea curta e qualquer coisa pode me chamar”.

Pode imaginar o que pensa uma professora num momento desse? Sala lotada de pré-adolescentes... Estava tudo tão bem assim, mas... Sinceramente? Eu orei naquele momento. Não sei o que disse a Deus. Mas pedi sabedoria e paciência para lidar com Desafio.com.

Apresentei o novo integrante aos colegas e fiz perguntas básicas (nome completo, última escola que estudou, endereço e o que mais gostava de fazer na escola). A resposta da última pergunta foi algo do tipo “gosto de tudo um pouco pssora” . Me chamou de “pssora”, mas a resposta me confortou.

Percebi logo nos primeiros dias que Desafio.com evitava se entrosar com os colegas. Ofereci-lhe aberturas (ilustrações que identificam as disciplinas) para colar no caderno. Rejeitou educadamente dizendo que aquilo era coisa de criança. Respeitei.

O aluno procurava manter-se sempre distante dos colegas. Avisou que não gostava de ler em voz alta. Apenas respondia as perguntas que eram feitas diretamente a ele com o tom de voz moderado.

As tarefas de casa raramente apareciam prontas, mas na sala de aula realizava a todas as atividades com muita precisão e rapidez. Eu me perguntava: “O que há de errado nesse menino?”. Até comigo ele evitava trocar idéias. Dizia sempre: “Sim! Não! Não sei! Dá nada não!”

Nos momentos de leituras de livrinhos, ou de gibis, percebia que ele me enrolava. Abria e fechava, olhava as gravuras e nada. Na hora de preencher a ficha de leitura dizia que não gostava de ler e que não ia preenchê-la. Argumentava para lhe convencer do contrário, mas só ouvia: “Dá nada não pssora”.

Nos trabalhos manuais o resultado era bom, contanto que ele estivesse sozinho. Se a turma fosse organizada em grupos para quaisquer tipo de atividades, Desafio.com recusava a se juntar com quem quer que fosse.

Quando retirava a turma da sala para participar de atividades psicomotoras, recreativas, aquele menino ficava sempre de longe observando tudo. Por mais que eu insistisse, não havia acordo. Quando o assunto era futebol, aceitava participar desde que fosse ele o juiz. Desafio.com era o maior da turma, demonstrava sua experiência em futebol e os colegas o aceitavam, sempre como juiz.

Ora, mas de tanto ouvir “dá nada não” expressão mais usada por ele para se recusar a fazer certas atividades, fui ficando muito intrigada e por vezes até irritada. Apesar de tantos “dá nada não” Desafio.com nunca foi grosseiro comigo. Com seus lindos olhos castanhos me olhava de um jeito diferente de todos e emitia um belo e largo sorriso quando lhe fazia elogios.

Um dia durante o recreio, houve uma briga no pátio. Ele estava envolvido. Foi advertido de modo escrito. No final da aula pedi que ficasse mais um pouco para conversarmos sobre o acontecido. Não houve recusa. Ficou e argumentou muito bem em sua defesa. Outras duas brigas aconteceram nas semanas seguintes e ele estava envolvido. Foi novamente advertido. A terceira advertência foi redigida por mim, pois a briga foi na sala, na saída para o intervalo e ele disse palavrões terríveis. Isso era muito ruim.

Me preocupei muito e no dia seguinte, perguntei se ele poderia conversar comigo durante o intervalo. Aceitou. Tivemos uma longa e proveitosa conversa.

Desafio.com disse que já tinha passado por várias escolas, que brigava muito e que até já havia recebido algumas transferências por conta disso. Disse que não era mais criança para estar naquela turma fazendo aquelas bobagens. E que eu estava era muito por fora. Ele não era mais criança. Por isso se irritava com aqueles meninos bobinhos. “não gosto nem um pouco de estar aqui, mas a senhora é bem educada comigo, pssora, por isso não reclamo muito” “ sair dessa escola... dá nada não!”.

Foi então que me dei conta que Desafio.com tinha vergonha de estar numa turma de crianças pequenas. Com doze anos de idade ele era um menino bem crescido e forte. Além disso, realizava as atividades propostas que gostava com precisão. Raramente precisava de ajuda. Lia apenas para mim, mas lia muito bem; produzia textos dentro do esperado; interpretava e resolvia situações problemas,dentre tantas outras coisas que ele apresentava muita facilidade em compreender e realizar. Enfim não via nada que impedisse a sua progressão. Mas não lhe falei sobre o assunto.

Conversamos muito e a partir daquele dia ele passou a me oferecer ajuda nas diversas situações de sala de aula. Percebi que estava se relacionando melhor com alguns colegas.

Já estávamos no final do primeiro bimestre. Conversei com a coordenadora pedagógica sobre a possibilidade de progredir Desafio.com. Fui orientada sobre a avaliação que ele deveria fazer para isso e só depois de tudo acertado é que informei ao aluno e a sua família.

Ele sorriu lindamente e disse: “Ah, pssora, aceito sim. Obrigado”.

A avaliação foi preparada com muito cuidado contemplando todas as áreas e realizada em data previamente agendada. O menino se saiu muito bem. Depois da correção escrevi um pequeno relatório que li para ele:

“O aluno Desafio.com apresenta bom desempenho na aprendizagem e por estar em defasagem idade/fase, realizou-se uma avaliação especial, e tendo o mesmo alcançado resultado muito satisfatório, foi reclassificado para cursar a terceira fase do segundo ciclo, conforme ata de reclassificação arquivada em sua documentação escolar”.

Expliquei-lhe que o resultado de sua avaliação havia sido ótimo e que iria estudar em outra turma no período matutino.

Essa atitude foi muito boa para ambas as partes. Mas como me sentia responsável por aquela progressão, por algum tempo procurei me informar com os professores de sua nova turma, de como estava se saindo Desafio.com em seu novo espaço. As informações eram sempre positivas.

No início eu também o procurava para conversarmos um pouco no pátio. Queria ter a certeza que tudo estava bem. E estava mesmo. O menino estava muito feliz. Isso era evidente em seu sorriso, em seu carinho para comigo. Ele me garantiu que estava dando conta do recado. Então sosseguei meu coração.

Professora Siurlanda de Jesus Brito Lojol.

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