terça-feira, 25 de junho de 2013

O difícil retorno ao estudo

Reportagem // KAREN VISCARDI

Menos alunos matriculados, falta de uma pedagogia específica e preparo deficiente dos educadores são alguns dos problemas enfrentados pela educação de jovens e adultos.

O número de alunos matriculados na educação de jovens e adultos (EJA) tem sido cada vez menor no Brasil. Em 2011, de acordo com os dados mais recentes computados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a redução foi de 6% em relação ao ano anterior, totalizando 3.980.203 matrículas. Desse total, 2.657.781 (67%) estão no ensino fundamental e 1.322.422 (33%) no ensino médio. “Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)/IBGE 2009, o Brasil tem uma população de 57,7 milhões de pessoas com mais de 18 anos que não frequentam a escola e não têm o ensino fundamental completo. Esse contingente poderia ser considerado uma parcela da população a ser atendida pela EJA”, diz a análise publicada no resumo técnico do Censo Escolar da Educação Básica 2011.

O texto também afirma que “os números são contundentes, ou seja, o atendimento de EJA é muito aquém do que poderia ser. Essa questão precisa ser melhor analisada, e os dados do Censo Escolar podem contribuir para o diagnóstico e a proposição de políticas de ampliação da oferta dessa modalidade de ensino”. A oferta de EJA, conforme o censo, segue a mesma distribuição do ensino regular, ou seja, a rede municipal é predominante no ensino fundamental e a rede estadual no ensino médio.

Na avaliação de alguns especialistas, a análise da EJA envolve certos paradoxos. Em geral, a abordagem de conteúdos é massificada, não atendendo adequadamente a públicos heterogêneos. Os professores não têm formação específica, e os próprios jovens e adultos que voltam a estudar reproduzem um pensamento corrente na sociedade: o de que a educação deles é uma “oportunidade”. Paralelamente, desde 2006, a EJA foi contemplada com a implantação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e com um conjunto de medidas para inseri-la no sistema de educação básica.

Essas condições deveriam ampliar a modalidade. Porém, como se percebe pelos dados do Censo Escolar, ocorre o contrário. “Antes, a ausência de financiamento era o problema. O que ocorre agora? Falta prestígio para a modalidade e há uma visão limitada em relação à cultura do direito à educação”, acredita a professora Maria Clara Di Pierro, da USP, pesquisadora na área. “Há uma visão corrente de que o adulto não tem direito à educação”, aponta. A professora Jane Paiva, da Faculdade de Educação da UERJ, concorda: “É preciso olhar a educação como um direito. Educação não é privilégio, mas sim direito instituído na Constituição de 1988”.

Maria Clara destaca que, nos municípios, o desafio é ampliar a educação infantil e implantar o turno integral, mas não parece haver preocupação com a educação de adultos. “Em vez de um mecanismo de democratização, de resgate de um direito, a EJA transformou-se em um mecanismo de correção de fluxo”, considera. Assim, quando os alunos completam a idade mínima, são encaminhados para essa modalidade. Desde 2011, a idade mínima para os cursos de EJA deve ser de 15 anos completos para o ensino fundamental e de 18 anos completos para o ensino médio.

De fato, segundo a própria análise do Inep, “o Censo Escolar 2011 mostra que os alunos que frequentam os anos iniciais do ensino fundamental da EJA têm idade muito superior aos que frequentam os anos finais e o ensino médio dessa modalidade”. Tal fato sugere que os anos iniciais não estão produzindo demanda para os anos finais do ensino fundamental de EJA. Considerando a idade dos alunos nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio de EJA, “há fortes evidências de que essa modalidade está recebendo alunos provenientes do ensino regular”.

Em relação à prática pedagógica, o modelo escolar da EJA ainda é fortemente pautado pela educação escolar de crianças e adolescentes. “A pergunta que deveria ser feita é o que o jovem e o adulto já sabem para melhorar o futuro, mas a pergunta que se faz é o que o jovem ou adulto deixou de aprender quando estava na escola regular”, alerta Maria Clara. Por esse motivo, segundo ela, a EJA não responde aos anseios de jovens e adultos, dificultando sua presença nas salas de aula.

Para a pedagoga Karine Santos, da rede municipal de ensino de São Leopoldo (RS), o currículo da EJA deixa a desejar especialmente no contexto das exigências do mundo cotidiano do educando. Temas como saberes populares, relação com o mundo do trabalho, alternativas solidárias de sobrevivência e participação social muitas vezes ficam de fora dos currículos. “No contexto da EJA, esses temas fazem toda a diferença, pois passa por eles a possibilidade de integração entre o mundo da vida e mundo da escola”, explica a pedagogoa. E acrescenta: “O saber escolar ganha novo sentido, superando a fragmentação curricular típica do ensino regular, e o processo de aprendizagem torna-se significativo, o que contribui para a permanência do jovem e do adulto na escola”.

MAIOR INTERESSE
Quando a EJA é priorizada nas ações pedagógicas, com a adoção de uma política efetivamente voltada a jovens e adultos, valorizando e trazendo a realidade do aluno para a sala de aula, há mais interesse, o qual se reflete em maior conhecimento e assiduidade, reduzindo a evasão. Para isso, todo o sistema educacional — de professores e diretores a coordenadores e secretários — precisa estar engajado na busca de meios para melhorar a qualidade na educação.

É o que se vivencia na Escola Estadual de Ensino Médio Setembrina, de Viamão (RS). “Na época em que eu estava no ensino regular, era chato estudar, a escola não era atrativa. Agora, chamam o aluno para debater, há um diálogo entre alunos e professores. E, no momento em que é atrativo, se aprende e se trocam ideias”, resume a estudante Leda Patrícia Soares, de 35 anos, que cursa o ensino fundamental na EJA. “Aqui todos incentivam: professores, merendeiras, secretária, diretoria. Todos se mobilizam para trazer o aluno para a escola”, conta a aluna.

Na Escola Setembrina, o problema não é a falta de qualificação ou de apoio para oferecer uma educação de qualidade, afirma o diretor, Marco Sozo, já que no Estado do Rio Grande do Sul os professores de EJA dispõem de um terço de sua carga horária para formação continuada em serviço.

Se a valorização da opinião e da participação dos alunos na escola aumenta seu interesse, quando o ensino é aliado à cultura, esse interesse é ainda maior. No projeto Arte EJA, os alunos decidem o tipo de arte que querem abordar. Em 2012, eles montaram uma peça de teatro, e a temática foi o trabalho, também assunto das demais áreas de estudo.

A prática pedagógica dessa escola está alinhada à proposta da Secretaria de Estado da Educação do Estado do Rio Grande do Sul (Seduc/RS). “O objetivo é resgatar a experiência de vida dos sujeitos, dando a ela novo significado, a partir do conhecimento escolar/formal, buscando a construção de uma cidadania consciente e ativa, percebendo a escola como espaço de aprendizagem, transformação das relações sociais, superação de desigualdades e preconceitos”, afirma Vera Regina Ignácio Amaro, diretora pedagógica adjunta da Seduc/RS.

MUNDO DO TRABALHO
Trazer o trabalho para a sala de aula: com essa proposta, o programa EJA — Mundo do Trabalho, do governo do Estado de São Paulo, coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia (SDECT), está estabelecendo parcerias com as Secretarias Municipais de Educação, com conteúdos relacionados ao trabalho.

No Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) Rose Mary Frasson, da prefeitura de São Paulo, o programa veio complementar uma prática que já existia na instituição. “A escola sempre girou em torno do trabalho e da cultura”, afirma a diretora, Neide Zamboni. O CIEJA recebe material didático de apoio ao conteúdo que é abordado em sala de aula.

O CIEJA Rose Mary Frasson é uma escola exclusivamente dedicada à educação de jovens e adultos. Esse foco por parte do corpo docente, da equipe pedagógica e da direção é apontado pela professora Maria Clara Di Pierro, da USP, como determinante para o ensino. “As escolas exclusivas de EJA, que pensam um projeto de qualidade e com modelos mais flexíveis, têm mais chance de atender às necessidades desses alunos”, destaca.

Jonatas Henrique Luz Ludovico dos Santos, de 16 anos, decidiu inscrever-se no quarto módulo da EJA, referente a 7ª e 8ª séries, para não ficar para trás após ser reprovado na 7ª série do ensino fundamental regular. Para ele, as principais diferenças — e vantagens — da EJA para o ensino regular estão na relação entre os alunos: não há bullying e ocorre uma troca de aprendizado em função dos diversos perfis de alunos. “Os professores fazem com que até as matérias mais difíceis fiquem mais fáceis”, afirma Jonatas, destacando que, no ensino regular, os professores ensinam, escrevem no quadro e apagam. “Aqui, eles ensinam, escrevem no quadro e, se os alunos não entenderam, voltam a explicar”, afirma. A única ressalva é o horário reduzido: 2 horas e 15 minutos por dia. Porém, segundo a diretora, é esse período reduzido que possibilita o atendimento a quase 1.100 alunos, divididos em seis turnos.

Os materiais oferecidos pelo CIEJA incluem múltiplas mídias para uso em sala de aula e pelo professor, incluindo caderno do estudante, caderno do professor, vídeos e boletins com perfil socioeconômico da região em questão. Além de estabelecer um diálogo permanente com o tema, o programa inclui a disciplina trabalho na parte diversificada do currículo.

Assim como o trabalho, a cultura também é valorizada na instituição. No projeto Apoema (palavra indígena que significa “enxergar ao longe”), por meio de entrevistas com os alunos, é decidido um projeto norteador para o módulo. Na turma de Jonatas, o projeto escolhido foi o Olhares, já que se percebeu que muitos estudantes não conheciam a própria cidade onde moram, São Paulo. Esse tema norteou o trabalho em sala de aula, tendo sido organizadas visitas a espaços culturais e pontos turísticos da cidade, como o Museu da Língua Portuguesa, o Parque da Cantareira, a Torre do Banespa e o Memorial da América Latina. No final do ciclo, as turmas foram reunidas na festa de aniversário do CIEJA e apresentaram atrações culturais, como música, teatro e dança.

DESAFIO DA QUALIFICAÇÃO
Apesar de todos os esforços, muitas vezes a boa vontade de professores, diretores e equipe pedagógica da EJA esbarra na falta de qualificação docente. “A política avançou, mas por que mudamos tão pouco o quadro? Porque é um processo que implica não apenas educação continuada do professor, mas também do dirigente, do secretário de educação do estado ou município, do superintendente, do coordenador, até mesmo do diretor de escola, que é, em última instância, quem abre e fecha uma classe de EJA na escola”, considera a professora Jane Paiva, da Faculdade de Educação da UERJ.

Para Maria Clara Di Pierro, da USP, a formação de professores da EJA ocupa um lugar marginal nas políticas públicas. A prática predominante, segundo ela, é aproveitar o professor da educação infantil e improvisar na educação de adultos. “O professor de EJA é dedicado, porém é formado na prática, na chamada ‘pedagogia da fogueira’. O ideal é o profissional ter uma boa formação pedagógica específica para a EJA”, salienta.

Há uma necessidade de investimento constante na formação inicial e continuada de professores. “A qualidade não envolve somente a quantidade de horas de estudo ou a ampliação da quantidade de conteúdos ensinados, mas também fatores como a adequação das escolas e dos currículos a políticas intersetoriais que favoreçam a permanência dos alunos e a criação de modelos flexíveis”, explica Vera Regina Ignácio Amaro, diretora pedagógica adjunta da Seduc/RS. Segundo ela, tais medidas já estão sendo tomadas no Rio Grande do Sul. Maria Clara Di Pierro acrescenta: “A demanda por educação é cumulativa: quanto mais se estuda, mais se quer estudar”.

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