domingo, 15 de maio de 2011

Entrevista

Entrevista publicada na edição nº 415, abril de 2011.

Aprender com um outro modo de ser

jornal mundo jovem

Este é um mundo de diferentes e é importante compreender e respeitar as pessoas, os grupos e os povos que são diferentes de nós. É o que afirma Roberto Antonio Liebgott: “Os brasileiros não são iguais aos japoneses, aos chineses ou aos alemães. No Brasil temos povos Kaingang, Ticuna, Mayoruna, Kaiowá, Xokleng... que têm direito de serem eles mesmos. Cada povo vai construindo o seu modo de ser, e o Estado tem que assegurar para os indígenas o seu espaço”.
Roberto Antonio Liebgott,
vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Endereço eletrônico: cimisul-equipe-poa@uol.com.br

Mundo Jovem: Como está a realidade indígena brasileira?
Roberto Antonio Liebgott: No Brasil, conforme dados divulgados pela Funai, há pelo menos 242 povos diferentes. Existem 70 grupos de povos ainda em situação de isolamento e risco, que não estabeleceram nenhum tipo de contato com a sociedade. Temos também povos que mantêm suas tradições, embora estejam em contato permanente com a sociedade. Existem alguns grupos, principalmente na região Nordeste e alguns no Sudeste, que passaram a reivindicar a sua identidade étnica nos últimos 30, 40 anos. São os grupos ressurgidos ou resistentes. São aqueles grupos que se autoafirmam como indígenas e lutam por seus direitos, mas antes viviam em comunidades, em núcleos e não se afirmavam como indígenas.

Há uma diversidade étnica extraordinária, importante, riquíssima, mas numericamente são grupos bem reduzidos. Temos povos com 70 pessoas, com 300 pessoas. Existem grupos em situação de isolamento e risco, principalmente em Rondônia, no Acre e no Pará, que correm risco de extermínio pelo avanço das grandes fazendas, das grandes plantações de soja. São grupos que viviam isolados e que fogem o tempo inteiro desse avanço capitalista sobre eles. E temos povos, como os Guarani-Kaiowá, que são 40 mil pessoas; os Ticuna, no Amazonas, que são mais de 60 mil pessoas.

Mundo Jovem: Há quantos indígenas no Brasil?
Roberto Antonio Liebgott: Pelo censo de 2000, eram 736 mil indígenas no país. Agora estamos na expectativa dos dados do censo recentemente concluído, que incluiu questões específicas para este levantamento populacional indígena, inclusive dos que vivem nas aldeias e nas cidades.

A população indígena está aumentando consideravelmente. Nos anos 1970, havia um programa do governo brasileiro para a integração dos índios paulatinamente à sociedade brasileira.

Esse plano estabelecia o fim dos índios no Brasil pela integração. Naquela época eram em torno de 150 a 200 mil indígenas identificados. Em 1990 já se calculava em torno de 500 mil indígenas. E hoje se estima em mais de um milhão de indígenas no Brasil.

Mundo Jovem: E quanto às terras indígenas?
Roberto Antonio Liebgott: Pelos dados do CIMI, hoje, são pelo menos 988 terras indígenas. E dessas, 323 estão regularizadas, ou seja, demarcadas para usufruto exclusivo dos índios. As terras restantes aguardam os procedimentos de demarcação a serem concluídos ou iniciados. São em torno de 170 áreas que precisam iniciar os estudos para a demarcação.

A nossa Constituição estabelece que os índios têm direito de se organizarem de acordo com suas culturas, seus costumes, suas crenças e tradições. E dá a eles também o direito ao exercício de sua cidadania política dentro da sua própria cultura.

Mundo Jovem: Que paralelo podemos traçar entre a cultura indígena e a branca, ocidental?
Roberto Antonio Liebgott: Cada povo é um mundo cultural próprio: sua língua, suas crenças, suas tradições, leis internas, organização política interna. São absolutamente diferentes do nosso modo de relacionamento com o direito, com a organização política dentro do país, e cada um tem sua própria organização.

Porém, por fazerem parte do Brasil, eles têm que conhecer o seu modo de ser, sua organização, e ao mesmo tempo conhecer e dominar a nossa organização social, política e jurídica. Isso, às vezes, gera situações conflitivas, principalmente entre aqueles que estabelecem menos relações com a nossa sociedade. E o nosso modelo jurídico não entende as normas que eles têm. Embora a Constituição brasileira reconheça que eles têm direito de se autoafirmar e de conduzir a sua vida a partir da sua lógica e da sua organização interna social, política e até jurídica. E nós, que somos dominantes, temos dificuldade de entender o modo de ser deles. Nós vivemos num apartamento, por exemplo, mas os indígenas não conseguem viver num apartamento. E nós não entendemos por que precisam de tanta terra para viver. Temos uma lógica eminentemente capitalista, de tentar tirar das coisas o máximo possível de valor econômico. E eles têm outra visão.

Mundo Jovem: Ainda há preconceito e violência contra os povos indígenas?
Roberto Antonio Liebgott: São várias as formas de violência. Existe a violência direta, que é quando se estabelece o conflito pela terra, por exemplo. Há, nesse caso, um confronto direto entre um povo, um grupo que está reivindicando terra e outros grupos que tentam negar a eles esses direitos. E esse conflito que poderia ser só ideológico vai se intensificando e chegando à violência física. Existem outras violências decorrentes dessas diferenças, como a discriminação, o desprezo, a não aceitação de que esses grupos não se enquadrem no nosso modelo de sociedade. E isso existe em todo o Brasil.

Mundo Jovem: Por parte dos indígenas também há situações de desconfiança e medo acerca das relações com a sociedade?
Roberto Antonio Liebgott: A desconfiança permeia as relações. Temos a experiência de vários grupos que desconfiam sistematicamente das nossas intenções, porque as relações que foram estabelecidas com eles sempre são para extrair deles alguma coisa, obter vantagens com relação a eles. Desconfiam até de pesquisadores porque ao longo da história eles sempre foram explorados, tanto no seu meio ambiente, nas suas terras, quanto nos seus conhecimentos, suas culturas e seus saberes.

Os Guaranis, na beira das estradas, estão lá acampados vendendo o seu produto, mas têm uma profunda resistência à nossa cultura. Eles mantêm a sua língua, a sua religião, os seus costumes, mesmo estando em nosso meio. É lógico que todas as culturas são dinâmicas. Elas vão se adaptando, se reconstruindo, se redefinindo para possibilitar a convivência.

Mundo Jovem: Como a cultura indígena pode conviver com a nossa?
Roberto Antonio Liebgott: A nossa cultura e as nossas leis são hegemônicas. Dentro dessa hegemonia temos que deixar frestas para que esses grupos possam se expressar. Eles nunca serão iguais a nós e temos que entender isso. Por sermos hegemônicos, tentamos impor o nosso modo de ser sobre o modo de ser dos outros. Mas lutamos muito para que as relações sejam de respeito para com o outro. As universidades hoje estão trabalhando muito com o étnico, com o diferente, nessa linha do respeito.

Mundo Jovem: Como os povos indígenas se organizam em âmbito nacional?
Roberto Antonio Liebgott: Na década de 1970 aconteceram as grandes assembleias indígenas no Brasil inteiro. Foi quando se estruturou a mobilização indígena no Brasil. Depois, nos anos 1980, surgiu a União das Nações Indígenas (UNI), que passou a articular os indígenas em âmbito nacional. A partir daí foram criadas pelo menos umas 300 organizações indígenas (regionais, locais e nacionais), todas com objetivo de congregar as lutas indígenas pela garantia dos direitos que já estavam estabelecidos na Constituição Federal. O movimento indígena tende a se fortalecer para cobrar do poder público as políticas a que eles têm direito.

Mundo Jovem: A educação indígena é diferente?
Roberto Antonio Liebgott: Em termos de princípios, o Estado deve respeitar o modo de ser de cada povo. E a escola indígena tem que ser respeitada. Mas o nosso modelo educacional acaba passando por cima do modo de ser de cada povo.

Há povos que têm sua própria escola adaptada. A escola indígena assimilou aspectos da nossa educação. O povo Tapirapé tem escola há muitos anos, tem formação de professores. Na Raposa Serra do Sol (Roraima) todas as escolas indígenas são administradas pelos próprios professores indígenas. Eles montam seus currículos, adaptados a seu modo de ser. Em algumas escolas os anciãos têm um papel importante porque eles são os historiadores: ensinam na própria escola como foi no passado, como eram as lutas, e vão conduzindo a criança a entender sua própria história.

Nesse sentido, a língua é essencial para que se tenha uma escola indígena mesmo. A luta dos mais velhos é para que as crianças desenvolvam a linguagem indígena desde pequenos e depois aprendam o português na escola. Esse é um processo que vem se intensificando em todos os lugares do Brasil.

Mundo Jovem: Como a escola dos não indígenas pode trabalhar a temática indígena sem reforçar o preconceito?
Roberto Antonio Liebgott: São várias etapas que precisariam ser iniciadas. Tentar mudar no currículo das escolas o conteúdo da nossa história, inserindo a história dos povos indígenas. Isso ajudaria. E fazer um trabalho com os professores, porque são eles que levam o debate para dentro da sala de aula. Se eles não forem preparados, vão levar somente aquilo que aprenderam, enquanto que poderiam tratar do assunto como culturas, um modo de ser diferente etc.
Se ficarmos apagando o indígena da nossa história, o índio continuará parecendo uma fantasia. Mas os índios não são fantasia, eles são parte da nossa cidadania.


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“Nós não somos contra o progresso”
Em geral a sociedade acha que nós somos contra o progresso quando reclamamos, quando pedimos, quando reivindicamos, ou quando somos contra a construção de hidrelétricas, barragens, hidrovias ou rodovias. Não é que nós somos contra o progresso, pelo contrário, nós sabemos da necessidade de ter progresso. Porém nós acreditamos que tem que ser pensado um novo modo de se fazer o progresso. Não só no Brasil, mas no mundo todo. Sem agredir a vida, sem agredir a natureza, o meio ambiente. Até porque nós também progredimos, porém do nosso jeito.

Os povos indígenas sempre viveram o progresso, mas o progresso de uma maneira completamente diferente. Por exemplo, para nós, a terra é sagrada. Ela não pode ser tratada como uma mercadoria. E para muitos não índios a terra é usada apenas para o comércio. Então essas coisas que a sociedade, por não conhecer nossa verdadeira história, não entende e pensa que somos contra o progresso. Nós queremos, sim, o crescimento do Brasil e que toda a população brasileira, indígena ou não, possa viver, ter emprego, ter moradia e viver dignamente como qualquer ser humano, como qualquer cidadão.

A nossa economia se baseia na necessidade de sobreviver. Por exemplo, ainda se vive muito da pesca, da caça, dos artesanatos, porque mantemos a cultura de buscar o suficiente para a nossa sobrevivência no dia a dia. Nós não temos ainda aquele hábito de acumular, acumular, acumular sempre. Nós sempre pensamos no hoje, porque nós acreditamos que amanhã haverá providência.

Isso é uma coisa nossa muito diferente. Talvez falte, por parte de nós povos indígenas, levar esse conhecimento para a sociedade não indígena, para que vocês realmente conheçam mais sobre nós, porque somos povos diferentes. Eu tenho um jeito de uma cultura, o meu marido tem uma outra cultura. Nós conseguimos conviver em harmonia, porém cada um de acordo com a sua cultura.

Eva Kanoé,
da etnia Kanoé, professora, representa
a Coordenação da União dos Povos Indígenas de Rondônia.

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