domingo, 22 de janeiro de 2012

Entrevista com Fernando Hernandez: Currículo por Projetos


--- A educação, hoje, precisa se desconstruir para se estruturar sobre novas bases. De que forma a organização do currículo por projetos de trabalho integra-se a esta nova escola?

--- É importante frisar, primeiro, que há uma diferença entre a organização do currículo por projetos de trabalho, com sua perspectiva educativa, e o que se chegou a chamar de pedagogia de projetos. Esta última é uma proposta dos anos 20, que se deu nos Estados Unidos, quando se desejou criar uma escola democrática em que se abordasse aquilo de que se tratava na realidade, e que envolveu muitos educadores inovadores da época. Essa pedagogia de projetos e a aproximação da escola com o que acontece fora dela é uma idéia poderosa, mas o contexto histórico, social, de mudança, nos anos 20, nada tem a ver com o que sabemos hoje sobre o ensino e a aprendizagem. O ponto comum entre pedagogia de projetos e a organização do currículo por projetos é considerar o que acontece fora da escola. E só.

--- Como se realiza este trabalho por projetos, então?

--- Os projetos, em primeiro lugar, valorizam o trabalho do docente, convertem o docente em um pesquisador do próprio trabalho, em alguém que trabalha sobre o emergente, que dialoga com o aluno e o torna uma pessoa curiosa. Trabalhar a partir de projetos pressupõe não se verem meninos e meninas só como alunos, como aprendizes, mas como sujeitos, levando em conta suas histórias, suas biografias, suas preocupações. Introduz-se a pesquisa em sala de aula. Os alunos aprendem a pesquisar e a utilizar esta prática no futuro, autonomamente, em outros momentos de suas vidas. Enfim, redefine-se o papel dos conteúdos, das disciplinas, da organização do tempo e do espaço.

--- Um novo perfil para a escola...

--- Sim. Trabalha-se a partir de estratégias de reflexão e considera-se que aprender não é só uma questão cognitiva, mas uma questão emocional. O trabalho por projetos envolve tudo isso. Não se trata de organizar aquilo que se ensina na escola a partir de projetos, mas que se aborde como projeto tudo o que se trabalha na escola, desenvolvendo-se uma maneira se repensar, de se refletir sobre a situação dessa escola, hoje, que, ainda está com uma estrutura do começo do século e que não se adapta às mudanças sociais, culturais e às mudanças dos sujeitos e do conhecimento que se está produzindo na sociedade da informação.

--- A que o senhor atribui a estagnação da escola? Por que a escola não acompanhou essas mudanças sociais que o senhor descreveu?

--- Hoje, a escola tem um desafio: educar todas as crianças. Há 20 anos, havia a escola para a elite e uma escola popular, que buscava direcionar o aluno para o mundo do trabalho. Hoje, as escolas, nos países do primeiro mundo, inclusive, tentam articular o mesmo corpo de ensino e aprendizagem para todas as crianças e jovens, até os 16, 18 anos. E a tradicional função da escola, que era a de contribuir para reproduzir as relações sociais começou a ter que se modificar. Acontece que, ao mesmo tempo em que essas mudanças vão se processando, os professores vão se desprofissionalizando.

--- Por quê?

--- Cada vez menos, os professores tomam as decisões sobre suas práticas. Em alguns documentos produzidos pelo Ministério da Educação, em Brasília, como o que foi publicado sobre a formação do professor do Ensino Básico, em maio (Diretrizes Curriculares Nacionais), o perfil proposto é o de um professor técnico, quando ele, hoje, precisa relacionar-se com uma nova realidade, com uma infância que mudou seu conceito e que não se encaixa mais no que dizem os livros de Psicologia do Desenvolvimento, quando os conhecimentos que se produzem fora da escola deixam completamente obsoletos os conteúdos que se ensinam nesta escola, que trabalha sobre o existente e não, ainda, sobre o emergente.


--- De que forma essas demandas levam à opção pelos projetos de trabalho?

--- No início dos anos 70, conheci, na Inglaterra, os efeitos de um trabalho desenvolvido nas escolas, sob uma proposta de currículo que não se organizava por disciplinas, mas por temas emergentes. E os jovens viam-se envolvidos por esses temas, que davam sentido a seu mundo. Estudantes de classes populares, operárias, chegaram à universidade. O trabalho potencializava muito a autonomia das escolas. Interessei-me muito por essa possibilidade de recuperar o debate político dentro da escola, em vez de uma relação que passasse só por processos cognitivos, por competências, pela psicologização da educação. A escola é um espaço político, porque é o caminho para a inserção social do indivíduo. Voltei a Barcelona e conheci quatro professores de terceira e quarta séries, que estavam discutindo a possibilidade de ensinar as crianças a globalizar, isto é, encontrar pontos em comum entre as disciplinas, queriam criar uma alternativa para o fechamento que representava o ensino disciplinar. Trabalhei com eles durante cinco anos e o resultado da experiência está no livro A organização do currículo por projetos de trabalho, traduzido no Brasil.

--- Em vez de abrir as portas, o trabalho por projetos não leva ao risco de restringir a atuação de professores e alunos, ao se tentarem ’encaixar’ as disciplinas no tema definido?

--- Há toda uma visão didatista, que acaba levando à idéia de que o trabalho por projetos é uma metodologia. Quando nosso livro foi divulgado, muitos leitores, justamente, pela inércia didatista, não utilizaram a perspectiva aberta criadora e criativa que havia no trabalho por projetos e o transformaram em uma técnica. Por isso, quando morei no Brasil, em 1997, decidi escrever um segundo livro só para os brasileiros que recuperasse toda a noção de transgressão e mudança (Transgressão e Mudança em Educação), vinculada aos projetos. O livro só existe em português. Procuro passar nas palestras que realizo a visão educativa do trabalho por projetos e não como fazê-lo em sala de aula.

--- Como se elege o problema que norteará o trabalho? Vem do professor, vem do aluno a sugestão? Trabalha-se com vários temas ao mesmo tempo, a fim de que se contemplem várias disciplinas?

--- É importante diferenciarmos o tema de um trabalho e o problema que gerou este tema, que é o que nos interessa. Posso trabalhar com um tema, por exemplo, os terremotos, mas abordando o problema da relação da terra com os fenômenos da natureza, dando ao aluno uma noção de sistema. Esses projetos podem ser definidos pelos alunos, pelos professores e, em algumas escolas, pelos pais e mães também. Essas propostas são recebidas e, a partir delas, articula-se o currículo para um semestre ou um trimestre. E os projetos prevêem que se pode trabalhar com alunos de várias séries ao mesmo tempo, juntos, para se responder à questão inicial que suscitou esse projeto.

--- É uma desconstrução mesmo da escola...

--- Já há países em que o professor não é mais especialista em uma única disciplina, mas em pelo menos duas. Hoje, trabalha-se com a idéia de que o professor tem como projeto educar e não defender o espaço de sua disciplina, o que visa muito mais a se manter um status quo e uma imobilidade contra a mudança.

--- Professores e escola têm preparo suficiente para fazer um trabalho como esse sem cair no uso de métodos e no ’didatismo’?
--- A tradição da escola é a de considerar o docente como uma pessoa que faz, mas não como uma pessoa que pensa sobre o que faz; o docente seria aquele que leva para a prática aquilo que outros, fora da escola, pensaram. É preciso começar a quebrar esse discurso histórico. O problema não é de o professor não estar bem-formado, mas de não se sentir seguro para fazer mudanças, porque não tem poder para decidir. É preciso uma formação que, em vez de dizer ao professor o que fazer, o acompanhe em seu trabalho. É preciso que a escola tenha um espaço de debate, de parceria, de reflexão, durante o horário de trabalho do professor.

--- Como se articulam o trabalho por projetos e a necessidade de se abordarem as diferentes disciplinas curriculares ao longo do ano letivo?

--- Hoje, nas escolas, trabalha-se com, no máximo, dez disciplinas, ou melhor, matérias escolares. E não sabemos por que devem ser estas as escolhidas, sempre. Primeiro, há uma diferença grande entre matérias e disciplinas. Disciplina é o que os especialistas, fora da escola, estão pesquisando, nos laboratórios, nas universidades. A escola, depois, toma esse trabalho e o traduz em matérias escolares. E há, ainda, os saberes, que não são nem matérias, nem disciplinas. São, primeiro, necessários para a vida e, depois, alguns vão se tornar disciplinas, ou seja, vão se transformar em saberes disciplinados. Há o saber sobre o campo, por exemplo, que, depois, pode ser disciplinado pela Agronomia; há saberes importantes que não estão convertidos em disciplinas, como o saber de uma pessoa sobre si, sobre seu equilíbrio emocional. Na escola, há uma perda de escolarização.

--- Como essa perda se expressa?

--- Hoje, há entre 25 mil e 30 mil campos de pesquisa e, na escola, ensinam-se dez. Por quê? Não seria importante ensinar-se Antropologia, quando necessitamos refletir sobre a diversidade do ser humano? Ou abordar questões relativas à Bioética ou, ainda, à Economia? Por que aquelas dez disciplinas, e não as que, hoje, nos ajudam a responder sobre a realidade? Hoje, 50% dos conhecimentos de que uma criança que está fazendo a primeira série necessitará para compreender o mundo daqui a dez anos ainda não foram produzidos. Como se prepara a criança para algo que não sabemos o que será?


(Fonte: JB )

Um comentário:

  1. Sonia Maria Costa Mendes deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Entrevista com Fernando Hernandez: Currículo por P...":

    Muito bom!

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