segunda-feira, 9 de maio de 2011

História e humor na sala de aula

Ebenezer de Menezes

Agência EducaBrasil

Sempre utilizando exemplos humorísticos em suas aulas, o professor Elias Thomé Saliba, livre-docente do departamento de História da USP (Universidade de São Paulo), pode ser a pessoa mais autorizada a fazer algum comentário sobre O Quinto dos Infernos, série da Globo que foi apresentada aos telespectadores brasileiros como uma versão bem-humorada de nossa história.

Com 12 anos de trabalho no ensino médio, doutorado em História pela USP e vários estudos e artigos sobre a representação humorística, inclusive com um recente título, Raízes do riso (Cia das Letras, 2002), Saliba considera inútil apontar “erros” históricos em obras ficcionais. Ele entende que “as invenções podem ser historicamente criativas”.

Nesta entrevista, o professor faz algumas críticas à minissérie de Carlos Lombardi, mas acima de tudo ajuda a desvendar a atividade de historiador como uma interrogação racional do passado em função das inquietações do presente, e que pode ser muito divertida.

A minissérie O Quinto dos Infernos, da Globo, foi apresentada como uma versão bem-humorada da História do Brasil. Diante disso, que prejuízos poderíamos ter na sala de aula junto aos alunos?
Elias Thomé Saliba — Por apresentar-se como uma “versão bem-humorada” nenhum prejuízo. Mesmo estudando seriamente a história do Brasil há anos, sempre a achei muito divertida, por que ela sempre alternou momentos solenes, sérios, importantes (e violentos) com momentos de puro escracho. A série da Globo é só escracho, daí porque ela sequer é capaz de fazer rir, porque o cômico brota do contraste, de um brusco desvio nos significados originais.

Sempre utilizei exemplos humorísticos nas minhas aulas de história – incluindo caricaturas e imagens divertidas. Pesquisei durante quatro anos para escrever um livro inteiro sobre a representação humorística na história brasileira (Raízes do riso, Cia. das Letras, 2002) e um capítulo sobre a dimensão cômica da vida privada na república brasileira (História da vida privada no Brasil, vol. 3, Cia. das Letras).

Considera importante um professor de história do ensino médio, por exemplo, acompanhar uma minissérie como O Quinto dos Infernos para poder fazer a crítica junto aos alunos? Em quê o professor deve ficar atento?
Elias Thomé Saliba — O professor pode acompanhar, se resistir... Eu mesmo não consegui acompanhar, achei fraca e decepcionante a produção: falta um eixo narrativo mínimo e, assim, num roteiro desarticulado, não há como avaliar o cenário histórico. A emissora anunciou que a série se baseia nos relatos ficcionais, sendo uma “adaptação livre” de O Chalaça, de José Roberto Torero, A imperatriz no fim do mundo, de Ivani Calado, e As maluquices do imperador, de Paulo Setúbal. Conheço as três narrativas e posso afirmar que a minissérie fica muito aquém destas obras. Com um pouco de complacência, poderíamos tentar desculpá-los, alegando que Carlos Lombardi – o autor da série – tenha optado pela estrutura do folhetim. Mas é um folhetim de muito mau gosto, longe até daqueles produzidos no passado*. Entretanto, é bom dizer que os três relatos ainda se basearam noutras narrativas ainda marcadas pelo tom ideológico de propaganda republicana com difusos intuitos de denegrir a monarquia. Pouco pode ser aproveitado pelo professor, a não ser que utilize outros relatos ou narrativas mais contextualizadas, objetivando o confronto.

D. João VI, por exemplo, é apresentado como sendo uma criatura apática, sem opinião e covarde. Quais equívocos históricos a minissérie comete com essa percepção? Podemos apontar outros equívocos?
Elias Thomé Saliba — Vamos deixar algo bem claro: acho inútil apontar “erros” históricos em obras ficcionais, porque as invenções podem ser historicamente criativas e, afinal, a História não é monopólio dos historiadores. Dificilmente, na corte afrancesada dos Bourbons ou dos Braganças se permitiria dançar à flamenca. O clima “colorido” e luxuoso da corte também nos parece longe da realidade. Neste aspecto, lembre-se que o cenário da corte no filme Rainha Margot parece-nos mais apropriado. Mas tudo isto são detalhes superficiais, que se resolveriam com uma boa consultoria, afinada com cenógrafos competentes. O mais grave é que o cenário histórico inteiro é tão superficial que a maioria dos episódios caberia em qualquer contexto e em qualquer época.

São muitos os estereótipos. O estereótipo é um dos recursos do humor e absolutamente necessário à caricatura. Caricaturistas brilhantes como J. Carlos, Raul Pederneiras ou - na atualidade, um Loredano - sabem muito bem disso. Mas, o estereótipo em exagero acaba com a complexidade da história, que é, afinal, a complexidade da vida humana. A caricatura (de caricare, “carregar, acentuar, exagerar, ampliar certos aspectos do personagem retratado”) pode servir de elemento narrativo da história, desde que consiga, através do exagero e do contraste, trazer (ou sugerir) elementos do contexto histórico mais geral.

D. João foi, de fato, um glutão compulsivo, de comportamento hesitante e ambíguo, esperando que as coisas se definissem para, então, tomar decisões. Mas, bem ou mal, este perfil de sua personalidade não possibilitou que ele sobrevivesse num cenário histórico complicadíssimo? O cenário envolvia a decadência e crise da monarquia portuguesa na dramática conjuntura bélica napoleônica, as pressões inglesas e, depois de 1808, a sobrevivência do Estado português no Brasil. À despeito dos traços ambíguos de sua personalidade (ou até, por causa deles), D. João foi um personagem central de um processo de independência muito peculiar à história brasileira, que articulou um pacto conciliador com as elites, interiorizou a estrutura do Estado português no Brasil e manteve unido o território da América portuguesa. É possível aprender aí parte essencial da história brasileira: o aparelho de Estado organizou-se (e se impôs) antes da constituição de uma sociedade civil organizada e as elites (exceto em conjunturas críticas, como a Revolução Pernambucana em 1817, e os conflitos posteriores a 1820) articularam-se nos momentos mais difíceis – aqueles que prenunciavam uma forte ruptura social. 1822 foi um destes momentos, e D. Pedro I, outro personagem caricaturado na série – como estouvado, mulherengo e pouco afeito à política – estava lá, como representante simbólico do Estado para catalisar os acordos das elites e os pactos políticos que aparavam os conflitos regionais. Obviamente, outros personagens importantes, como o Conde dos Arcos ou o próprio José Bonifácio, instruíram D. Pedro na saída política do 7 de setembro – mas, por que isto não pode fazer parte da caricatura?

O preço (social) que o país pagou esta peculiar história da fundação do Estado Nacional Brasileiro pode ter sido alto, mas tudo foi parte da história que realmente aconteceu. Se a série fosse uma aula de história, sem outros recursos senão os puramente verbais, seria muito chata, mas, por que não introduzir isto através de uma seqüência, artifício narrativo ou, utilizando, como instrumentos, as próprias suscetibilidades (ou taras) dos personagens? O público não sairia ganhando e não seria provocado a buscar mais informações?

Que abordagem os professores de história (ensino médio e fundamental) poderiam fazer junto aos alunos para evitar a assimilação de preconceitos, ou pelo menos para contribuir com uma visão mais crítica sobre a montagem televisiva?
Elias Thomé Saliba — Respondi de forma muito longa a questão anterior e acho que já indiquei uma outra abordagem histórica do tema. Os professores podem operacionalizar a comparação crítica introduzindo outros relatos ficcionais (comparando, por exemplo, a ficção de Torero com a série televisiva) ou até mesmo outros exemplos fílmicos como Carlota Joaquina (1985) ou Xica da Silva (1976). No limite, os alunos poderiam ser incentivados a produzir pequenas narrativas, desde que o quadro geral seja indicado e compreendido.

A narrativa histórica, quer esteja imbuída de ficção televisiva ou da busca da verdade, é subjetiva mas, ainda assim, os fatos continuam lá, esperando serem desenterrados pela melhor narrativa, que, sem dúvida, será aquela que melhor conseguir reatar os laços do passado com o tempo presente. E, neste caso, a história é uma interrogação racional – e acrescento, para mim, muito divertida – do passado em função das nossas inquietações do presente.

Há um certo consenso entre educadores sobre a concorrência sofrida pela escola, principalmente com relação à mídia eletrônica. O que pensa sobre o assunto tendo em vista o ensino de história? Como o ensino de história (ensino médio e fundamental) poderia ser mais atrativo para competir com a mídia?
Elias Thomé Saliba — As coisas não devem ser colocadas em termos de competição! Pobre do professor, eternamente mal pago, destilando na sala de aula sua impotência em relação à força da mídia! A educação tem outra finalidade. Na tevê tudo é banalizado e des-hierarquizado e visa produzir uma espécie de amnésia estrutural, quase sempre – exceções são raríssimas! – beneficiando o consumo. O educador deve ter compromisso com valores. Não é possível discutir este assunto vasto neste espaço.

O profissional de História deve esforçar-se por quebrar esta espécie de amnésia estrutural, procurando mostrar, ao máximo, como as imagens são produzidas. Eu sei que o professor de história, um profissional já mal formado no mundo da grafosfera (ou seja, da escrita) tem dificuldades enormes para trabalhar no mundo da videosfera, mas todo o seu esforço, mesmo no ensino fundamental, deve ser no sentido de mostrar que o mais importante no visual, seja por que meio for, é o fato de que as imagens na tela tenham sido colocadas lá por alguém. As imagens não são feitas gratuitamente, mas por alguém que ganha a vida fazendo imagens e que obedece a um certo número de regras e limitações. Assim, em quaisquer situações, temos de mostrar como as imagens são produzidas. Claro, que nas faixas etárias menores, temos que trabalhar com as compreensões mínimas. Neste sentido, roteiro, movimentos de câmera, enquadramentos, trucagens, montagens... Enfim, tudo o que diga respeito à linguagem cinematográfica ou da televisão, ou ao contexto no qual a imagem foi produzida – são dados imprescindíveis. Claro que a forma não é tudo. Neste caso, o professor pode selecionar, dentre tais elementos “técnicos”, aquilo que é indispensável para a compreensão do próprio conteúdo das imagens. O ideal é que, no planejamento, as imagens e os filmes sejam incluídos não apenas em função do seu conteúdo, mas também colocados numa certa seqüência que objetive, ensinar, desde o seu nível mais elementar, algo da linguagem e das técnicas de produção da imagem.

* Olavo Bilac e Pardal Mallet escreveram O Esqueleto, em 1890 – reeditado em 2001 pela Editora Casa da Palavra – narrativa que se passa na mesma época da série O Quinto dos Infernos, e na qual D. Pedro é personagem principal, ao lado de alcoviteiros e rufiões internacionais. É história mirabolante, escrita com o intuito propagandista republicano de denegrir a monarquia. Mas os episódios, muito bem pensados, e contextualizados, constituem uma caricatura inteligente das elites palacianas e da forma conspiratória como elas se utilizam da personalidade mau-caráter de D. Pedro I. voltar

Saiba mais
Professores interessados em aprofundar questões abordadas nesta entrevista podem consultar os seguintes artigos:

SALIBA, Elias Thomé. “Experiências e representações sociais: reflexões sobre o uso e o consumo das imagens”. In O saber histórico na sala de aula, org. por Circe Bittencourt. São Paulo, Editora Contexto,1997, pp.117-127. (5ª Edição em 2001).

____________. "A produção do conhecimento histórico e suas relações com a narrativa fílmica". In Bruzzo, Cristina e Falcão, P.R. (orgs), Lições com cinema-coletânea, 2ª ed. São Paulo, FDE-Secr. Estado da Educação, 1993, pp.87-107.

____________. "Robôs, dinos e outros simulacros: o limiar da utopia no cinema e na história". In Revista de Cultura Vozes, n.1, jan.-fev.- 1994, ano 88, vol. 88, pp.52-64.

____________. “As imagens canônicas e o ensino de história”. In Sinopse. Revista de Cinema. N.7. S. Paulo, Hedra/Cinusp, 2002.

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