segunda-feira, 24 de junho de 2013

A encruzilhada do transporte

Grandes distâncias, falta de segurança e má qualidade das estradas são desafios para os gestores

Fonte: Revista Escola Pública


Seja de ônibus, van, metrô, trem, barco ou até bicicleta, todo estudante da Educação Básica que mora em área rural ou distante de sua escola tem direito ao transporte gratuito e de qualidade. Porém, o número de alunos que utilizam transporte escolar corresponde a pouco mais de 17% do total de matriculados. Além disso, 66% dos veículos utilizados para o transporte escolar em área rural comprometem a segurança e a qualidade do serviço oferecido, segundo pesquisa do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em parceria com a Universidade de Brasília (UnB). O resultado é que acidentes com alunos, muitas vezes fatais, conti­nuam a ocorrer. Para piorar, as grandes distâncias das áreas rurais e a má qualidade das estradas aumentam os custos, que recaem, em grande parte, sobre os municípios. O resultado é que o caminhão ''''pau de arara'''' e as longas horas de viagem ainda fazem parte do cotidiano escolar de muitas crianças nos tortuosos caminhos que as levam até as escolas brasileiras.

De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica 2012, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC), 8,68 milhões de alunos utilizam transporte público escolar para chegar aonde estudam. Isso representa 17,2% do total de 50,54 milhões de alunos matriculados. A grande maioria - 5,76 milhões de estudantes - é transportada de ônibus.

Desde 2005, o FNDE e a UnB vêm fazendo em todo o país a pesquisa

Transporte Escolar Rural, que avalia a qualidade do transporte escolar e levanta seus principais problemas. "Hoje, o que mais há são veículos inadequados para o transporte dos alunos", conta Willer Carvalho, engenheiro que coordenou a pesquisa. Segundo ele, é comum a falta de cintos de segurança, o uso de caminhões adaptados e de veículos muito velhos. Os dados da pesquisa mostram que 70% da frota que atende os alunos em todo o país têm entre 10 e 20 anos. Alguns veículos encontrados chegavam a acumular 70 anos de prestação de serviço à comunidade.

O resultado do descuido: acidentes. Não há estatísticas oficiais que reúnam os desastres ocorridos com estudantes no transporte escolar, mas não faltam notícias publicadas sobre o problema. Em fevereiro deste ano, por exemplo, dois acidentes envolvendo veículos de transporte escolar ocorreram em Manaus (AM) em menos de 24 horas. Em um deles, um ônibus caiu de uma ribanceira após tentar passar de uma via não asfaltada para outra pavimentada e deslizar de ré. Quinze pessoas ficaram feridas. O secretário de Educação chegou a ir ao local e admitir que o veículo não era adequado para o serviço. Em outro acidente, ocorrido em agosto do ano passado, uma menina de 16 anos morreu após cair do transporte escolar e ser atropelada. O caso ocorreu em Viçosa do Ceará (CE). Ela estava em um veículo particular, que prestava serviço à prefeitura e transitava com a porta aberta. Em setembro de 2011, a vítima foi um menino de 12 anos, que morreu em Boa Viagem (CE). Ele caiu de um caminhão do tipo ''''pau de arara'''', que era utilizado como transporte escolar, porque a grade que servia de proteção aos passageiros na carroceria se soltou. O aluno foi lançado para fora do veículo e teve traumatismo craniano.

Regras de segurança

Nenhum desses acidentes teria ocorrido caso a lei fosse obedecida. Fabíula de Paula Secchin, promotora de Justiça dirigente do Centro de Apoio da Educação do Ministério Público do Estado do Espírito Santo, explica que o transporte escolar está regulamentado e tem regramento. "A maioria está no Código de Trânsito Brasileiro. Não se admite, por exemplo, transporte escolar com moto, carro de passeio e caminhões. Excepcionalmente, autoriza-se o uso de caminhonetes em estradas de difícil acesso, mas adaptadas ao transporte de alunos", diz a promotora.

Entre as medidas de segurança exigidas no transporte escolar estão a presença de cintos de segurança em número igual à lotação do veículo, a existência de tacógrafo e a realização de inspeções semestrais para verificação dos equipamentos obrigatórios e de segurança, além das vistorias normais exigidas pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran) para qualquer veículo. E, claro, o número de crianças transportadas não pode ser maior do que o número de assentos. Além disso, o motorista deve ter mais de 21 anos e estar habilitado a dirigir veículos de transporte de passageiros, categoria D. "O MEC sugere que os veículos não tenham mais de sete anos de uso, mas essa é só uma recomendação", explica Fabíula.

A presença de monitores para acompanhar os alunos nos veículos não está disposta na legislação de âmbito nacional, mas órgãos estaduais podem disciplinar o assunto. "O Detran do Espírito Santo estabelece ser obrigatória a presença de monitor no transporte de alunos do 1º ao 6º ano do ensino fundamental", conta a promotora.

No caso do transporte fluvial ou marítimo, as embarcações devem ser equipadas com coletes salva-vidas na mesma proporção de sua capacidade, possuir registro na Capitania dos Portos e manter a autorização para trafegar em local visível. Recomenda-se, ainda, que a embarcação possua cobertura para proteção contra o sol e a chuva; grades laterais para proteção contra quedas; boa qualidade e bom estado de conservação.
Quem pilota essas embarcações precisa estar habilitado na Capitania dos Portos, ter sido submetido a exame psicotécnico com aprovação especial para transporte de alunos, ter curso de formação de condutor de transporte escolar, possuir matrícula específica no Detran ou Capitania dos Portos e não ter cometido falta grave ou gravíssima nos últimos 12 meses.

Municípios em foco

Quem oferece o transporte escolar deve estar atento a todos os itens mencionados acima. E, de acordo com a lei, União, estados e municípios são responsáveis por transportar os alunos de suas redes (veja quadro). No entanto, em geral são as redes municipais que acabam assumindo o transporte de todos os alunos,
independentemente da rede a que eles pertençam. "Como o poder municipal está mais próximo do cidadão, o prefeito é pressionado a fornecer o transporte escolar e o município acaba levando também os alunos da rede estadual, sem receber uma contrapartida adequada do estado, que sofre menos pressão", diz Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Os estados podem se articular com os municípios, mediante convênios, para que o transporte seja unificado e fique a cargo do município. Em contrapartida, as redes estaduais transfeririam os recursos necessários para arcar com as despesas de seus alunos. O modelo traz benefícios, como o compartilhamento de rotas e licitações únicas para a contratação de frotas terceirizadas. Mas Cleuza Repulho, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), explica que é comum que as despesas fiquem todas com os municípios. "É um regime de colaboração que não funciona, porque em alguns lugares não há repasses de verbas. E como a pressão fica toda em cima do prefeito, que está mais próximo, ele acaba cedendo. Há localidades em que o ensino médio, estadual, só é oferecido em outra cidade e, ainda assim, é o município quem leva e paga todas as despesas", conta.

Segundo ela, o mais comum é que os estados só repassem aos municípios os recursos recebidos do Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar (Pnate), que é do governo federal e destina recursos para o transporte dos alunos da zona rural. Para Cleuza, essa verba não é suficiente para custear o transporte.

Em Mogi das Cruzes (SP) não é. O município tem uma previsão de custeio do transporte escolar em 2013 de R$ 10,078 milhões, dos quais R$ 581 mil serão custeados pelo Pnate, o que representa apenas 5,77% das despesas totais. Na rede, o transporte de alunos do estado não pesa tanto no orçamento, pois do total de 9.675 estudantes da Educação Básica transportados, apenas 527 são da rede estadual.

Já Castro, no Paraná, transporta diariamente 4.167 alunos, sendo 2.403 da rede estadual. Em 2012, o município teve um gasto aproximado de R$ 5 milhões, e somente 28% desse valor veio de repasse estadual e federal, o restante foi pago com recursos do próprio município. Em 2013, a previsão de custo é de R$ 5,61 milhões, o que corresponde a um gasto diário com transporte escolar de R$ 29.335,71 - cada aluno vai custar, por ano, aproximadamente R$ 1.346,29. Além disso, o município também realiza o transporte dos professores da rede estadual e municipal lotados nos estabelecimentos de ensino da zona rural, o que representa um gasto anual de cerca de R$ 280 mil, pago com recursos do município, segundo informa a prefeitura de Castro.

Ajuda federal

O governo federal, por meio do FNDE, mantém dois programas destinados ao transporte escolar: o Pnate e o Caminho da Escola. O primeiro consiste em recursos pagos aos estados e municípios para que custeiem despesas diversas, como consertos mecânicos, compra de combustível ou terceirização do serviço de transporte escolar. A transferência de recursos é realizada de forma automática a partir da informação, no Censo Escolar, da existência de alunos da zona rural que utilizem transporte escolar. Já o Caminho da Escola foi criado em 2007 com o objetivo de renovar a frota de veículos escolares. Estados e municípios podem adquirir ônibus, embarcações e mesmo bicicletas com recursos próprios, via convênio firmado com o FNDE ou por meio de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Também é voltado, prioritariamente, para o transporte escolar em áreas rurais.

Para Daniel Cara, a ajuda federal destinada ao transporte escolar não é satisfatória. "Apenas dois programas não são suficientes. Basta observar a quantidade de acidentes que ocorrem no país. O estado transfere muita responsabilidade aos municípios sem uma contrapartida justa", diz.

Florânia, município de 9.600 habitantes no interior do Rio Grande do Norte, possui apenas 4 ônibus escolares para transportar seus alunos, quando seriam necessários mais 15 veículos. A secretária de Educação, Julineide Medeiros, explica que os recursos do FNDE não são suficientes. Além disso, os custos da gasolina e da manutenção na região são altos. A solução encontrada para permitir que os alunos cheguem até as escolas é a contratação de empresas que fazem o transporte das crianças em caminhões ''''paus de arara''''. "É vergonhoso, mas é o que nossa realidade nos permite no momento. Estamos tentando acabar com isso e nos adequar, mas faltam recursos. O índice de faltas nas escolas onde o transporte escolar é regularizado e adequado é inferior àquele em que o transporte é inadequado, estamos cientes de que isso prejudica o aluno. É uma área que precisa de mais investimentos", ressalta.

Cidades

O transporte de alunos em áreas urbanas costuma ser menos requisitado, apesar de também ser um direito. Como nas cidades, em geral, há vasta oferta de transporte público, com linhas regulares de ônibus, trens e metrô, oferecer passe estudantil é uma opção para garantir o transporte dos alunos. Há municípios que arcam com todo o valor do passe, e o aluno não paga nada pelo transporte. Em outros, o passe é vendido aos estudantes por um preço inferior ao da passagem.

Fabíula lembra que não há uma lei que regule o fornecimento de passes escolares: "é lógico que os estados e municípios podem oferecer essa alternativa para alunos que têm condições de se transportar sozinhos. Mas o transporte deve ser gratuito para os alunos que moram a mais de 2 km da escola ou em áreas de difícil acesso. Nada justifica uma cobrança de 50% do valor da passagem, por exemplo", diz a promotora de Justiça.

Segundo Cleuza, que também é secretária de Educação de São Bernardo do Campo (SP), o principal problema enfrentado em áreas urbanas é o grande tráfego de veículos nas ruas. "É preciso pensar no trânsito e organizar os horários para que todos os alunos estejam na escola na hora certa", diz. Ela ainda aponta outras questões adversas. "Em São Bernardo temos as montanhas da Serra do Mar. Em linha reta, a criança estaria a 1,5 km da escola, mas é preciso dar uma volta enorme para cortar a montanha, aumentando bastante o trajeto a ser percorrido", explica.

Campo

Apesar de os alunos dos centros urbanos serem os que menos necessitam de transporte escolar, grande parte dos ônibus que circulam com esse fim são projetados para as ruas pavimentadas das cidades. A incompatibilidade desses veículos com estradas rurais é responsável por acidentes e transtornos, como a incapacidade de transitar em algumas estradas que só permitem o acesso de veículos menores e, muitas vezes, com tração 4 por 4.

Em Itaituba, no oeste do Pará, há diversos alunos na zona rural e as principais dificuldades vêm do trajeto a ser percorrido. "As escolas do campo são poucas e não comportam todos os alunos da região, que acabam sendo matriculados na zona urbana. Mas o transporte até lá é complicado. Apesar de termos uma frota grande de ônibus e barcos, em muitos lugares eles não conseguem passar", diz a secretária de Educação, Ana Paula da Silva Santos. Ela conta que há rios com muitas pedras ou cachoeiras, onde é impossível transitar com o barco de transporte do FNDE, e algumas das estradas de terra são muito estreitas para os ônibus. "Infelizmente, temos de apelar para a contratação de caminhonetes que não oferecem toda a estrutura de segurança necessária. Nos rios pedregosos, o transporte é feito com as ''''bajaras'''' ou ''''rabetes'''', que são canoas motorizadas. Não é adequado, mas o aluno precisa chegar à escola."
Na busca por padrões mais adequados, a partir dos resultados da pesquisa Transporte Rural no Brasil, o FNDE, a UnB e a Marinha projetaram novos modelos de ônibus e embarcações, adaptados às necessidades das áreas rurais.

"É um grande problema, as estradas deveriam ser reparadas, mas é descaso em cima de descaso: da má qualidade do veí­culo e da estrada à pouca oferta de educação infantil e ensino médio nessas re­giões. Sem falar no fechamento de escolas no campo e, com isso, a necessidade de a criança percorrer grandes distâncias para estudar", diz Cara. Essa tendência à nu­cleação das escolas rurais, com a transferência de seus alunos para unidades maiores, porém mais afastadas, tem crescido muito no país.

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