Entrevista publicada na edição nº 383, fevereiro de 2008.
Uma educação que promova a vida,
em tempos de crise
Marcos Sandrini, propõe a reflexão de que o mundo hoje está vivendo duas grandes crises: a crise ecológica e a crise social.
“A juventude tem consciência de que existem essas duas grandes crises. A juventude do meu tempo não tinha essa consciência. Hoje, eu acho que é possível nós fazermos uma caminhada muito melhor porque poucas são as pessoas alienadas que não percebem que há uma crise ecológica muito grande e uma crise social maior ainda. E as duas estão interligadas.”
Marcos Sandrini,
padre salesiano, educador, diretor das Faculdades Dom Bosco de Porto Alegre.
Endereço eletrônico: sandrini@dombosco.net
Mundo Jovem: Onde é que se originam estas crises?
Marcos Sandrini: O mundo levou bilhões de anos para chegar até onde estamos. Desde a explosão inicial até o nascimento da vida e da pessoa humana, o mundo levou bilhões de anos.
A casa do mundo foi feita para receber a nós, humanos. Estamos neste mundo e a maior contribuição que podemos dar é a consciência de que sabemos o que está acontecendo por aqui. Só que às vezes tomamos tanta consciência do que está acontecendo nesse mundo que queremos nos separar da casa, tomar conta deste mundo. Pensamos que, dominando este mundo, estaríamos criando algo melhor para nós. Então, junto com o desejo de criar um mundo melhor, veio também a sede de poder, a sede de dominação. E hoje nós estamos aí com essa crise social e ecológica.
Temos consciência de que, se não fizermos alguma coisa para mudar, se não nos educarmos para criar condições novas e diferentes, nós não vamos conseguir sair dessa situação, podendo chegar até um colapso geral.
Mundo Jovem: E como fica a educação, neste contexto?
Marcos Sandrini: A primeira coisa em educação que precisamos fazer é pensarmos que tudo está interligado. Tudo é uma coisa complexa, tudo está enredado. Se eu não cuido da natureza, se eu não cuido de uma vida, lá pra frente vamos ter problemas. Também, se no outro lado do mundo não cuidam do mundo, não cuidam das pessoas, nós vamos ter problemas do lado de cá. Então, esta rede vai avançando.
Hoje não é difícil falar nesse assunto, porque os jovens estão interligados. A própria palavra internet facilita a compreensão: net é rede, inter é uma rede entrelaçada. Nada que acontece no mundo está livre e independente.
E a grande tarefa da educação, sobretudo da escola, é esta: mostrar para as novas gerações que não há possibilidade de uma pessoa cuidar só de si. Se ela não cuida dos outros, se ela não se abre, não se cria um mundo diferente.
Uma família, por exemplo, que se fecha e não se preocupa com a que está do seu lado, ela não está cuidando nem de si, porque o seu filho vai estar interligado com o da outra família, e se os outros não cuidam de seus filhos, não adianta eu cuidar dos meus. É preciso que, juntos, todos cuidem de todos.
Mundo Jovem: Cuidar parece ser um verbo importante, hoje. Não é?
Marcos Sandrini: Uma das coisas mais bonitas que estão sendo descobertas neste tempo é a ética do cuidado. Tudo aquilo que é cuidado, dura mais. Se eu cuido da minha roupa, se eu cuido do meu livro, se eu cuido da minha casa, se eu cuido do jardim, se eu cuido do telefone que está na praça, se eu cuido do ônibus, do serviço de transporte público, tudo isto vai criando um mundo mais bonito para todos. Agora, quando a gente não cuida disso tudo, quando nós não temos a ética do cuidado, as coisas vão se deteriorando.
Assim é na vida da gente também. Se eu não cuido bem da minha vida, eu não estou cuidando bem da vida do outro. E se eu não cuido bem da vida do outro, também não estou cuidando da minha vida. Acho que é importante a criarmos uma reflexão nova, uma educação nova: cuidar-se.
Na época de Jesus, a idade média das pessoas era 29 anos. Vivia-se muito pouco. Hoje, a idade média é 72, 73 anos. As pessoas vivem muito. Os jovens de hoje certamente não vão morrer antes dos 90 anos. Então, se eu não cuidar hoje do mundo, se eu não cuidar hoje de mim, nem das pessoas que estão envolvidas comigo, se eu não cuidar das plantas, dos animais... mais pra frente eu vou ser muito prejudicado. Eu acho que até é um sadio egoísmo nós cuidarmos da vida. Porque cuidando da vida dos outros, estamos cuidando da nossa própria, estamos projetando um futuro melhor para todos.
Mundo Jovem: Isso exige uma educação com mais diálogo?
Marcos Sandrini: Por causa da internet e da informática, estamos tirando das escolas uma coisa que sempre foi dela: passar conteúdos. Com o tempo, os conteúdos não precisarão mais ser repassados na sala de aula. Mas existem algumas coisas com que a escola e a educação têm de se preocupar. Os relacionamentos das pessoas são um bom exemplo disso.
Trazemos experiências que temos fora da escola. Dentro de uma sala de aula com 10, 20, 30 pessoas (às vezes da mesma idade ou de idades diferentes), discutimos tudo isto e vemos que não existe uma única maneira de pensar e de se relacionar com Deus. Não existe uma única filosofia, religião, ética ou moral. Mas colocando tudo em comum, percebemos que um não pode sobrepujar o outro. Entendemos que se não somos capazes de renunciar a alguma coisa e aceitar o que o outro diz, se não formos capazes de também dizer algumas coisas para os outros, numa atitude de diálogo, não criaremos um mundo habitável. E a grande tarefa da educação é justamente essa: criar um mundo habitável.
Antigamente nós tínhamos uma idéia única, um pensamento único, uma maneira de ser única. Hoje, já não é mais assim. Temos muitas formas de pensar e até de aprender. Um aprende de um jeito, o outro aprende de outro. Um gosta mais de aprender durante o dia, o outro gosta mais de aprender à noite. Um aprende mais com o ouvido, o outro aprende mais com os olhos. Então, são todas maneiras de nós vermos que as pessoas são diferentes. Porém se não nos colocarmos todos juntos, se não partilharmos tudo isto, nós não teremos um mundo habitável, nem teremos um mundo bom para ninguém.
Mundo Jovem: Como a escola pode educar para a vida?
Marcos Sandrini: A grande finalidade da educação é gerar uma vida concreta. Quando vejo uma pessoa que está ao meu lado e é de uma etnia diferente, de uma religião diferente, de um sexo diferente, de uma maneira diferente de pensar, eu vou dizer assim: esta vida precisa ser zelada por mim. E o outro vai me olhar desse jeito também.
Não podemos olhar o outro só numa dimensão de dominação. Se não dermos oportunidade para todos, isso vai se voltar contra nós. Por exemplo, não podemos mais continuar com essa idéia de que a educação é só para alguns: ou a educação é para todos, ou então nunca teremos paz juntos. Não podemos pensar também que os bens que existem no mundo são apenas para alguns. Enquanto não lutarmos para que os bens que existem no mundo sejam para todos, nós não teremos paz. As nossas cidades estão aumentando as grades: há sistemas de alarmes, vigilância e, em algumas cidades, gasta-se até 70% em segurança. Não adianta. Se não mudarmos a nossa mentalidade, se não educarmos de uma forma diferente. Isso não tem sentido. A vida existe para ser uma promoção da outra vida, não para ser uma ameaça.
Mundo Jovem: O que, hoje, atrapalha a vida?
Marcos Sandrini: A grande questão é que um grupo de pessoas junta o seu poder, o que tem e o que sabe, não para benefício de todas as vidas e de toda vida, mas para proteger algumas vidas, não se incomodando com o resto. Temos uma cultura de dominação. Eu penso que um dos grandes problemas do mundo, nessa cultura de dominação, sobretudo de dominação da natureza, é a questão do consumismo. Estamos de alto a baixo levados a viver esse consumismo. Não só os jovens são consumistas, mas é todo mundo.
Além de problemas sociais, isso gera também problemas ecológicos. Porque temos duas saídas para esta perspectiva. Primeiro: quem consome menos, deveria consumir mais. Mas, ecologicamente, isso é insustentável. Segundo: quem consome mais, deveria consumir menos. E isso, na atual mentalidade, é quase impossível.
Eu falei que é quase impossível porque acredito que a juventude, sobretudo as novas gerações, tendo a consciência de que estamos vivendo uma crise social e ecológica, tem também a capacidade de ter um relacionamento diferente com a natureza. E me parece que são esses valores novos, é essa mentalidade nova que a educação precisa trabalhar com a juventude.
Os bens da natureza não existem só para serem usufruídos, nem só para serem dominados. As coisas e as pessoas que existem no mundo devem viver em harmonia. O consumismo exagerado gera desarmonia.
Mundo Jovem: Podemos ter esperança?
Marcos Sandrini: Sim. O livro bíblico do Deuteronômio diz assim: “escolhe a vida e viverás”. A vida solta não existe. Existe uma vida concreta. Existe a minha vida, a vida da minha família, a vida dos meus amigos, a vida das pessoas que eu quero bem. Mas existe também a vida dos brasileiros, existe a vida das pessoas que estão no mundo inteiro e toda essa vida está enredada.
Se a vida está ameaçada, por outro lado também existem pessoas que fizeram da sua existência um grande hino de amor à vida. Na defesa da vida de todas as pessoas, não só da própria. Eu acho que essa é a grande tarefa da educação no mundo de hoje.
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Vida, um presente
a ser preservado
A vida, em todas as suas formas e dimensões, está ameaçada. Nas relações interpessoais e sociais, a vida é ameaçada pela violência. No Brasil, a morte por armas e violência no trânsito é uma realidade gritante. Os agrotóxicos, a precariedade da educação e da saúde pública, a Aids, a fome, entre outras, são ameças que impedem a vida em plenitude.
Para o teólogo Leonardo Boff, “o ser mais ameaçado é o ser humano, porque ele é condenado a morrer antes do tempo. Por isso, mais da metade da humanidade sofre todo o tipo de carência e faz com que ele destrua o seu futuro e a sua esperança”.
Por outro lado, sabemos que a vida é um presente de Deus. Para Boff, “a vida é o maior dom do universo e devemos preservá-la, porque ela representa a ponta mais avançada de tudo aquilo que evoluiu até hoje e de tudo o que Deus criou”.
Mas sempre é necessário escolher entre a vida e a morte, entre a criação e a destruição. A Campanha da Fraternidade tem como lema “Escolhe, pois, a vida” (Dt 30,19). Hoje, escolher a vida é andar na contramão, é valorizar a pessoa e sua dignidade e não as ilusões de consumo. Para isso é preciso agir, defender a vida dos excluídos, das crianças e adolescentes e dos jovens sem perspectivas.
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Na série Juventude, procuraremos olhar para a vida dos jovens brasileiros que está ameaçada, especialmente, pela falta de horizontes. É a raiz de uma vida sem sentido, na qual a vulnerabilidade ganha terreno e a violência teima em vencer. Esta realidade alerta para o fato de que são urgentes respostas e políticas públicas voltadas para a defesa e promoção da vida dos jovens brasileiros
Equipe Mundo Jovem
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