Albano Estrela
...É a imprevisibilidade de Cristo que torna a sua figura aliciante e tão enigmático o Novo Testamento. O 'segredo', que está no discurso oculto do Novo Testamento (se quisermos seguir a linha de reflexão que Paulham nos propõe), decorre de uma sucessão alucinante de factos e palavras, absolutamente impensáveis na lógica do seu tempo...
Jean Paulham, em finais dos anos quarenta, início de cinquenta, escreveu um pequeno livro que intitulou 'O Segredo', no qual fala dos 'segredos' dos dois grandes Evangelhos, o do Bem (o Novo Testamento) e o do Mal (a 'Justine', do Marquês de Sade). É um texto polémico e provocatório, em que Paulham, no seu jeito pós-surrealista, 'malgré lui', nos diz do 'segredo' do Novo Testamento:
'Sabemos desde há anos a que se deve o maior êxito de livraria que alguma vez o mundo viu, o êxito do Novo Testamento. É que se trata de um livro com segredo. É que em todas as páginas, em todas as linhas, nos deixa ouvir uma coisa que não diz e por isso mesmo mais nos intriga, nos cativa, nos prende. E mesmo que o Evangelho não seja aqui chamado nada nos impede, afinal, de revelar o tal segredo'.
'Segredo' que ele não resiste em nos desvendar, logo de seguida:
'É que Jesus Cristo tem graça. O Novo Testamento mostra-o grave, ou antes: refletido e às vezes irritado, de outras vezes ainda em lágrimas e sempre muito sério. Adivinhamos, porém, coisa diferente do que o Novo Testamento diz: às vezes Jesus brinca. Tem muito humor. Por vezes fala à toa só para ver o que acontece (quando se dirige às figueiras, por exemplo). Numa palavra, diverte-se'.
Releio o texto e acho graça à 'graça' que Paulham atribui a Cristo, embora não esteja muito seguro que esta interpretação seja a que mais convenha. Talvez uma outra, de algum modo paralela, seja mais adequada aos atos e às palavras de Cristo. Refiro-me à sua absoluta imprevisibilidade. É esse carácter imprevisível que confere singularidade à sua pregação e transforma o Novo Testamento na obra mais emocionante de todos os tempos. E a mais lida.
Quando se espera um Messias libertador do Povo Hebreu, que o conduza ao esplendor político e militar perdidos, Cristo apresenta-se como o não chefe político, a prometer o Reino do Espírito, o Reino de Deus - não o dos homens. Um salvador na roupagem de um mendigo.
Quando se espera um Messias esplendoroso no seu porte masculizante, Cristo surge como uma figura etérea, doce e tímida, sempre longe do convívio da intimidade feminina.
Quando a mãe o procura entre os companheiros, vai encontrá-lo entre os doutores, argumentando o que a idade e os estudos não lhe deviam permitir.
Quando se espera a força altissonante do seu verbo, guia dos povos e do viver quotidiano dos homens, Cristo utiliza a subtileza da parábola, em apelo à imaginação interpretativa de quem o escuta.
Quando lhe batem numa face, oferece a outra, não por cobardia, mas por empatia.
Quando dele se espera a pregação da fidelidade aos valores da amizade e da família, ele afirma que só a Deus se deve fidelidade e, por amor d'Ele, haverá que a tudo renunciar - e a todos.
Quando dele se espera a seriedade, ele ri, quando se antevê uma brincadeira sua, ele faz o discurso da gravidade.
Quando impõe a sua suavidade aos que o seguem, e a não violência se torna o lema da sua vida, ele entra no templo, em cólera e agressão aos vendilhões da fé, que dele tinham feito o poiso do seu comércio.
Quando valoriza o espírito e nega o corpo, transforma o pão em corpo e o vinho em sangue, para que os outros façam seu o Seu Corpo.
Quando se lhe pretende impor a ordem natural das coisas, ele faz o milagre.
Quando, à hora da morte, se espera o milagre dos milagres, o da auto-salvação, deixa-se morrer, em sofrimento. Não como o Filho de Deus, mas como um homem que duvida: Pai, por que me abandonaste?
Quando se vai recolher o seu corpo, o sepúlcro está vazio - Corpo-alma em ascenção às altas paragens.
Quando ...
É a imprevisibilidade de Cristo que torna a sua figura aliciante e tão enigmático o Novo Testamento. O 'segredo', que está no discurso oculto do Novo Testamento (se quisermos seguir a linha de reflexão que Paulham nos propõe), decorre de uma sucessão alucinante de factos e palavras, absolutamente impensáveis na lógica do seu tempo. A parábola constitui o exemplo por excelência do que acabo de dizer: a palavra da parábola, que não dá a resposta esperada, que oculta a sua evidência, e, assim, conduz o homem à descoberta do seu, dos seus sentidos profundos. O oculto, vivência e via para o Segredo - eis a mais poderosa e a mais revolucionária fórmula pedagógica que Deus encontrou para que a sua palavra se transformasse em ato de fé, no coração de cada um dos homens.
Meus Deus, como eu gostava que essa pedagogia fosse universal e eu, dela, pudesse receber a Palavra!
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