A compreensão da aquisição de leitura e escrita tem se baseado, em grande parte, nas alterações que ocorrem neste processo. Ao analisar os distúrbios da linguagem escrita, podemos traçar modelos teóricos explicativos que discriminam as diversas habilidades necessárias para que a leitura e a escrita ocorram de forma competente. Portanto, a seguir serão descritas as principais teorias que visam à explicação dos distúrbios em leitura e escrita, de forma a lançar luz sobre os processos nelas envolvidos.
Uma dessas teorias explicativas é a Hipótese do Déficit Visual (Ajuriaguerra, 1953; De Hirsh & Jansky, 1968; Orton, 1937), segundo a qual problemas de leitura e escrita se devem a dificuldades com o processamento de padrões visuais (Capovilla & Capovilla, 2000). Essa hipótese perdurou por cerca de 50 anos, da década de 1920 à década de 1970.
A partir da década de 70, evidências de distúrbios de processamento fonológico subjacentes aos problemas de leitura e escrita começaram a enfraquecer a Hipótese do Déficit Visual. Vários estudos foram conduzidos demonstrando que dificuldades fonológicas (i.e., com a percepção e o processamento automático da fala) e metafonológicas (i.e., com a segmentação e manipulação intencionais de segmentos da fala) são capazes de predizer dificuldades ulteriores na aprendizagem de leitura e escrita, e que procedimentos de intervenção voltados ao desenvolvimento de habilidades metafonológicas (especialmente procedimentos para desenvolver a consciência fonológica) são capazes de produzir ganhos significativos em leitura e escrita (Bradley & Bryant, 1983; Byrne, Freebody, & Gates, l992; Capovilla & Capovilla, 2000; Cunningham, 1990; Elbro, Rasmussen, & Spelling, 1996; Lie, 1991; Lundberg, Frost, & Petersen, 1988; Schneider, Küspert, Roth, Visé, & Marx, 1997; Torgesen & Davis, 1996, Vandervelden & Siegel, 1995).
Com tais estudos, a Hipótese do Déficit Fonológico tornou-se predominante. Segundo tal hipótese, os distúrbios de processamento fonológico são a principal causa dos problemas de leitura e escrita. A importância do processamento fonológico para a leitura e escrita pode ser compreendida analisando-se os estágios pelos quais a criança passa na aquisição da linguagem escrita.
Conforme descrito por Frith (1985) e Capovilla e Capovilla (2000), a criança passa por três estágios: o logográfico, o alfabético e o ortográfico. No estágio logográfico a criança lê de maneira visual direta; a leitura depende do contexto e das cores e formas do texto. Por exemplo, uma criança pode ler logograficamente o rótulo Coca-Cola; logo, se as letras desta palavra forem trocadas, a criança não perceberá o erro desde que a forma visual global e o contexto permaneçam iguais aos da palavra correta. Isto demonstra que a criança não presta atenção à composição da palavra em letras, apesar de conseguir ter acesso ao significado de algumas palavras conhecidas. Por isso, o estágio logográfico é considerado uma forma de pré-leitura, visto que as palavras escritas são tratadas como desenhos, e não propriamente como um código alfabético.
No estágio alfabético, a criança compreende que a escrita mapeia a fala e, portanto, começa a escrever como fala. Conseqüentemente pode ocorrer erro de regulação grafofonêmicas, como, por exemplo, escrever a palavra casa com a letra z em vez de s. Tais erros são esperados neste estágio, visto que a criança está aplicando as regras da escrita intermediadas pelos sons da fala. A partir deste momento a criança pode começar a aprender as regras de posição, como por exemplo "s intervocálico soa como /z/".
No terceiro estágio, o ortográfico, a leitura e a escrita ocorrem por reconhecimento visual direto das formas ortográficas de morfemas ou de palavras, pré-armazenadas no léxico. A criança passa, portanto, a ler e escrever corretamente palavras irregulares, como por exemplo, aquelas em que a letra x tem sons irregulares (e.g., nas palavras exército e próximo). Quando a criança dominou todas as estratégias desenvolvidas nos estágios logográfico, alfabético e ortográfico, ela torna-se capaz de ler e escrever palavras novas e palavras irregulares de alta freqüência.
Portanto, há duas formas básicas de ler e escrever de forma competente: pela estratégia fonológica (desenvolvida no estágio alfabético) ou pela estratégia lexical (desenvolvida no estágio ortográfico). Assim, conforme Ellis (1995), a leitura competente pode ocorrer de acordo com um modelo de duplo-processo: a leitura fonológica ou por associação, e a leitura lexical ou por localização.
A leitura por localização (rota lexical ou léxico-semântica) é utilizada para lermos palavras familiares que estão armazenadas na memória ortográfica (i.e., no sistema de reconhecimento visual de palavras) em decorrência de nossas experiências repetidas de leitura. Após o reconhecimento da palavra, o acesso ao sistema semântico permite a compreensão do seu significado. Em seguida, é possível produzir a pronúncia (pelo sistema de produção fonológica de palavras), finalizando assim a leitura em voz alta do item escrito.
A memorização da forma ortográfica das palavras envolve um grande esforço por parte do sujeito (Ellis, 1995). Os modelos cognitivos sugerem a existência de um local de armazenamento lexical da ortografia de palavras familiares, semelhante ao que existe para a fala (léxico de produção da fala), que também é usado no momento da leitura. Ele contém todas as palavras cuja ortografia foi armazenada na memória. Ellis (1995) o chamou de léxico de input visual ou sistema de reconhecimento visual de palavras. Este léxico possui conexões com o sistema semântico (que contém o significado das palavras) e com o sistema de produção da fala (que contém a pronúncia de palavras familiares); logo, o reconhecimento da forma ortográfica da palavra permite o acesso tanto ao seu significado quanto à sua pronúncia.
A leitura por associação (rota fonológica) é utilizada para lermos palavras pouco freqüentes ou desconhecidas. Para fazermos a leitura dessas palavras, a seqüência grafêmica (i.e., a palavra escrita) é segmentada em unidades menores (grafemas e morfemas) e associada aos seus respectivos sons. Em seguida, fazemos a junção dos segmentos fonológicos e produzimos a pronúncia da palavra. O acesso semântico é obtido depois, pelo feedback acústico da pronúncia produzida em voz alta ou encobertamente.
Assim, a forma fonológica de uma palavra pode ser obtida por dois caminhos: ou por meio da decodificação ou pela ativação da forma ortográfica correspondente. Nos leitores competentes as duas estratégias estão disponíveis, sendo utilizadas em diferentes situações de leitura, dependendo do tipo de item a ser lido. Segundo Ellis (1995), as dificuldades relacionadas à aquisição de leitura estão associadas às diversas competências necessárias ao uso de ambas as rotas, tais como:
Competência léxica: conhecimento que o indivíduo possui de um certo número de palavras da língua e sua aptidão para ter acesso rapidamente ao vocabulário mental assim constituído;
Competência fonológica (ou consciência fonológica): capacidade de segmentar uma palavra em unidades menores, como as sílabas e os fonemas, decompondo-as em seus componentes fonológicos;
Memória operacional: capacidade de operar com conteúdos mantidos por curtos períodos de tempo na memória.
Nas crianças em processo de aquisição de leitura e escrita é preciso verificar o uso das duas rotas de leitura, i.e., verificar se há dificuldades no uso de uma ou outra rota. Neste caso, atividades devem ser desenvolvidas para promover o uso efetivo de ambos os processos: o fonológico e o lexical. Porém, diversas pesquisas em todo o mundo têm apontado a prevalência de problemas fonológicos em relação aos lexicais (Capovilla & Capovilla, 2000; Ellis, 1995; Grégoire, 1997; Morais, 1995).
Para a compreensão das habilidades de decodificação e de compreensão envolvidas na leitura, é interessante o uso da equação de Gough e Tunmer (1986), L = D x C. Nesta equação, L representa a compreensão em leitura; D, a capacidade de decodificar uma mensagem escrita e C, a capacidade lingüística de compreender, isto é, de dar um sentido a uma informação léxica, a frases ou a um discurso verbal. Segundo essa equação, a leitura só ocorre de forma competente com a integração dessas duas habilidades essenciais, por isso o uso do sinal x, que representa a multiplicação, e não simplesmente a justaposição ou a soma dessas habilidades, para a qual se utilizaria o sinal +, que representa a adição. Assim, para que as leituras ocorram ambas as habilidades de decodificação e de compreensão são necessárias; se uma das duas estiver comprometida (isto é, se tiver o valor = 0), o resultado da operação também será nulo, ou seja, a leitura competente não ocorrerá.
A aplicação da equação sugere a existência de perfis diferenciados de crianças com dificuldades de aprendizagem em leitura, que variam em função da origem de tais dificuldades. Assim, teoricamente, deveria haver um grupo de crianças cuja dificuldade principal reside na identificação das palavras; um outro grupo cuja dificuldade básica está na compreensão; e, finalmente, um terceiro grupo que possui dificuldades tanto na decodificação quanto na compreensão. Todos os três grupos apresentariam problemas de leitura, visto que nos três casos o resultado da equação seria nulo. Dados empíricos confirmaram essa hipótese (e.g., Aaron, 1989, 1991; Braibant, 1992; Spring & French, 1990; Stothard & Hulme, 1992; Yuill & Oakhill, 1991).
A pesquisa de Aaron (1991) ilustra a existência dos três perfis. Foram avaliados 180 alunos da 3ª à 8ª série de uma escola de ensino regular. A partir dos resultados em testes de compreensão oral e de decodificação de pseudopalavras isoladas, foram identificados três grupos distintos de crianças com dificuldades de leitura:
crianças apresentando "dificuldades específicas em leitura". Elas mostram desempenhos fracos em decodificação (D) e em compreensão escrita (L), mas seu nível de compreensão oral (C) é normal, ou até mesmo superior à média. São caracterizadas como tendo dificuldades específicas de leitura visto que suas habilidades de compreensão oral estão preservadas. Geralmente tais crianças são diagnosticadas como disléxicas;
crianças apresentando "dificuldades inespecíficas em leitura". Possuem dificuldades de compreensão escrita (L) associadas às dificuldades de compreensão oral (C), mas apresentam boas ou mesmo excelentes capacidades de decodificação (D). Logo, o problema de tais crianças não é específico à compreensão da linguagem escrita, mas inclui dificuldades mais amplas que afetam a compreensão da linguagem oral. Tais crianças apresentam perfis do tipo hiperléxicos;
crianças apresentando "dificuldades cognitivas generalizadas". Nestas, os desempenhos estão rebaixados nas três habilidades: compreensão escrita (L), compreensão oral (C) e decodificação (D). Portanto, as dificuldades que elas apresentam na leitura são fruto de uma combinação das dificuldades no reconhecimento das palavras escritas e nas habilidades lingüísticas mais gerais de compreensão.
A abordagem de Aaron, com a proposta de analisar o distúrbio de leitura a partir da equação L = D x C, é importante para direcionar programas educativos ou reeducativos, diferenciando o tipo de intervenção em função do perfil específico identificado. Esta análise permite prescindir da avaliação do quociente de inteligência (QI), tão amplamente usada no passado para o diagnóstico dos problemas de leitura. Segundo a proposta de Aaron, a avaliação do QI pode ser substituída pela avaliação da compreensão oral, permitindo uma análise mais refinada dos aspectos lingüísticos, diferenciando entre habilidades especificas de leitura e habilidades gerais de linguagem, mais do que simplesmente diferenciando entre habilidades gerais de linguagem e habilidades de desempenho não-verbal, como era possibilitado pelas análises de QI e pela comparação entre QI verbal e QI de desempenho (para uma discussão mais detalhada sobre o assunto, consultar Braibant, 1997).
Apesar da grande contribuição de Aaron com a proposta da análise diferenciada dos três perfis de problemas de leitura, segundo Grégoire e Piérart (1997) os estudos realizados para detectarem as habilidades prejudicadas nos maus leitores sugerem que a maioria dos distúrbios situa-se no nível dos mecanismos básicos que tornam possível o reconhecimento das palavras escritas (i.e., decodificação), e não no nível dos componentes sintáticos ou semânticos (i.e., compreensão).
Lecocq (1991) conclui sua revisão da literatura sobre essa questão da seguinte maneira: "Numerosos trabalhos (...) permitiram restringir, progressivamente, o caminho de pesquisa e mostrar que não era nem a pobreza de vocabulário, nem em uma organização mediana da memória semântica, nem em um defeito da sensibilidade à informação contextual, nem na fraqueza da análise sintática, nem de maneira geral, nas dificuldades de compreensão que residia à deficiência dos disléxicos, mas sim em uma incapacidade de atingir certas informações foneticofonológicas" (Lecocq, 1991, p.42).
Confirmando este ponto de vista, Content (1990) afirma que: "Excetuada uma síndrome específica e rara, pela qual se começa a mostrar interesse somente há alguns anos, a hiperlexia, que se caracteriza, inversamente, por excelentes competências em leitura oral acompanhadas de uma compreensão às vezes extremamente pobre, a característica geral dos distúrbios de leitura é a presença de uma dificuldade no nível da identificação de palavras isoladas" (Content, 1990, p. 27). Conforme os resultados de pesquisas revistos por Content, os maus leitores apresentam, sistematicamente, desempenhos mais fracos nas tarefas de decodificação (de palavras ou de pseudopalavras) que necessitam da utilização de regras de correspondência grafo-fonema, bem como nos testes que avaliam suas capacidades fonológicas (Contet, 1990; Lecocq, 1991, 1992; Gombert, 1992; Rieben & Perfetti, 1989; Siegel & Ryan, 1989; Sprenger-Charolles, 1989). Em tais tarefas os bons leitores tendem a ser mais rápidos e mais precisos que os maus leitores, apresentando habilidades de decodificação já automatizadas. A dificuldade específica de processamento fonológico nos maus leitores é corroborada pelo fato de que, embora estes maus leitores sejam consistentemente piores nas tarefas de reconhecimento de palavras, eles são relativamente competentes quando se trata de utilizar os conhecimentos gerais e lingüísticos para facilitar a decodificação.
Confirmando tais achados, nos estudos sobre as habilidades cognitivas relacionadas à aquisição de leitura e escrita, a consciência fonológica, habilidade essencial para o desenvolvimento da decodificação, tem se mostrado como de extrema importância (Capovilla & Capovilla, 2000; Ellis, 1995; Grégoire, 1997; Morais, 1995).
Bradley e Bryant (1983, 1985) fizeram um trabalho de avaliação e intervenção em um grupo de 403 crianças de quatro e cinco anos de idade na área de Oxford, Inglaterra. Nenhuma das crianças possuía habilidades de leitura ou escrita no início do estudo. A consciência fonológica foi testada, apresentando às crianças três ou quatro palavras de três letras, sendo que todas, exceto uma, tinham os mesmo sons iniciais, centrais ou finais. A tarefa da criança era identificar qual palavra era diferente. Por exemplo, em um item o experimentador falava as palavras "lot", "cot", "hat" e "pot", e então a criança devia identificar "hat" como a palavra diferente. O desempenho das crianças nesta tarefa de consciência fonológica foi um bom previsor de sua capacidade de leitura e escrita três anos mais tarde.
Outros estudos como de Cunningham (1990) e Clay (1995) também foram unânimes em demonstrar a importância da consciência fonológica para a aquisição da leitura e da escrita. Segundo Ellis (1995), duas sessões extras de exercícios de consciência fonológica, de trinta minutos de duração cada, semanalmente, dadas a fracos leitores de 6 e 7 anos, por 20 semanas, produziu melhoras significativas e duradouras na leitura e na escrita. Tais ganhos ocorreram não somente em relação à capacidade de ler em voz alta, mas também se estenderam à compreensão do que era lido.
Sumariando, tais achados de pesquisa evidenciam a prevalência dos problemas de leitura devidos a dificuldades na decodificação, em oposição àqueles devidos a dificuldades de compreensão. Estes dados mostram a importância da rota fonológica ou por associação na leitura competente, e apontam para a necessidade de desenvolver instrumentos de avaliação e procedimentos de intervenção remediativa e preventiva relacionada às habilidades fonológicas.
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Cláudia Regina Danelon Gütschow - Mestre em Psicopedagogia pela Universidade de Santo Amaro Pedagoga com especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional pelo Instituto Sedes Sapientiae
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