'Quem precisa de escola em tempo integral no Brasil é professor, não aluno'
Para melhorar o ensino público, país precisa formar mestres, diz a educadora Guiomar Namo de Mello
Nathalia Goulart
"Faltam foco e prioridade. Faltam medidas que se dirijam a questões estruturantes da educação"
Diretora da Escola Brasileira de Professores, que se dedica à educação inicial e continuada de docentes do ensino básico, Guiomar Namo de Mello está, é claro, preocupada com a formação dos mestres no Brasil. Contudo, ela não engrossa o coro daqueles que acreditam que a saída para o problema está em oferecer melhores salários. “Se você me perguntasse se o professor ganha mal, eu diria que sim. Mas para o que alguns fazem, é muito”, diz. Para a especialista, mais do que maiores vencimentos, os docentes precisam de melhor formação: saídos de escolas públicas ruins, apenas espalham seu desconhecimento aos alunos. “A formação do professor é uma questão estruturante. Sem ela, nenhuma melhora é possível”, sentencia Guiomar.
Aperfeiçoar a formação dos docentes e coordenar as ações de estados e municípios que quiserem promover reformas na área - ambas tarefas do governo federal - serão desafios do presidente que o país elegerá neste ano. Confirma a seguir os principais trechos da entrevista com a educadora.
A senhora costuma afirmar que, até o início dos anos 90, a educação não fazia parte da agenda estratégia dos governos. Hoje, ela já está entre as prioridades?
Os setores mais bem informados da sociedade se deram conta de que a educação é urgente em termos de desenvolvimento sustentável. Por isso, acredito que haja uma pressão maior por parte da população. No entanto, a educação vem sempre carregada de visões imediatistas e às vezes extremamente pessoais dos governantes. Na política, a educação está facilmente sujeita a uma certa pirotecnia, ou seja, os governos e os políticos em geral querem sempre faturar mais com o menor custo possível.
E, assim, faltam foco e prioridade. Faltam medidas que se dirijam a questões estruturantes da educação.
Quais são essas questões?
A qualidade da formação do professor, por exemplo, é uma questão estruturante. Sem ela, nenhuma melhoria é possível. E há pouca disponibilidade para atacar esse problema. É preciso mudar completamente os sistema de formação de professores, que ficou refém de um ensino superior. Mas não há disposição de se investir política e financeiramente para atrair os melhores para a carreira de professor.
O que fazer para formar um bom professor?
É preciso enfrentar os cursos de pedagogia, mas não vejo nenhum político se referindo a isso. Também temos que formar o professor em tempo integral, porque eles estão saindo do ensino médio analfabetos e chegam ao ensino superior para reproduzir a sua ignorância. Depois, vão para a escola pública e repetem o círculo vicioso da ignorância. Então, quem precisa de escola em tempo integral no Brasil é professor, não aluno. Nosso professor sai da escola pública: depois de uma formação deficitária no ensino superior particular, onde ele pode dar aula? No ensino público, de onde saiu. E ainda tem quem diga que é ele o culpado pela má qualidade do ensino. Ele não é culpado, mas apenas uma peça dessa engrenagem. Para enfrentar esse problema é preciso vontade política e recursos financeiros para investir na formação do professor. Se estivéssemos dispostos a fazer isso, poderíamos ter um ensino de qualidade.
No Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) de 2008, apenas 2,7% dos cursos de pedagogia alcançaram a nota máxima, igual a 5. O que precisa mudar no currículo dessas instituições?
Precisamos de um currículo onde o futuro professor não estude só a teoria. Ele precisa conhecer a prática desde o primeiro dia, como os médicos. O modelo de formação clínica é o melhor modelo para o professor. Ele não precisa estudar os recônditos da pedagogia. Ele precisa aprender como se ensina e como o aluno aprende. O professor é um artesão, ele não é um grande criador. Da mesma forma que o médico não é um criador. Ele tem que ser um excelente aplicador de conhecimento. A sala de aula é o foco e a referência do trabalho dele.
O currículo escolar praticado hoje é outra questão estruturante?
Sim. Hoje temos um ensino enciclopédico e precisamos acabar com essa crença. Precisamos saber para que finalidade queremos educar os jovens. Temos que educá-los para sobreviver em um mundo cada vez mais complicado, em que a informação está disponível para todos. Para isso, você precisa desenvolver competências que são básicas: saber falar, pensar, usar a linguagem, aplicar o conhecimento adquirido para entender o mundo ao seu redor. É preciso um ensino mais relevante. Ou a gente atende a esses desafios ou não melhoramos o ensino.
Muitos especialistas apontam que o salário do professor é um empecilho para o avanço da educação no Brasil. Como a senhora enxerga essa questão?
A remuneração é um fator a ser revisto. O salário precisa melhorar, mas só isso não resolve o problema. O aumento do salário tem que ser uma decorrência do aumento da responsabilidade do professor e do mérito. Se você me perguntasse se o professor ganha mal, eu diria que sim. Mas para o que alguns professores fazem, é muito. E para o que outros fazem, é pouquíssimo. Para corrigir isso, precisamos de mecanismos para diferenciar um do outro. O que não pode é aumentar o salário de todos.
A meritocracia é uma saída para isso?
A ainda que seja uma única medida, ela é interessante e pode fazer a diferença em São Paulo, onde foi aplicada. Porque se o professor quiser progredir só pelo tempo de trabalho - como normalmente ocorre - o salário dele aumenta em um determinado ritmo. Mas se ele quiser fazer um concurso sobre o conteúdo que ele ensina, ele pode ter um aumento substancial e buscar um atalho na carreira. Ele começa a ganhar mais antes do tempo previsto. Acredito que são esses os mecanismos que atraem os profissionais. Porém, é preciso lembrar que na educação não existe uma única saída. A solução tem que mexer em diferentes fatores. Sozinha a meritocracia não resolve muito. Por mais que incentive o professor, se ele não sabe como ensinar, ele precisa aprender.
Qual o maior desafio na área da educação que o próximo presidente, a ser eleito neste ano, deverá enfrentar?
A questão do professor talvez seja o abacaxi mais complicado para descascar, em todos esses aspectos. O presidente da República manda no ensino superior. E é no ensino superior que está o problema do professor. Não adianta desconversar. A questão da formação do professor é responsabilidade do Ministério da Educação – seja no ensino superior público federal ou nas faculdade e universidades particulares, que são autorizadas e supervisionadas pelo governo. Portanto não dá para se esquivar. Também precisamos lembrar que o governo federal não é o gestor do ensino básico no Brasil. Gestores são estados e municípios. Cabe ao governo federal liderar e coordenar políticas para estados e municípios que queiram promover reformas. E para isso é preciso haver um grande pacto federativo da educação. O presidente eleito precisa usar o respaldo que ganhará nas urnas para chamar estados e municípios e equacionar os problemas mais estruturantes da educação. É importante estabelecer um pacto federativo.
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