Para denominar os trabalhos escolares que as crianças e jovens fazem fora da sala de aula: em casa, na escola (no estudo acompanhado) ou em instituições paraescolares, utilizam-se diferentes designações. “Trabalho de casa” é a expressão mais corrente, seguida de “deveres”. A sigla TPC (trabalho para casa), conhecida no universo de todos, é muito utilizada pelas crianças para brincar e inventar outras designações: trabalho para carecas, trabalho para cábulas, trabalho para camelos, tortura para crianças, trabalho p’ra chatear etc., o que pode ser um indicador de uma reflexão crítica relativamente ao que significa este tipo de trabalho, para elas monótono, difícil, sem sentido e sem qualquer atractivo, roubando-lhes, inclusive, o tempo de brincar. Assim, a forma descontraída e humorística com que utilizam estas designações é uma maneira de relativizar e aceitar este tipo de trabalho, alienante e sem sentido, constituindo a subversão da designação pela manutenção das iniciais (TPC) uma forma de resistência simbólica e difusa a algo que normalmente sentem como hostil.
Como todos sabemos, à maioria das crianças são propostos como “trabalhos de casa” tarefas que incluem cópias de textos, repetições de palavras (várias vezes), fichas com contas e problemas diversos que na maior parte das vezes se limitam a reproduzir os conteúdos dos livros ou o que eventualmente foi feito e explicado na aula. Para muitas crianças, os “trabalhos de casa” consistem no acto de abrir a pasta, tirar os cadernos, os livros e os lápis, fazer o que a professora/o mandou, fechar o caderno e voltar a guardar. Aliás, está quase tudo no caderno ou no livro, é só copiar. Estamos obviamente a simplificar este ritual, uma vez que, ao tirar o livro da pasta e o caderno, as crianças tiram também todo o aborrecimento que este acto implica, com uma boa quantidade de palavras “feias” e gestos que apropriadamente as acompanham e que só acabam quando o livro volta a fechar. Este ritual é para muitas crianças, sobretudo para as mais pequenas, tudo o que elas conhecem como próprio do acto de estudar. De facto, ao confundir-se estudar com este tipo de “trabalhos de casa”, estamos a afastar a hipótese das crianças se familiarizarem com o interesse pelo conhecimento satisfazendo a sua curiosidade natural através da pesquisa.
O conceito de estudar é muito confuso, e as crianças só o vão percebendo com o decorrer da escolaridade e à medida que se vão confrontando com outras situações – como, por exemplo, estudar a tabuada, estudar para um teste – e, mesmo assim, tudo isso depende delas. A função de estudar, não sendo uma operação muito concreta e codificada, é algo que não é muito claro para as crianças e, provavelmente, para os adultos com quem convivem. A maior parte das crianças não gosta de fazer “trabalhos de casa”, mas aceita a obrigatoriedade da tarefa mais ou menos pacificamente. Outras, contudo, manifestam-se: É uma seca... Tenho de estar sempre a escrever... cansa a mão... Já estou cheio. Apesar das dificuldades (não sabem fazer ou estão cansadas após um dia na escola), os “trabalhos de casa” aparecem sempre como alguma coisa que faz parte dos seus quotidianos, que está naturalizada e que, portanto, não se questiona – temos de fazer todos os dias e muitos... – ou cuja realização é condicionada pelo medo – se não fizer a minha professora ralha-me.
Para a criança ou para o adolescente, o trabalho escolar, com tudo o que ele comporta de actividade, representa o exacto equivalente ao trabalho profissional de vida de um adulto. Mas, enquanto a duração do trabalho profissional exige um grande descanso para a maioria dos adultos, o trabalho escolar é cada vez mais desenvolvido tanto dentro como fora da sala de aula. Há mais de 20 anos que se denuncia este excesso de trabalho e os consequentes malefícios físicos, psicológicos e morais para as crianças. Sabe-se que, para a maior parte dos adolescentes, a vida é dividida segundo um esquema condenado por todos os que se têm dedicado ao assunto e que se traduz em trabalho excessivo, que deveria ser seguido de repouso. Mas, em vez disso, é o lazer que é banido, salvo se houver um feriado ou férias. A psicologia da infância e da adolescência, assim como as ciências da educação e a sociologia, têm denunciado e reagido a este regime de trabalho escolar que continua não só a ser praticado como até desenvolvido, vulgarizado e disseminado. As crianças vão reagindo a este esquema quase por defesa natural: distraem-se na sala de aula ou no ATL, negligenciam no trabalho escolar, olham o tecto e o vazio, fazem pequenos desenhos nos cantos dos livros, falam sozinhas com os cadernos, riscam as secretárias, “aldrabam” os educadores fingindo que já fizeram tudo, vão “milhares” de vezes ao quarto de banho, atiram papelinhos uns aos outros, fazem as mais diversas perguntas sobre coisas que não estão relacionadas com o que estão a fazer, trauteiam baixinho, etc. Ou seja, inventam toda a espécie de tarefas e de desculpas para não fazerem o que têm pela frente, ensaiando formas múltiplas de resistência a um trabalho cujo sentido não é explícito e que lhes é imposto do exterior. Não se conhecem ainda os benefícios que se podem tirar de tanto excesso, mas na maior parte dos casos os malefícios vêem-se generalizados nas revoltas das crianças. Neste caso, o ensino parece-nos estar atrasado em relação ao processo civilizacional. De facto, tal como o ser humano não se criou e não se cria somente pelo trabalho profissional, também as crianças não se formam somente pelo estudo formal. O conceito de trabalho de casa aglomera um conjunto de práticas e de efeitos que só aparentemente têm o mesmo sentido e intuito (sucesso, mobilidade social, emprego, integração...), para as mais diferentes motivações: as crianças parecem querer corresponder às expectativas dos pais e professores; os professores aparentemente querem corresponder às expectativas sociais; outros técnicos de educação dizem querer ajudar as crianças a ter melhores desempenhos escolares; os pais parecem querer proporcionar uma maior mobilidade social através da escola; e os técnicos da área social, por sua vez, defendem porventura esses trabalhos como um instrumento para ajudar as crianças a sair dos ciclos de reprodução da pobreza e da exclusão.
Muitas crianças evidenciam comportamentos agressivos, cansaço e dificuldade de adaptação ao trabalho que trazem da escola para fazer. Trata-se de um trabalho rígido, limitado e repetitivo, marcado pela necessidade e sobrevivência do aluno/a, construído a partir de uma visão conservadora da escola, contra uma visão “progressista” que procura um trabalho significativo, que ajude a compreender o significado emancipatório do conhecimento. Um conhecimento que fará com que as crianças compreendam a sociedade em que vivem e consigam adquirir os instrumentos para lidar com ela, tendo em conta os constrangimentos com que se deparam diariamente.
Em suma, as crianças, no seu papel de alunos, não se questionam e aceitam as regras de um jogo que não foi com elas negociado, pois não o aceitarem pode condicionar as suas vidas e, portanto, o seu “sucesso”. Aliás, como diria Bourdieu, é esta crença e aceitação das regras do jogo (a illusio) a condição da sua perpetuação. Este tipo de trabalho, não parece contribuir para o bem-estar e auto-estima das crianças, nem sequer para o seu sucesso. No entanto, compreendemos que o assumem como fundamental para não terem aborrecimentos, obter reconhecimento, uma nota ou passar no final do ano. Para muitas crianças, os estudos tornam-se, assim, um mal necessário, uma etapa a transpor, esperando a verdadeira vida anunciada, no futuro e sempre para depois da escola.
Todas as perspectivas sobre a utilidade dos TPC, ou trabalhos escolares feitos fora da escola, decorrem do facto do trabalho[1] dos alunos se ter tornado o discurso dominante do “sucesso escolar” das crianças e dos jovens. A falta de trabalho dos alunos relacionada com as aprendizagens escolares é denunciada como uma causa essencial de insucesso. No entanto, se o trabalho que se faz na escola não é suficiente para se ter êxito na escola, quer dizer que é a própria instituição escolar que reconhece o seu fracasso. Os TPC e a multiplicação de explicações, salas de estudo, etc., são a expressão do falhanço da escola em assegurar a todos uma aprendizagem com “sucesso”. Isto é tanto mais grave quanto as crianças não chegam à escola em pé de igualdade e quanto mais o “sucesso” na escola resultar de algo que a transcende (condições sociais dos alunos, capitais culturais herdados, TPC, explicações etc.), mais ela reproduz e reconfigura essa diferenciação social – transformando desigualdades sociais em desigualdades escolares (o que legitima a meritocracia do sistema, com todas as funções propriamente ideológicas que isso implica).
É neste contexto que a expressão “insucesso escolar” surge como sinónimo de falta de aproveitamento escolar, quase sempre identificada com a “reprovação” (hoje retenção) e como consequência da falta de trabalho escolar, subentendido pelos pais e educadores como falta de estudo. No entanto, não existe um “insucesso escolar”, o que existe são vários insucessos escolares. “Tudo depende da perspectiva em que nos colocamos: insucesso em relação ao aluno ou em relação à escola? (ao professor, ao Ministério da Educação, aos pais...). Se a resposta parece ser em relação ao aluno, deve perguntar-se onde termina a responsabilidade da escola, para começar a do aluno/a, ou seja, em que medida este foi incapaz de aprender ou aquela de ensinar” (Ribeiro, 1988: 1). Com efeito, quando problematizamos estas questões, precisamos de pensar não apenas em termos do discurso dominante, que tenta analisar a inadaptação das crianças à escola, mas inverter a questão e pensar sobre a inadaptação da escola às crianças, e sobre o insucesso escolar como o insucesso da escola (a expressão lida na sua forma literal talvez seja mais útil para compreender o problema). “Só uma hipocrisia muito grande não deixa reconhecer o insucesso da escola enquanto agente especializado da ordem e do controle social quando esta é incapaz de promover a socialização considerada adequada das novas gerações, ou seja, parece que só poderemos falar de “insucesso do aluno”[2] se este estivesse interessado em receber da escola aquilo que a escola pretende dar-lhe” (ibidem: 2). Nesse sentido, as escolhas para serem bem sucedidas deveriam apresentar-se livres. A partir do momento em que a escola ou os écrans (as novas tecnologias) suscitam às crianças curiosidade para outros modelos e formas de aprender, aliás modelos bem aceites pela sociedade em geral, como é que muitas crianças não haverão de reagir, recusando continuar a interessar-se por matérias para que são empurradas?
Quantos pais e encarregados de educação não estão, depois de um dia de trabalho cansativo, a ensinar contas e tirar dúvidas aos filhos em vez de conversarem e aproveitarem para brincar com eles? Quantas crianças sofrem por não terem pais que os saibam ajudar? Quantos auxiliares de acção educativa, sem preparação para o efeito, estão em ATL a ajudar as crianças a fazer trabalhos de casa? Para a maioria dos adultos, os TPC não se questionam, pois fazê-lo seria colocarem-se em causa e assim questionarem toda a estrutura social e educativa. Neste sentido, compete aos educadores de opção progressista, que acreditam nas crianças e na infância, oporem-se à colonização do tempo das crianças pela lógica escolar. É preciso que as crianças tenham a possibilidade de ter um verdadeiro tempo livre, um tempo de brincar que não seja monopolizado pelos adultos. É preciso lutar pelo direito a brincar como algo fundamental e não supérfluo. Isto exige de nós capacidade para ouvir as crianças e olhar o mundo do seu ponto de vista, propondo medidas que possam minimizar, senão acabar, com esta exploração escolar que as impede de usufruir de um tempo vital para o seu normal crescimento. O brincar é um comportamento que permite o conhecimento de si próprio, do mundo físico e social e dos sistemas de comunicação, o que tem de levar a considerar a actividade lúdica como intimamente relacionada com o desenvolvimento da criança. Brincar faz parte da cultura da infância e para as crianças é um acto muito sério.
Maria José Araújo
Universidade do Porto
CIIE- Centro de Investigação e Intervenção Educativas
mjosearaujo@gmail.com
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