Gilberto Dimenstein
O psicanalista e educador Rubem Alves, 74, andava um tanto abatido, tomado por reflexões sobre envelhecimento e morte. Tinha passado vários meses com dificuldade de locomoção por causa de um problema na coluna e ainda buscava forças para se recuperar de um rompimento com sua companheira. Essa crise existencial se transformou, por acaso, numa experiência poética.
Numa tarde de 9 de julho, São Paulo estava vazia por causa do feriado e Rubem conheceu a atriz e poeta Elisa Lucinda, uma negra de olhos verdes, cabelos ruivos, cuja paixão é ensinar pessoas comuns a declamar. O motivo do encontro era a gravação de um depoimento com dicas para professores sobre como levar a poesia para dentro da escola.
A conversa de seis horas, apurada com taças de vinho tinto (e no final reforçada com doses de uísque), acabou em caminhos inesperados. Os versos declamados mesclavam-se com as histórias de vida desde a infância e sintetizavam alegrias, medos, decepções, mistérios, conquistas, esperanças e pequenos e grandes prazeres.
Sem se darem conta, fizeram uma síntese de décadas de emoções vividas, numa espécie de autobiografia poética.
Logo no início da conversa entre os dois desconhecidos, eles disseram que nenhuma poesia os emocionava tanto como "Cântico Negro", de José Régio.
"Se vim ao mundo, foi
Só para deflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada"
Depois de declamarem essa poesia, eles, que se conheceram havia alguns minutos, não precisavam mais de apresentação: pareciam íntimos. O roteiro da gravação obedeceu às ordens apenas das emoções que iam surgindo e se associando aos versos de Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Pablo Neruda, Adélia Prado, Cecília Meireles e Mário Quintana.
Certamente, muita gente deve achar que tanta emoção não cabe nem deveria caber dentro de uma escola -talvez até ache que estudar poesia é coisa do passado. Aulas de artes são vistas, na maioria das vezes, como uma diversão, nem remotamente tão valiosas como matemática, física ou gramática.
Mas justamente nesse tipo de emoção poética reside uma conexão com o futuro.
Quando falo em futuro, estou me referindo a algo bem prático: a empregabilidade de um indivíduo depende do seu contato com as mais diferentes formas de criatividade, a começar pelas artes.
Neurocientistas das melhores universidades do mundo, como Harvard, revelam como a arte ajuda a desenvolver a capacidade de aprender. Há impacto direto na memória e na capacidade de associação, entre outros efeitos que facilitam a aprendizagem. Descobriu-se uma ligação direta entre música e matemática.
O psicólogo Howard Gardner, professor de Harvard, ganhou prestígio mundial ao disseminar a noção de que existem inteligências múltiplas. Dançar, cantar, desenhar ou jogar futebol são sinais de diferentes tipos de inteligência. Na visão do psicólogo, a escola prioriza o raciocínio lógico-matemático -e isso não forma profissionais habilitados a lidar com as novas demandas.
Gardner aposta que a prosperidade profissional depende do desenvolvimento da criatividade, afinal as máquinas assumem sem parar as tarefas repetitivas. Na semana passada, foi apresentado um projeto de robô que utiliza neurônios (as células cerebrais). Tão importante quanto o espírito criativo é a capacidade de síntese. Num ambiente com tanta informação em tempo real, é vital saber selecionar com rapidez -ele define essa habilidade como "mente sintetizadora".
A metáfora é um magistral exercício de síntese.
É mais fácil desenvolver a criatividade e a habilidade de síntese desvendando as emoções de uma poesia do que decorando fórmulas gramaticais ou correndo atrás da nova invenção tecnológica. Ter muita informação não significa, como sabemos, ter muito conhecimento. Pode significar apenas muita confusão.
Por isso, naquele encontro, Elisa e Rubem, dois estranhos, conseguiram se conhecer tão rapidamente em tão pouco tempo -e falar com tanta profundidade de décadas de vivência.
Aquele encontro é apenas a síntese do que significa promover a emoção com a educação.
PS-Os descaminhos da conversa de Rubem e Elisa acabaram virando livro ("A Poesia do Encontro"), lançado na Bienal de Livros de São Paulo, em agosto. Um trecho da conversa de Rubem Alves e Elisa Lucinda pode ser visto no link http://www.dailymotion.com/julianorj/video/x6fwvo_elisa-lucinda-e-rubem-alves-a-poesi_school Nesse trecho Rubem interpreta o que considera a mais bela declaração de amor, escrita por Fernando Pessoa: "Quando te vi, amei-te muito antes. Tornei a achar-te quando te reencontrei".
Coluna de Gilberto Dimenstein originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano/ Dia 18/08/2008
O psicanalista e educador Rubem Alves, 74, andava um tanto abatido, tomado por reflexões sobre envelhecimento e morte. Tinha passado vários meses com dificuldade de locomoção por causa de um problema na coluna e ainda buscava forças para se recuperar de um rompimento com sua companheira. Essa crise existencial se transformou, por acaso, numa experiência poética.
Numa tarde de 9 de julho, São Paulo estava vazia por causa do feriado e Rubem conheceu a atriz e poeta Elisa Lucinda, uma negra de olhos verdes, cabelos ruivos, cuja paixão é ensinar pessoas comuns a declamar. O motivo do encontro era a gravação de um depoimento com dicas para professores sobre como levar a poesia para dentro da escola.
A conversa de seis horas, apurada com taças de vinho tinto (e no final reforçada com doses de uísque), acabou em caminhos inesperados. Os versos declamados mesclavam-se com as histórias de vida desde a infância e sintetizavam alegrias, medos, decepções, mistérios, conquistas, esperanças e pequenos e grandes prazeres.
Sem se darem conta, fizeram uma síntese de décadas de emoções vividas, numa espécie de autobiografia poética.
Logo no início da conversa entre os dois desconhecidos, eles disseram que nenhuma poesia os emocionava tanto como "Cântico Negro", de José Régio.
"Se vim ao mundo, foi
Só para deflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada"
Depois de declamarem essa poesia, eles, que se conheceram havia alguns minutos, não precisavam mais de apresentação: pareciam íntimos. O roteiro da gravação obedeceu às ordens apenas das emoções que iam surgindo e se associando aos versos de Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Pablo Neruda, Adélia Prado, Cecília Meireles e Mário Quintana.
Certamente, muita gente deve achar que tanta emoção não cabe nem deveria caber dentro de uma escola -talvez até ache que estudar poesia é coisa do passado. Aulas de artes são vistas, na maioria das vezes, como uma diversão, nem remotamente tão valiosas como matemática, física ou gramática.
Mas justamente nesse tipo de emoção poética reside uma conexão com o futuro.
Quando falo em futuro, estou me referindo a algo bem prático: a empregabilidade de um indivíduo depende do seu contato com as mais diferentes formas de criatividade, a começar pelas artes.
Neurocientistas das melhores universidades do mundo, como Harvard, revelam como a arte ajuda a desenvolver a capacidade de aprender. Há impacto direto na memória e na capacidade de associação, entre outros efeitos que facilitam a aprendizagem. Descobriu-se uma ligação direta entre música e matemática.
O psicólogo Howard Gardner, professor de Harvard, ganhou prestígio mundial ao disseminar a noção de que existem inteligências múltiplas. Dançar, cantar, desenhar ou jogar futebol são sinais de diferentes tipos de inteligência. Na visão do psicólogo, a escola prioriza o raciocínio lógico-matemático -e isso não forma profissionais habilitados a lidar com as novas demandas.
Gardner aposta que a prosperidade profissional depende do desenvolvimento da criatividade, afinal as máquinas assumem sem parar as tarefas repetitivas. Na semana passada, foi apresentado um projeto de robô que utiliza neurônios (as células cerebrais). Tão importante quanto o espírito criativo é a capacidade de síntese. Num ambiente com tanta informação em tempo real, é vital saber selecionar com rapidez -ele define essa habilidade como "mente sintetizadora".
A metáfora é um magistral exercício de síntese.
É mais fácil desenvolver a criatividade e a habilidade de síntese desvendando as emoções de uma poesia do que decorando fórmulas gramaticais ou correndo atrás da nova invenção tecnológica. Ter muita informação não significa, como sabemos, ter muito conhecimento. Pode significar apenas muita confusão.
Por isso, naquele encontro, Elisa e Rubem, dois estranhos, conseguiram se conhecer tão rapidamente em tão pouco tempo -e falar com tanta profundidade de décadas de vivência.
Aquele encontro é apenas a síntese do que significa promover a emoção com a educação.
PS-Os descaminhos da conversa de Rubem e Elisa acabaram virando livro ("A Poesia do Encontro"), lançado na Bienal de Livros de São Paulo, em agosto. Um trecho da conversa de Rubem Alves e Elisa Lucinda pode ser visto no link http://www.dailymotion.com/julianorj/video/x6fwvo_elisa-lucinda-e-rubem-alves-a-poesi_school Nesse trecho Rubem interpreta o que considera a mais bela declaração de amor, escrita por Fernando Pessoa: "Quando te vi, amei-te muito antes. Tornei a achar-te quando te reencontrei".
Coluna de Gilberto Dimenstein originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano/ Dia 18/08/2008
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