Artigo do palestrante Marcos Cordiolli
Marcos Cordiolli (Revista eletrônica ComCiencia.br)
A população e professores desprovidos de informações costumam atacar a educação no Brasil como se ela fosse de péssima de qualidade.
Infelizmente, alguns setores da imprensa, em particular, jornalistas nem sempre habilitados, analisam e desqualificam os complexos processos educacionais sem conhecê-los de fato. Andam sempre à cata de “maçãs podres”, que utilizam para alimentar a audiência de programas sensacionalistas de rádio e TV ou para vender seus jornais impressos, ignorando experiências e situações escolares razoáveis e outras tantas de ótima qualidade.
O que não se dão conta é que a educação no Brasil mudou, e para melhor, com conquistas memoráveis nas últimas décadas. O Plano Nacional de Educação (PNE) pode ser o orientador do caminho para esse salto fundamental na educação, correspondendo ao crescimento econômico com distribuição de renda e justiça social que o país tanto buscou e está começando a conquistar.
O PNE está em discussão no Congresso Nacional. O projeto foi elaborado pelo Ministério da Educação (MEC) a partir dos debates e das deliberações da Conferência Nacional de Educação (Conae), maior evento educacional já realizado no país. A Câmara dos Deputados já realizou dezenas de audiências públicas com diversos segmentos da sociedade civil para debatê-lo. Os deputados apresentaram quase três mil emendas ao PNE, um recorde para um projeto de lei. Essa mobilização em torno de um projeto de lei mostra a sua importância: o Brasil precisa muito de um bom sistema de educação e tem a oportunidade certa no momento correto para consegui-la.
Como, porém, as políticas públicas, em particular na educação, padecem de alguns tipos de males, como o eleitoralismo (ações governamentais focadas em necessidades eleitorais dos gestores) e o egopoliticismo (que associa as ações governamentais à figura eleitoral do gestor), e considerando as situações caóticas da educação brasileira que no século passado levaram os movimentos sociais a levantar amplas reivindicações aos governantes, as proposições parecem sempre irrealizáveis e os avanços são recebidos como minúsculas conquistas. Isso porque em educação não existem soluções rápidas, ainda mais em um país continental e complexo como o nosso; por isso, toda mudança educacional precisa de tempo para a efetivação, assim como para mostrar os seus frutos.
Um dos caminhos para superar essa situação é a elaboração de um PNE com validade superior ao mandato de dois governos, fundamentado em demandas da sociedade e que alcance amplo apoio do Congresso Nacional. A implantação do PNE, por sua vez, precisa ser monitorada pela sociedade civil.
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O Brasil não vai conseguir superar o descaso de cinco séculos com a educaçao num piscar de olhos. Mas como afirmamos, a situação da educação mudou para melhor e alguns fatos significativos do início da segunda década do século XXI, precisam de reconhecimento:
1. A ampliação do atendimento escolar é um marco histórico na nossa história: (a) universalizou o ensino fundamental; (b) está organizando uma ousada política de expansão da educação infantil; (c) constituiu uma sólida política de educação profissional tecnológica no ensino médio, com a implantação dos Institutos Federais; (d) expandiu – sem precedentes – a oferta da educação superior (com a ampliação das universidades federais e a compra de vagas em instituições privadas, com o ProUni); e (e) estão em consolidação os modelos escolares autônomos para as populações indígenas, quilombolas e do campo (castanheiros, seringueiros, assentados, ribeirinhos...). As salas de aula estão superlotadas, diversas escolas convivem com péssimas condições materiais e os resultados da aprendizagem ainda são baixos. Experiências já reconhecidas em municípios de todos os portes e regiões mostram que esses problemas podem e estão sendo superados.
2. O financiamento da educação consolidou as fontes de recursos para a área e o sistema compensatório de distribuição de verbas entre as diferentes regiões do país pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que distribui quase R$ 10 bilhões por ano do governo federal para equiparar as condições escolares entre as regiões mais pobres do país. Assim, todas as escolas públicas têm garantido uma quantidade mínima de recursos para cada aluno. As diferenças entre os diversos municípios ainda são grandes, mas é inegável que é uma questão de tempo para que todos os estudantes do Brasil tenham a mesma qualidade de educação em todo o país.
3. A valorização dos educadores está ocorrendo com a implantação do piso salarial nacional dos educadores (que paga, em valores de hoje, mais de R$ 1.100 pela jornada de 40 horas), com a formação inicial desses profissionais em cursos de graduação e a expansão da oferta de pós-graduação para eles. Vencida a batalha pelo piso salarial, falta estabelecer planos de carreira com aumento real de salários e melhorar os cursos de graduação e pós-graduação para professores, integrando-os num amplo sistema de formação continuada.
4. A situação da educação foi revelada, em parte, pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), um importante instrumento quantitativo, reconhecido internacionalmente. Mas precisamos dos fatores qualitativos e processuais para aprimorar o sistema de avaliação institucional da educação.
5. A gestão democrática está se generalizando com a implantação de conselhos escolares, conselhos municipais e com a consulta na escolha de gestores. Mas ainda temos dificuldades com a participação das comunidades, em particular, dos familiares de alunos.
6. O Brasil caminha com passos largos no combate ao racismo e na afirmação da diversidade cultural de nossa população nas escolas. A adoção de cotas na educação superior está possibilitando a formação de professores negros e índios em maior número. A cultura e a história indígena e africana estão ganhando espaços reconhecíveis nas salas de aula.
7. A inclusão de pessoas com necessidades escolares diferenciadas na educação regular é uma grande conquista que está derrotando o preconceito. No entanto, ainda são deficitárias as ações educacionais suplementares e complementares, bem como a formação e o apoio aos professores da educação regular.
8. O governo federal mantém políticas nacionais consolidadas nas áreas de alimentação, transporte, material didático, entre outras, para apoiar as redes municipais e estaduais.
O PNE, na forma como foi apresentado ao Congresso Nacional, apresenta condições objetivas para superar a fragmentação das políticas públicas e garantir o funcionamento de um sistema de educação eficiente e de qualidade. Algumas de suas principais metas são:
I. A universalização da educação básica – o que significa: (a) manter mais de 42 milhões de alunos de 4 a 17 anos, sendo 5,6 milhões na educação infantil de 4 a 5 anos (aumento de 1,4 milhão) e mais de 11 milhões de jovens no ensino médio; (b) atender metade das crianças de 0 a 3 anos na educação infantil, um contingente de 4,8 milhões de crianças; (c) aumentar, na educação superior, de pouco mais de 6 milhões para 11,5 milhões de estudantes, ou seja, um crescimento de 5,3 milhões de matrículas; formar na pós-graduação 60 mil mestres e 25 mil doutores por ano.
II. A oferta de educação integral para 25% dos estudantes de 4 a 17 anos (esta meta pode ser ultrapassada com apoio de programas municipais e estaduais e com a possibilidade de expansão do ensino médio profissionalizante).
III. A formação inicial dos professores da educação básica será em cursos de graduação (hoje apenas 67,5% estão nesta condição) e 50% deles com pós-graduação (hoje 25% têm pós-graduação).
IV. O reconhecimento profissional e social dos professores, promovido pelo aumento da média salarial equivalente aos profissionais com o mesmo número de anos de escolarização. Isso significa um salto de mais de mil reais no salário médio, saindo dos atuais R$ 1.745,00 para 40 horas para chegar a R$ 2.792,00. Ou seja, a educação pública vai poder disputar os melhores profissionais do mercado em iguais condições com a rede particular e outros setores. Os professores também deverão ter planos de carreira fixados em até dois anos após a aprovação do PNE.
V. O ensino médio deverá atender a todos que o quiserem cursar. O ensino profissionalizante deverá ser ofertado com mais de dois milhões de vagas, sendo metade em Institutos Federais de alta qualidade. É bem possível que os governos estaduais também ofertem mais vagas de ensino médio profissionalizante. Assim, poderemos ter mais de um estudante, a cada quatro, em escolas com alta qualidade.
VI. O analfabetismo será combatido com eficácia no Brasil. Os alfabetizados e os analfabetos funcionais terão a possibilidade de continuar os estudos. E a educação de jovens e adultos (EJA) terá metade das vagas com formação profissionalizante, aumentando as atuais 22 mil para cerca de 850 mil vagas, um incremento de quase quarenta vezes. A população de 18 a 24 anos terá sua escolaridade ampliada para o equivalente a 12 anos de estudos, terminando, nessa faixa etária, com a diferença de negros e índios em relação ao restante da população.
VII. Os recursos saltarão dos atuais 5% do Produtor Interno Bruto (PIB) para cerca de 7% (algumas previsões apontam que os valores podem ser aplicados até 2016 e chegar entre 8 e 9% até 2020). A qualificação da gestão democrática irá reduzir a malversação de dinheiro público e melhorar o uso dos recursos da educação.
Essas mudanças, entre outras, irão estabelecer condições de melhora também das condições sociais, pois a escolarização das pessoas entre 17 e 24 anos (ou 29, como já é sugerido no Congresso), a formação de jovens no ensino médio profissionalizante e a expansão da educação superior, associadas ao modelo de crescimento econômico com distribuição de renda, ampliarão o desenvolvimento da economia, gerando renda e tributos, impulsionando um processo endógeno: a educação faz o país crescer, o que, por sua vez, melhora ainda mais a educação.
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O PNE já é uma grande conquista, pois expressa o crescimento e as potencialidades da educação brasileira. No entanto, ela possui outras “urgências” que vão além do projeto. Algumas podem ser incorporadas pelo Congresso Nacional ou então pelos governos dos municípios, estados e do Distrito Federal, ou ainda impulsionadas pelos movimentos de professores e por ações da sociedade. Entre elas, seriam destacáveis as seguintes:
1. Estabelecer currículos e ações pedagógicas para uma educação para todos. As ações educativas ainda estão focadas em aprendizagens individuais, desconsiderando as complexas redes culturais. Precisamos superar a cultura da nota e da presença fundada em pedagogias meritocráticas e alçar os estudantes à condição de protagonistas de seus processos de aprendizagem. As referências para essa proposta pedagógica seriam as da Escola Cidadã de Porto Alegre, Sem Fronteira de Blumenau e Plural de Belo Horizonte.
2. Efetivar políticas efetivas de proteção da diversidade cultural, social, de gêneros, de orientação sexual e de necessidades diversificadas. Ainda são insuficientes as políticas de ações complementares e suplementares de atendimento especializado dos alunos com necessidades educativas diversificadas. O ensino médio regular, atualmente desprovido de identidade, precisa ser convertido em educação para a juventude.
3. Implantar o sistema de avaliação processual e qualitativa das escolas e da aprendizagem na educação básica, similar em diversos aspectos ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).
4. Ofertar condições de fruição da cultura na escola e em equipamentos culturais, estimulando o aprimoramento estético e as condições para a conquista e o exercício da cidadania cultural.
5. Estimular e efetivar a participação democrática, em particular, em relação às famílias, e o funcionamento regular na gestão democrática das instituições escolares.
6. Implementar o sistema de formação continuada dos educadores, articulando a educação superior, a formação inicial e a realidade das redes educacionais. A formação inicial em cursos de pedagogia e licenciaturas ainda é frágil e a pós-graduação ainda é acessível na forma de ensino a distância (EaD).
7. Aprimorar a EJA como um sistema para incorporar com qualidade os analfabetos funcionais e os estudantes com necessidades especiais que desejam continuar estudando a partir dos 17 anos.
8. Promover uma reforma tributária que garanta mecanismos eficientes e permanentes de financiamento da educação.
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Temos uma educação com conquistas colossais, um potencial imenso e dificuldades notáveis num momento muito favorável de desenvolvimento social, cultural e econômico do país. O PNE pode ser o grande contrato social a reunir os governos de todas as instâncias, os educadores, os funcionários, as famílias, os alunos e a sociedade para fazer da educação – de fato – prioridade e realidade nacional. O passo de gigantes do começo do século XXI deve ser acompanhado de ações de grande porte nesta década, para que ao final dos anos 2020 o Brasil possa ter estabelecido a educação necessária ao povo brasileiro.
Assim, precisamos escrever este PNE pensando em construir as condições para o próximo: todos os estudantes em escola integral equipada com aprendizagem, esporte, cultura e lazer; universidade produzindo conhecimento e formando profissionais socialmente qualificados; professores com ótima escolarização e com salários que reconheçam a sua função social. E um país que encontrou o caminho do desenvolvimento econômico com distribuição de renda e justiça social.
Marcos Cordiolli é mestre em educação, cineasta e consultor técnico ad hoc da relatoria do Plano Nacional de Educação na Câmara dos Deputados.
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