quinta-feira, 26 de maio de 2011

Atos de homofobia começam na própria escola

Pesquisa revela que hostilidade contra homossexuais é comum no ambiente escolar; cerca de 60% dos alunos já presenciaram cenas de discriminação
A discriminação contra homossexuais é um episódio corriqueiro em ambientes frequentados por estudantes de ensino médio. Seis em cada dez alunos de 16 a 25 anos que fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) entre 2004 e 2008 já presenciaram algum tipo de hostilidade contra quem parece ser ou é homossexual.

Entre aqueles que participaram da prova em 2008, 7,2% admitiram que se sentiriam incomodados por ter um parente ou colega homossexual. Os dados, que demonstram a intolerância enfrentada diariamente por milhares de alunos e alunas, estão em uma pesquisa publicada nesse ano pelos professores Josafá Moreira da Cunha e Araci Asinelli da Luz, do programa de pós-graduação em Educação da Univer­sidade Federal do Paraná (UFPR).

O estudo utiliza informações do questionário socioeconômico preenchido pelos participantes do Enem. Os professores da UFPR avaliaram as respostas de aproximadamente 6,4 milhões de estudantes que estavam concluindo a Educação básica no ano do exame.

Segundo Araci, pesquisadora que trabalha há mais de 20 anos com questões relacionadas à sexualidade e é membro da Comissão da Crian­­ça e do Adolescente da Or­­dem dos Advogados do Brasil (OAB), seção Paraná, a escola constitui um dos principais espaços de socialização dos jovens e, assim como outros ambientes, costuma ser hostil aos homossexuais.

“A discriminação se manifesta de várias formas: de risadinhas, do afastamento, do olhar indignado e das piadinhas até as agressões verbais e físicas”, afirma.

Articuladora estadual da Liga Brasileira de Lésbicas, Léo Ribas, 39 anos, diz que sofreu violência verbal e psicológica na época do colégio. Ela conta que todas as outras meninas saíam do banheiro assim que ela entrava e que uma vez passou pela sala dos professores e ouviu comentários maldosos a seu respeito. Mas o preconceito pode ir bem mais longe.

“Quando eu ti­­nha 14 anos, uma colega que também era lésbica foi violentada no banheiro por cinco alunos, o chamado estupro corretivo. A situação foi levada para a direção e eles não fizeram nada. Essa aluna nunca mais estudou”, afirma.

Fenômeno masculino
De acordo com o estudo, em todos os anos avaliados o porcentual de homens que sofreram discriminação homofóbica foi maior que o porcentual de mulheres. Segundo Araci, é mais difícil as pessoas aceitarem trocas de afeto entre dois ho­­­­mens que entre duas mulheres.

“Um relacionamento homossexual é a possibilidade da expressão pública desse afeto, que se manifesta por beijos, mãos dadas. Duas mulheres de braços dados você vê toda hora. Mas, se forem dois ho­­mens, já vão dizer que são ‘bichinhas’”, afirma.

Márcio Marins, diretor-geral do grupo Dom da Terra, instituição que trabalha na defesa da cidadania LGBT e da cultura afrodescendente, foi testemunha de vários casos de abandono escolar provocados por discriminação sexual. Segundo ele, muitas vezes a escola silencia ou colabora ativamente na reprodução desse tipo de violência.

“Além das situações em que fui testemunha ocular, existe hoje uma grande demanda de pessoas que nos procuram para denunciar esse tipo de discriminação nas escolas. Este ano tivemos o caso de um aluno que foi espancado dentro da sala de aula de um colégio público por causa da sua orientação sexual. A mãe procurou a direção e foi orientada a não dar queixa e mudar o filho de escola”, afirma.

Situações difíceis em sala de aula
A professora Francine Mattar Matiskei Ziemmermann, 30 anos, dá aulas de Filosofia e Sociologia para alunos de ensino médio e confessa que algumas vezes teme ser taxada de preconceituosa por agir com mais firmeza diante dos estudantes. Ela conta que não sabe como se comportar em relação a um aluno homossexual que regularmente “provoca” outros estudantes e faz brincadeiras de cunho sexual.

“Sempre passo por esse tipo de situação entre meninos e meninas. Mas com ele existe um temor. Uma vez chamei a atenção e os outros alunos brincaram que eu o estava discriminando”, diz.

Na opinião de Francine, uma capacitação sobre diversidade sexual poderia auxiliá-la a lidar com esse tipo de situação. “Para que as pessoas consigam interagir de forma mais natural, acho fundamental haver um curso de formação”, afirma.

A professora diz que o estudante é popular entre os colegas e não sofre discriminações, ao contrário do que muitas vezes acontece.

“Minha filha de 9 anos estuda em uma escola bem conservadora. Ela chegou esses dias e falou: ‘Mãe, na minha sala tem um menino que eu tenho certeza que é bichinha’. Ela usou um termo pejorativo e tivemos de conversar sobre o assunto”, conta.

POLÊMICA

Kit ensina como abordar tema
Vídeos com beijos entre dois estudantes do mesmo sexo? Cenas de sexo explícito? Muito tem sido dito sobre o material anti-homofobia que o Ministério da Educação (MEC) pretende distribuir nas escolas públicas no segundo semestre. Embora a versão final ainda não tenha sido aprovada, o kit reacendeu o debate sobre a conveniência de o assunto ser trabalhado nas escolas.

A Gazeta do Povo teve acesso a uma versão preliminar do material. O kit é composto de um caderno para a capacitação de educadores, seis boletins para serem trabalhados com os alunos e cinco vídeos ficcionais. Um deles conta a história de duas adolescentes que tiveram suas fotos em uma festa divulgadas para a escola toda.

A partir daí, elas se questionam sobre que atitude devem tomar. Após algumas especulações, decidem se encontrar no pátio da escola e assumem a relação com um abraço. O tão comentado beijo homossexual aparece apenas em um desenho animado, sobre um garoto que se apaixona por um amigo. Não há cenas de sexo explícito em nenhum dos materiais.

O caderno traz propostas de atividades práticas para serem desenvolvidas em sala. Uma das sugestões é que o professor desenhe duas colunas, uma com a palavra “gay” e outra com a palavra “lésbica”. Depois ele deve perguntar aos alunos que termos estão associados a cada uma das palavras, anotando todas as contribuições.

A seguir, pode avisar que apagará tudo, menos o que for completamente positivo. Com isso, mostrará como é difícil para os homossexuais viverem em um ambiente tão negativo.

Opiniões
O professor de Filosofia Carlos Ramalhete avaliou partes do material e teme que, em vez de estimular o debate, ele seja usado de forma impositiva pelos professores. “Acho ótimo o professor tentar evitar que os alunos ataquem uns aos outros, por qualquer motivo. A questão não é a aceitação do homossexualismo, é uma questão de respeito humano. Mas a escola não deve pregar um sistema de valores contrário ao da sociedade brasileira”, afirma.

O diretor-geral do grupo Dom da Terra, Márcio Marins, discorda que o material seja impositivo. “O jovem vai descobrir que há outras verdades e não uma absoluta, que é a dele”, diz. Segundo o MEC, diferentemente do que está sendo dito, o kit será trabalhado com alunos de ensino médio, todos com mais de 14 anos.

Depoimento
Carla Amaral, 38 anos, travesti e presidente da ONG Transgrupo Marcela Prado.

“Professores faziam piadas sobre mim”

“Na 4ª série do ensino fundamental, eu brincava o tempo todo com as meninas e por isso minha mãe sempre era chamada na escola. Quando eu era repreendida, acabava ficando sozinha dentro da sala na hora do recreio. Não brincava nem com um nem com outro. Chegava um momento em que eu começava tudo de novo. E meus pais eram chamados novamente.

De 13 para 14 anos eu já usava vestuário feminino. Primeiro você muda a calça, a blusa, deixa o cabelo e as unhas crescerem. No momento em que isso começa a ficar evidente, quando você mostra todo esse conjunto de uma vez só para as pessoas, não há como fugir.

Depois que assumi a minha condição, acabei parando de estudar pelo preconceito. A própria escola não me defendia. Ao invés de coibir os comentários em sala, os professores acabavam incentivando, com piadas junto aos grupos de meninos.

Faziam na minha frente, sem o menor constrangimento, embora a única pessoa com identidade contrária ao seu estado biológico na sala fosse eu. Em casa foi bem difícil. Meus pais me levaram a psicólogos e psiquiatras, achavam que era a televisão que me influenciava. Mas se eu tivesse sofrido alguma influência seria a deles e eu seria o contrário do que eu sou.”
Fonte: Gazeta do Povo (PR) 20/05/2011

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